De navios negreiros a presídios: um Brasil racista e cínico

A história sempre se repete — ainda mais num país que reedita massacres por não querer resolver as contas com o seu passado

Marcelo David Macedo
5 min readJan 4, 2017
Pichação com as iniciais de duas facções criminosas que controlam o presídio em Manaus. (Foto: El País)

É sempre importante afirmar o que, apesar de óbvio, muita gente tenta virar a cara para não ver: o Brasil é uma nação construída a partir do roubo, do racismo e da violência contra as mulheres.

Famílias que hoje defendem a meritocracia e o esforço individual (mas não abrem mão da empregada doméstica devidamente uniformizada) enriqueceram às custas da pilhagem promovida nesta terra e do trabalho de pessoas pretas sequestradas em África e trazidas para cá; mulheres foram desumanizadas e violentadas sistematicamente, fato escondido através da mística da “miscigenação” — potencializada, hoje, pela maldita mentira do “somos todos iguais”.

Não somos.

Através dos séculos, várias foram as tentativas de embranquecer a população brasileira, desde o estímulo à imigração europeia, que coincidiu com o fim da escravidão legalizada pelo Estado, até o genocídio praticado há décadas pelas forças de segurança desse mesmo Estado nas favelas e cadeias do país.

O Brasil, portanto, é um país racista, machista, assassino e cínico, sobretudo por não querer acertar suas contas com esse terrível passado. Mas ele insiste em nos visitar sempre que possível. E, no início de 2017, esse atraso resolveu aportar em Manaus.

Uma rebelião, iniciada na tarde do dia 1° de janeiro, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, deixou 56 mortos, boa parte deles decapitados e incendiados. O governo do estado do Amazonas afirma que o conflito se iniciou devido a um confronto entre facções criminosas, não fazendo, em nenhum momento, qualquer autoavaliação sobre sua responsabilidade no episódio.

Há motivos para isso. O presídio é gerido através de uma parceria público-privada (PPP), onde uma empresa recebe dinheiro do Estado para manter o funcionamento da cadeia. A empresa responsável pelo Compaj, que ironicamente se chama Umanizzare, recebeu mais de R$ 800 milhões a partir de 2013, ficando responsável por todas as operações dentro da cadeia, incluindo a segurança.

Um relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura afirma que os agentes não eram treinados adequadamente e não tinham ingerência sobre os presos, que controlavam eles mesmos a rotina dentro do presídio. Dessa forma, os internos pertencentes à Família do Norte (FDN), aliada do Comando Vermelho (CV) e maioria dentro desta unidade, fizeram um buraco em uma das paredes, encurralaram e massacraram os presos ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC), que estavam isolados no “seguro”. Como se sabe, recentemente, CV e PCC romperam um acordo histórico, passando a disputar, em meio a rios de sangue, a hegemonia do tráfico de drogas no Brasil.

Mas perceba a perversidade neste cenário: o Estado lavou as mãos lá atrás, quando entregou a administração de um bem público a uma empresa privada, num negócio absolutamente lucrativo para esta última. A Umanizzare fez o mesmo, limitando-se a manter os presos encarcerados — e nem isso, já que, durante esse levante, dezenas de presos fugiram de outras unidades, no que pode ter sido uma “cortina de fumaça” para o levante assassino no Compaj.

A existência de um presídio privado é mais uma peça numa engrenagem perversa que, no Brasil, também conta com o aumento da repressão nas ruas, o elevado índice de encarceramento de pretos e pobres e, sobretudo, o indecente número de presos provisórios: segundo relatório do Departamento Penitenciário Nacional, o Depen, 40% dos presos no Brasil sequer foram julgados em primeira instância.

Tal cenário promove a superlotação dos presídios país afora: o Compaj, palco do massacre do dia 1°, tinha 1.224 presos cumprindo pena no início da rebelião, mas tem capacidade para apenas 454 internos — um excedente de 170%. Porém, quanto mais presos, mais lucrativo é o negócio para a empresa que gerencia o espaço — logo, é interessante que se aumente o encarceramento, que se diminua a maioridade penal e que se aumente o punitivismo através da tosca e inútil “guerra às drogas”, pois isso representa lucro para empresas que, em troca, financiam campanhas eleitorais de políticos que possam representá-las.

Além disso, o extermínio da população negra e pobre também serve à tentativa de embranquecimento da sociedade brasileira, como foi dito no início desse texto. Pretos, incluindo os fardados, morrem diariamente em confrontos patrocinados pelo Estado, por traficantes de terno e mandato e por uma sociedade sanguinária, que aplaude o massacre no AM achando que isso lhe trará mais paz. Você se sente mais seguro hoje? Mesmo com o aumento exponencial de presos, sua cidade está mais tranquila? Sejamos sinceros: o confronto só te deixa tranquilo quando não acontece na esquina da sua casa.

A escravidão negra legalizada no Brasil, que durou algo próximo de 350 anos, trouxe cerca de 4 milhões de pessoas negras nos porões de navios negreiros superlotados — estima-se que outros 4 milhões tenham sido jogados ao mar, acometidos por doenças em virtude das péssimas condições de viagem, ou após serem assassinados por traficantes. Os navios negreiros eram batizados por seus donos com nomes que pudessem remeter à ideia de que eles, os traficantes, estavam fazendo “caridade” com os homens e mulheres escravizados, tirando-os de uma terra onde, segundo a crença racista, imperava o “paganismo”, levando-os até a “redentora” cristandade.

Litografia de um navio negreiro: agonia e dor. (Foto: Reprodução)

“Boa Intenção”, “Feliz Destino”, “Regeneradora” e “Boa Esperança”, que inclusive batiza um impactante rap de Emicida, são alguns exemplos de nomes dados aos navios tumbeiros que faziam a travessia de África até o Brasil, no maior traçado escravagista da história do Oceano Atlântico.

O presídio em Manaus que massacrou os presos, negros como os africanos sequestrados através dos séculos, também segue esse cínico padrão: “Umanizzare” não humaniza ninguém, pelo contrário — impõe a seus encarcerados, meras mercadorias com as quais ganha (muito) dinheiro do mesmo Estado que os prende, jornadas absolutamente desumanizadoras.

E o cidadão médio, turbinado por datenas e bolsonaros, aplaude o massacre, sem perceber que também caminha, devagar e sempre, para o mesmo abatedouro.

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