DOWN, DOWN, TO GOBLIN TOWN

Encontros de Viagem em Jogos OSR ou O Que Fazer com 300 goblins

Luis Oliveira
12 min readSep 18, 2021

“Era um lugar fundo, fundo, escuro de tal modo que só os goblins que se acostumaram a viver no coração das montanhas conseguiriam enxergar. […] Então surgiu um bruxuleio de luz vermelha diante deles. Os goblins começaram a cantar, ou grasnar, marcando o ritmo com a batida de seus pés chatos na pedra e chacoalhando seus prisioneiros também.

Descendo, descendo à cidade dos goblins

Se vai, meu rapaz!”

O Hobbit, J.R.R. Tolkien

É assim que somos apresentados à Cidade dos Goblins quando Bilbo Bolseiro, Thorin & Cia são capturados pelos monstros ao tentar passar pelas Montanhas Sombrias no capítulo 4 do Hobbit: “Montanha Acima, Montanha Adentro”.

Goblins cantores a parte, viagens nos ermos e o que acontece durante o seu percurso é um tópico muito presente na tradição do D&D Original e do movimento OSR como um todo, algo que eu tenho achado cada vez mais interessante desde que comecei a me aventurar mais com o jogo hexcrawl. Numa dessas experiências, algo que me chamou atenção foi a quantidade recomendada para cada monstro, ao analisar a tabela de criaturas do Volume 2 do OD&D. Quem nunca ouviu aquela velha anedota de “virar um corredor na Masmorra e encontrar 300 goblins?”

Eu pelo menos já a ouvi uma ou duas vezes em círculos diferentes dentro do RPG, mas após leituras que tenho feito da edição original no último ano, me parece que não é bem assim que a banda toca (ou pelo menos eu estava enganado e pode ser que alguém lendo esse texto também esteja e isso seja de alguma ajuda).

A partir de agora, vou analisar 3 coisas:

  1. A estrutura de encontros aleatórios nos 3 Livros Básicos do D&D Original
  2. Os valores indicados de monstros e o que significam
  3. Como aplicar isso num Hexcrawl, usando o Hobbit como exemplo

1. MECÂNICA X FICÇÃO OU O MONSTRO MEDABOTS

Para começar, temos que entender o que é um Encontro Aleatório. Um grande ruído que pode ser gerado no uso da ferramenta é a confusão da aleatoriedade mecânica com aleatoriedade ficcional. Como já diria um chavão literário “a diferença entre a vida e a ficção é que a ficção tem que fazer sentido”.

Portanto, em primeiro lugar seria bom pensar num encontro aleatório não como algo isolado, que simplesmente acontece porque sim, mas como parte do mundo fictício criado, ou seja, rolar um encontro com goblins não significa que eles simplesmente saem de dentro da próxima moita ou brotam do teto do calabouço apenas como um desafio aos aventureiros.

Os monstros, assim como qualquer outra criatura no mundo de fantasia, são seres que têm objetivos, propósitos e fazem parte de uma escala maior, não apenas peças num tabuleiro a serem descartadas ou o famigerado juiz de Medabots que sai de qualquer lugar possível (incluindo armários e lixeiras) apenas para dar início ao duelo (bônus de referência obscura, só quem viveu lembra).

É importante entender o conceito de que o mundo fantástico é vivo, ele não existe apenas quando os jogadores estão olhando.

2. O NÚMERO DE MONSTROS ENCONTRADOS E O ECOSSISTEMA FICCIONAL

Para prosseguir com o nosso raciocínio, vamos aos números de monstros indicados no Vol. 2 — Monsters & Treasure. Para nosso exemplo com o Hobbit, vamos usar os goblins. Na Tabela de Referência de Monstros, Criaturas Hostis e Benignas, temos o número indicado para goblins como 40–400. Uau! É aqui que minha mente fundiu da primeira vez que li. Imagine só tacar 400 goblins contra um grupo de aventureiros, é mais fácil acertá-los com um meteoro de uma vez (pensava eu). 40 já seria um desafio pra lá de perigoso, mesmo para personagens de nível alto.

Mas então, calma, respira, vamos continuar a leitura. Nessa mesma tabela de referência temos o valor de % no Covil, que podemos entender como a quantidade de monstros que em vez de estarem errantes estarão no seu covil e por fim, como uma nota de rodapé, temos a explicação de que o número indicado é “uma opção ao Árbitro: aumente ou diminua de acordo com o grupo em questão (usado primariamente apenas para encontros em campo aberto)”.

Bom, menos mal. Os 40 a 400 goblins são um exército de goblins em campo aberto, no qual uma porcentagem não está errante, mas sim num covil. Okay, as chances são quase nulas de ser surpreendido por um exército nos ermos (vamos lembrar da questão anterior sobre a aleatoriedade mecânica x ficcional).

