Pacientes reagem à experiência, não a dados

Medicinia
6 min readAug 31, 2018

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O analytics é uma grande promessa para a área de saúde. Na última década, os métodos de análise quantitativa vêm melhorando a compreensão dos diversos riscos à saúde de diferentes populações e indivíduos. Eles permitem o uso de dados demográficos e clínicos para construir modelos de estratificação de risco capazes de nos dizer, por exemplo, as chances de um indivíduo se tornar um paciente de alto custo ou de ser hospitalizado nos próximos meses. Essa é uma informação muito importante para as operadoras de planos de saúde, que precisam se planejar com antecipação para sinistros inesperados.

Nos últimos anos, o uso de inteligência artificial (IA) em analytics tem ampliado a capacidade de predição clínica, tanto na população em geral quanto em nível do indivíduo. A análise preditiva pelo uso de inteligência artificial já pode, entre outras coisas, ajudar a identificar pacientes com alto risco de suicídio ou fazer detecção precoce de sepse em pacientes internados. O analytics baseado em IA é potencialmente capaz de gerar predições impensadas nos modelos preditivos mais estáticos do passado. Mais importante ainda: a IA permite que os sistemas preditivos se tornem ativos. Afinal de contas, de que adianta identificar pessoas que podem cometer suicídio se não pudermos impedir ativamente esse resultado? As tecnologias de IA têm o potencial de interagir diretamente com o paciente (por meio de chatbots, por exemplo), tão logo um risco seja detectado.

Enquanto os modelos preditivos iniciais baseavam-se principalmente em codificação diagnóstica (CID e DRG), os modelos de IA utilizam muitas fontes diferentes de informações, incluindo informações fornecidas por pacientes, resultados de exames, prescrições de medicamentos, procedimentos e codificações diversas (como o TUSS, no Brasil, ou CPT codes, nos EUA). O dia a dia do paciente monitorado por dispositivos, incluindo os wearables, também pode contribuir para enriquecer de dados os modelos inteligentes. Esses modelos sofisticados seriam capazes de fornecer orientação médica quase que em tempo real — digo “quase” porque o tempo médio de faturamento da maioria dos hospitais é tão longo, que estamos distante de qualquer coisa parecida com “tempo real” em saúde.

Independentemente do ritmo com que modelos preditivos funcionam ou vão funcionar, uma coisa parece certa: eles terão um grande impacto em nossa saúde e estarão cada vez mais presentes em nossas vidas. Os modelos preditivos de IA vão continuamente gerar insights e recomendações, para que possamos cuidar melhor de nós mesmos e, dessa forma, termos uma vida mais saudável. Mas essas máquinas vão interagir diretamente conosco, os pacientes?

Atualmente, a maioria das plataformas de analytics é usada por operadoras de planos de saúde e hospitais para melhorar o conhecimento sobre seus pacientes e sobre suas faturas e, com base nisso, diminuir custos e/ou aumentar receitas. Algumas dessas plataformas até sugerem opções de tratamento diretamente para os médicos, como é o caso do Watson da IBM. Mas, na maioria dos casos, elas se restringem a dar suporte quantitativo às instituições de saúde. Não seria muito mais interessante se as ferramentas de analytics fornecessem insights diretamente aos pacientes?

É aí que entra a questão dados vs. experiência. O paciente é um ser humano e não uma máquina. As pessoas reagem ao “qualia”. Qualia é como os neurocientistas chamam o conjunto de experiências, percepções e sensações que nos conectam com o mundo. Vejamos: qual é a porcentagem de fumantes que sabem que fumar causa câncer de pulmão? Aposto que é altíssima. Esse conhecimento é fato, baseia-se em dados, informações quantificáveis ​​que podem ser objetivamente demonstradas. Quantas pessoas, por outro lado, param de fumar por causa desse conhecimento? Muito poucas! Porque o que move o nosso comportamento é qualia. Nossa vida e nossas decisões são baseadas em qualia. Como dizem alguns filósofos, um cientista cego pode saber tudo, quantitativamente falando, sobre a cor vermelha — seu comprimento de onda, todos os materiais que refletem vermelho, entre muitas outras coisas, mas… nunca saberá como é a sensação de ver o vermelho. Esse é um conhecimento que terá apenas quem passar pela experiência real de ver o vermelho.

Da mesma forma, a mudança comportamental está totalmente relacionada ao qualia. Não é a falta de dados que impede as pessoas de mudar. É que as pessoas respondem a experiências muito melhor do que que elas respondem a dados. No final do dia, quem nos inspira é o Capitão Kirk, de Star Trek, não o Spock ou o Data. Portanto, devemos nos perguntar: para onde está nos conduzindo todo o conhecimento gerado pelas plataformas de analytics em saúde? Elas realmente podem ajudar as organizações a tomarem decisões melhores e se tornarem mais lucrativas. Mas será que podem fazer as pessoas tomarem melhores decisões de saúde? Eu acredito que a resposta é um retumbante sim!

As pessoas ouvem. As pessoas se preocupam com elas mesmas. E, cada vez mais, vemos gente acessando seus dados de saúde. Não são poucos os usuários de trackers para melhorar e acompanhar a sua saúde e o seu condicionamento físico. Não são poucos os que consultam o Dr. Google todos os dias para se informar sobre suas condições de saúde. À medida que a experiência pessoal de interagir com os dados se torna mais rica e interessante, os dados de saúde passam a se tornar qualia, na medida em que de os pacientes de fato engajam com a informação. A tecnologia trouxe muita coisa bacana para as nossas vidas. É apenas uma questão de tempo para que a tecnologia também leve coisas bacanas para a interação dos pacientes com os sistemas de saúde.

Impossível deixar de registrar que os sistemas de saúde ainda nos oferecem as piores experiências como clientes. Ninguém gosta de ficar doente, ir ao pronto-socorro ou ser internado em um hospital, e ainda ficar horas esperando pelo atendimento. E há muita coisa que os sistemas hospitalares poderiam fazer para melhorar essas experiências. Por que devo procurar atendimento urgente, quando posso obter informações médicas personalizadas dentro de casa? Por que eu deveria retornar ao consultório médico para discutir os resultados do laboratório, se eu pudesse estar continuamente em contato com ele ou com seu dublê de IA?

É nessa direção que as plataformas de analytics precisam ir. Entregar conhecimento é ótimo,mas entregar uma boa experiência do paciente, é muito melhor. Com a IA e os chatbots cada vez mais dando as cartas, é natural que haja uma expectativa de que toda essa tecnologia comece a informar e a engajar os pacientes. Não basta garantir que a informação chegue aos gestores de hospitais e de planos de saúde. Para prosperar, as plataformas de analytics precisam ser tornar parte da experiência do paciente, no seu dia a dia.

Em outras palavras, o analytics em saúde precisa se transformar em qualia, em experiência do paciente. Não importa se a TV a cabo está disponível na sua rua. Isso só tem relevância se o sinal de TV entra na sua casa e permite que você assista à TV! Da mesma forma, precisamos de analytics em assistência médica para a interação com o paciente. As empresas de analytics em saúde só vão fazer sentido para os pacientes quando se tornarem mestres na arte de promover mudanças comportamentais e, via experiências de engajamento com os dados de saúde, melhorarem o conhecimento do paciente sobre si mesmo.

Leia o original em inglês em https://medium.com/@danielbranco_37763/health-care-analytics-vs-patient-engagement-a-quanta-vs-qualia-problem-d8dce93cf3a4

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