Mas se os números indicados são apenas para viagens nos ermos, como determinar quantos monstros os nossos aventureiros acham ao virar a esquina dentro da Masmorra? A gente só inventa e pronto? Sim e não, mas pra isso vamos seguir adiante novamente (e é aqui que um editor teria feito milagres pelo Sr. Gygax), pois a informação essencial que nos trará o esclarecimento só será fornecida no Vol. 3, pág. 11, que deixo aqui com uma tradução livre:

“Número de Monstros Errantes Encontrados: Se o nível sob a superfície corresponde aproximadamente ao nível do monstro então o número de monstros será baseado numa única criatura, modificada por tipo (ou seja, Orcs e similares estarão em Grupos) e o número de aventureiros no grupo. Um grupo de 1–3 atrairia o número básico de monstros, 4–6 atrairia o dobro e assim por diante. O árbitro é aconselhado a usar prudência em relação às determinações exatas, pois o número de variáveis é muito grande para fazer uma regra rígida e rápida. Pode haver lugares onde 300 Hobgoblins vivem…”

Ora, ora, então já temos alguma instrução de como proceder ao lidar com os monstros errantes de nossa Masmorra. Caso você, assim como eu, não seja proficiente em Gygaxiano Antigo, vou elaborar o que eu entendi desse parágrafo meio obscuro após pesquisas com vozes mais sábias do que eu (lê-se Internet).

Basicamente, se o nível do monstro (o total de seus Dados de Vida com + 1 para qualquer habilidade especial) for relativamente equivalente ao nível da Masmorra (ou seja, o andar em que o monstro se encontra em relação a superfície), para cada 3 aventureiros no grupo aparecerá 1 Monstro no encontro. A menos que se trate de criaturas “como orcs” que aparecerão em grupos em vez de sozinhas.

Mas o que são criaturas “como orcs”? Para isso temos que voltar ao Vol. 2, onde são descritas as criaturas chamadas “normal types” ou “normal men”, que seriam os “humanóides normais” em geral. Trocando em miúdos, porque esse texto já está longo, “tipos normais” são todos os monstros humanóides que têm até 1 Dado de Vida, o que incluem orcs, goblins, hobgoblins e a maioria das hordas de monstros comuns da fantasia clássica. Um detalhe é que essas são as únicas criaturas que possuem números na faixa de centenas e uma descrição de sua “força militar”, ou seja de um exército ou horda, com direito a capitães, acampamentos e tudo o mais. Pronto, agora podemos supor o que são monstros “como orcs” (e eu digo supor porque não tenho Speak with Dead preparado pra conferir com o sr. Gygax).

Bom, mas se monstros como orcs aparecem em grupos, quantos há num grupo? Aqui vamos ter que lembrar da frase “o Árbitro é aconselhado a usar prudência em relação às determinações exatas, pois o número de variáveis é muito grande para fazer uma regra rígida e rápida”. Isso é o mesmo que dizer “o quanto faz sentido no momento” e no exemplo do Hobbit eu vou elaborar adiante como escolhi interpretar esse caso.

Para concluir o 2º ponto de nossa reflexão, começamos a ter uma ideia mais estruturada de quantas criaturas apareceriam num Encontro Aleatório:

  • Nos ermos:

Número Indicado (com uma % no covil, ao invés de estarem errantes)

  • Na Masmorra:

Se Nível do Monstro ≅ Nível da Masmorra → 1 monstro para cada 3 aventureiros (1 grupo se forem “humanoides normais”)

3. O Encontro Hexcrawl ou com Quantos Goblins se faz uma Cantiga?

Agora vamos ao exemplo prático. Para esse exemplo, vamos supor que o Mestre está usando as tabelas de monstros e seus valores da forma como elas foram propostas, ou seja, para popular a sua Masmorra e região ao redor previamente. Sim, sim, eu sei, eu também sou um mestre preguiçoso igual a você que usa as tabelas para rolar o que vai acontecer na hora e vamos lá. Mas fazer com que algo rolado na hora faça sentido, requer uma grande dose de esforço e prática de improviso, algo que a maioria de nós não tem quando começamos a jogar RPG. Portanto, um nível mínimo de preparação sempre é bom, ou pelo menos até que você tenha praticado o suficiente para “se virar nos trinta”.

Então, para seguir com nossa analogia com o Hobbit, imaginemos que o Prof. Tolkien em vez de contar a história para seus filhos, estava mestrando uma sessão de D&D Hexcrawl para eles. Começamos com a preparação dos hexágonos e a determinação de seu conteúdo.

Falando rapidamente sobre o estilo, um Hexcrawl consiste de uma região erma, no nosso caso as Terras Ermas do Hobbit, cujo mapa nós iremos dividir em hexágonos, cada um representando algumas milhas (o OD&D recomenda 5, mas eu uso 6 para facilitar o uso de múltiplos de 3 com o Movimento dos personagens).

Uma vez que o mapa está pronto, usando as tabelas no Vol. 3 — Underworld and Wilderness Adventure, determinaremos o terreno de cada hexágono e o tipo de criaturas que o habitam e podem ser encontradas ali, além de adicionar qualquer característica ou ponto de interesse especial.

Voltando ao nosso D&D de Tolkien, depois de dividir o mapa, o professor começa a rolar nas tabelas para determinar o que há em cada um dos hexágonos (e é isso que o mestre preguiçoso, como eu, vai fazer correndo enquanto os jogadores estão decidindo qual deles vai pagar a conta da taverna imaginária com dinheiro imaginário).

Quando chega ao hexágono que cobre a passagem pelas Montanhas Sombrias, Tolkien rola na tabela de terreno e o resultado são 300 goblins. E agora? Como isso vira um encontro de viagem? Por enquanto não vira, isso é apenas o que há de habitantes principais daquele hexágono, o encontro ainda não aconteceu (porque Tolkien, diferente de mim, não era um mestre preguiçoso).

Então temos 300 goblins vivendo num hexágono. Muito bom, quer dizer, exceto pra quem tem que passar por ali. Mas vamos adiante, desses 300 goblins, seguindo a referência, 50% estarão no seu covil, ou seja, 150 goblins sempre habitam a Cidade Goblin nas montanhas enquanto os outros 150 estão vagando pelas 6 milhas ao redor dela. Então já vemos uma mudança aqui naquela anedota, pois você não vai virar na próxima moita e encontrar 300 goblins, só temos 150 deles que podem brotar de moitas… quem disse que a vida do aventureiro é tão difícil assim?

Mas agora que temos um covil com metade da população goblin desse hexágono, podemos pensar em como é esse covil e é assim, caro leitor, que nasce uma nova Masmorra. A Cidade Goblin é a Masmorra que vamos popular com esses 150 goblins que rolamos aleatoriamente. Quantos níveis ela vai ter, cabe ao Mestre decidir e isso irá influenciar em quantos monstros os aventureiros vão encontrar, como veremos adiante.

Com seu hexcrawl populado, o Prof. Tolkien começa a mestrar a aventura do dia para seus filhos, que conseguem cruzar o hexágono sem encontrar nenhum dos 150 goblins errantes. Porém ao acamparem nas montanhas, Thorin e Cia caem num Encontro Aleatório ao tentarem se abrigar de uma tempestade (e dos gigantes que aproveitaram a ocasião para jogar queimada com pedregulhos, o tipo de característica especial do hexágono que eu citei antes).

Ora, ora, Tolkien, diferente de mim, não precisa inventar nada de improviso, ele já sabe os monstros que habitam ali e qual o seu número, mas levando em consideração a “prudência com números exatos” e o fato que seria impossível 150 goblins caberem na gruta que serve de porta de entrada da Masmorra, Tolkien lida com o encontro usando os parâmetros de Masmorra, já que ele aconteceu na soleira da mesma.

Usando os parâmetros que determinamos antes, sabemos que, na Masmorra, para cada 3 aventureiros, os “humanóides normais” de nível equivalente ao nível da Masmorra, aparecerão em 1 grupo. Estamos no nível zero da Masmorra, afinal ainda é a superfície, apenas a entrada, logo as criaturas são superiores em 1 ao nível em que se encontram. Sabemos que Thorin & Cia eram compostos por 13 anões, 1 hobbit e 1 mago, logo 15 aventureiros, então teríamos 5 grupos de goblins nesse encontro (1 para cada 3 aventureiros). Mas afinal, quanto é um grupo?

Aha! Eu sabia que você ia me perguntar isso em algum momento. E é aqui que vamos usar aquilo que justifica a presença de uma inteligência humana por detrás do escudo e não apenas um algoritmo, algo chamado “arbitragem”. Um jeito poético de dizer “se vira aí, amizade, esse é seu trabalho como mestre”. Bom, eu posso te mostrar como eu faço para decidir, se funcionar para você, excelente!

Você poderia utilizar o mesmo dado usado para gerar os monstros em primeiro lugar. Para 4 a 400 goblins eu rolaria 4d10 x 10, então 1 grupo de goblins são 1d10 goblins. Simples não é? Exatamente por isso eu uso esse método, já mencionei como sou um mestre preguiçoso?

5 grupos de goblins seriam 5d10 goblins (5–50), o que por si só já seria um número audacioso. Mas lembre-se, isso seria para monstros de nível equivalente ao nível da Masmorra e estamos no nível zero, ou seja, os monstros estão 1 nível acima. Como resolvemos isso? Eu sugiro cortar pela metade a quantidade de dados, novamente, a solução mais ágil primeiro.

Rolando 3d10 em vez de 5, nosso número de goblins cai para (3–30), muito mais modesto, mas ainda assim não um confronto simples para 15 personagens (lembre-se em OD&D qualquer confronto é perigoso a menos que você tenha uma vantagem muito superior). Felizmente, nós não precisamos resolver um confronto aqui e agora, pois o encontro aleatório aconteceu durante a noite, enquanto os personagens dormiam, o que deu aos goblins a chance de simplesmente arrastar os pôneis pra dentro da entrada da caverna e depois rolar os anões pela abertura antes de fechá-la (lembrando que rolamos sempre 1:12 para encontros quando em acampamento, mas ninguém tinha ficado de vigia, então eu se fosse o Tolkien desse exemplo teria rolado 1:6 normalmente).

Agora passamos do ambiente dos ermos para a Masmorra. Na Masmorra, os anões de início estão cativos, pois lembre-se que existem 150 goblins vivendo aqui, os que os pegaram no portão são só o grupo de batedores. E enquanto são empurrados, chicoteados, mordidos e beliscados, sim, beliscados, precisam ouvir a cantiga dos goblins (a propósito, respondendo a pergunta anterior, quantos goblins são necessários para uma cantiga? Nesse caso, entre 3 e 30).

Ao serem levados ao salão do Rei Goblin, os aventureiros estão em maus lençóis, pois no centro da caverna, com certeza haveria um outro encontro, dessa vez possivelmente maior. Imagine que da mesma forma que nós cortamos metade dos dados no nível zero, pois o Nível do Monstro era maior que o da Masmorra, se supormos que o salão do rei fica no 2º nível por exemplo, teríamos o dobro de dados, ou seja, 10–100 goblins. Não é à toa que no livro, Thorin tenta conversar com o Rei Goblin e dizer que sua companhia tratava-se apenas de viajantes cruzando as montanhas. Quase nada incentiva tanto o diálogo como a possibilidade de ser trucidado por goblins furiosos.

Para sorte dos aventureiros, Gandalf conseguiu se esgueirar na confusão e preparou uma bela magia de fogo (eu chutaria um uso criativo de Fireball ou quem sabe Pyrotechnics, se o Tolkien estivesse usando o Suplemento 1: Greyhawk). O caso é que Gandalf solta um clarão invocado que explode todas as tochas arremessando faíscas e fogo e fazendo os goblins fugirem desesperados na escuridão (afinal, essas criaturas sofrem -1 de moral na luz).

Os anões e Gandalf fogem pelos corredores da Masmorra em busca da saída (mas não o Hobbit, porque esse caiu num buraco e foi bater papo com Gollum). Sim, leitor, os aventureiros fogem. Porque isso é a coisa sensata a se fazer quando se é capturado por um inimigo com números extremamente superiores e se tem uma chance de escapar. Você foge e torce pra achar a saída antes dos monstros te acharem.

Cada encontro da Companhia dentro da Cidade Goblin seria potencialmente perigoso, afinal, estamos rolando 5d10 para o 1º nível, 10 para o 2º e assim por diante até esgotar a quantidade de goblins do covil, que lembrando, são 150, dez vezes o tamanho de nosso grupo. Mesmo com um mago e espadas mágicas eu não gostaria de lutar nessas chances.

Graças a Gandalf a fuga é bem sucedida, já que os goblins não gostam de luz e clarões, o carro chefe do nosso camarada cinzento. Após uma noite de desespero, os anões conseguem atravessar a Cidade Goblin e chegar ao portão de baixo e à liberdade. E o nosso hobbit faz uma adivinha trapaceira e fatura um Anel de Invisibilidade, mas isso já é outra história.

Concluindo, você poderia dizer que toda essa interação aconteceria da mesma forma improvisando tudo na hora. Que toda a aventura na cidade dos goblins seria gerada no momento que os aventureiros cruzassem o hexágono e o Mestre rolasse 300 Goblins como Encontro Aleatório e esperasse um momento oportuno para pô-los em jogo. E eu não duvido de você. Inclusive já passei por situações não muito diferentes em jogo, embora duvide que eu tivesse esse nível de criatividade. No entanto, da próxima vez que isso acontecer com você e for preciso descobrir na hora aonde encaixar um encontro com 300 goblins, eu espero ter ajudado.

Até a próxima,

Memento Mori.

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Luis Oliveira

Ilustrador, rpgista e membro do Lampião Game Studio. Autor de jogos como NOIR e SMD. Instagram: @lpauloliveira