XP POR BUSCA

Uma alternativa para Jogos de Fantasia

Luis Oliveira
11 min readMay 20, 2024
Cena da animação “Contos de Terramar” (Descrição alternativa: primeiro plano sombrio com árvores retorcidas e pedras cobertas de limo; no plano de fundo, uma figura alta com um manto e cajado ao lado de uma figura menor guiando um animal de montaria, todos rumam em direção a uma colina verde encimada por nuvens cinzentas).

Saudações viajante,

Hoje eu gostaria de falar sobre uma das mecânicas que mais me interessam em jogos antigos de fantasia, embora também seja vista como uma das mais controversas de certa maneira. Trata-se da ideia de XP por tesouro, ou como eu gosto de chamar, “XP por carga” (falarei porque adiante). Desde que passei a estudar mais seriamente jogos de fantasia dos anos 70 e 80 e as culturas de jogo “clássica” e da “OSR” (que hoje vejo como duas coisas distintas, assim como a antiguidade clássica e a renascença), a estrutura do XP atrelado a algo tangível dentro da diegese do mundo de jogo, me trouxe um grande interesse e fascínio em como uma mecânica de recompensa consegue amarrar vários outros elementos, servindo ao mesmo tempo como propulsora da intencionalidade de aventurar-se (no contexto ficcional), mas também como lastro de duração da partida, ou seja, dá ao mesmo tempo um objetivo e um contador de tempo, modulando simultaneamente o ritmo e a tensão do jogo.

TESOUROS, CARGA E MOTORES DE RECOMPENSA

Explicarei melhor, incluindo o porquê chamo de XP por carga: vamos avaliar a estrutura de “XP por tesouro” para ver o que realmente se recompensa, usando de base o texto fornecido na edição inicial de D&D em 1974 e suas edições de 1977 e 1981 por Holmes e Moldvay, respectivamente, já que são as maiores fontes utilizadas na cultura de jogo “clássica” e resgatadas pela cultura da “OSR”:

Os pontos de experiência são atribuídos aos Jogadores pelo Juiz (…) quando obtêm várias formas de tesouro (dinheiro, gemas, joias, itens mágicos, etc.), eles ganham “experiência”. Isso aumenta seu total de pontos de experiência, fazendo-os subirem de nível. Os ganhos em pontos de experiência serão relativos; assim, um Arcanista de 8º nível operando no 5º nível da masmorra receberia 5/8 de experiência. Vamos supor que ele ganhe 7.000 Peças de Ouro ao derrotar um Troll (…) uma experiência seria concedida em uma base de 7/8; 7.000 PO + 700 por matar o Troll = 7.700 dividido por 8 = 962,5 x 7 = 6.037,5.

GYGAX & ARNESON, Dungeons & Dragons 1974, vol.1 Men & Magic (tradução livre).

Experiência acumulada é medida em pontos de experiência. (…) Experiência por tesouro recuperado é na base de 1 ponto para cada peça de ouro. Converta joias, gemas, etc. para o valor em peças de ouro.

HOLMES, Dungeons & Dragons, 1977 (tradução livre).

Quando a aventura acaba, o DM dá pontos de experiência aos personagens sobreviventes. (…) Para cada 1 peça de ouro de tesouro não-mágico que os personagens recuperem, o DM deve dar 1 XP para o grupo (isso será dividido entre todos os personagens jogáveis).

MOLDVAY, Dungeons & Dragons Basic Rulebook, 1981 (tradução livre).

Vemos então que a recompensa por tesouros seria dada na base de 1 XP por peça de ouro recuperada ao final da aventura. Porém, essa experiência em nada é atrelada ao que é feito com esse tesouro. Tanto faz se o tesouro for usado para transformar personagens em senhores de terras com castelos, ou distribuído entre o povo da cidade, ou sequer atirado no poço mais próximo. Uma vez que o tesouro é “recuperado”, sendo trazido de volta ao ponto de partida no final da aventura, recebe-se XP por ele.

Veja então que, na verdade, não estamos recompensando a descoberta de tesouros, uma vez que encontrar um tesouro de milhões de peças de ouro de nada adianta a menos que você possa trazê-lo consigo (o que se tornou um grande axioma dentro da cultura de jogo da OSR, levando em conta a logística de transportar tesouro). Não está se recompensando sequer o acúmulo de tesouros, uma vez que após receber a experiência devida, se uma personagem escolher se desfazer do tesouro, isso não acarretará prejuízos à sua quantidade de XP. O que estamos recompensando então, e esse será um ponto importante para a discussão que proponho nesse texto, é o transporte desse tesouro do ponto A ao ponto B.

E a partir daí eu chego ao porquê gosto do termo XP por carga. O motor de XP recompensado por unidades de algo tangível no mundo de jogo, está diretamente relacionado a carga e é essa relação que torna esse mecanismo de recompensa viável. Se XP fosse recompensado por qualquer tesouro sem o lastro da carga, nada impediria que personagens ganhassem XP incomensurável ao encontrar o tesouro de um dragão, por exemplo. No fim das contas, o XP vem apenas do total de unidades de recompensa que uma personagem puder carregar. Quanto mais dessa “coisa que dá XP” for carregada, mais experiência será recompensada no final, porém, haverá mais sobrecarga aos personagens, tornando o progresso na aventura mais lento, aumentando a chance de encontros aleatórios hostis e minando os demais recursos do grupo. Ao mesmo tempo que essa “unidade de recompensa” (originalmente tesouros) serve de propulsor às aventuras, sem necessidade de criação de “ganchos” para além da própria recompensa, também gera um lastro para a aventura em si.

Conforme experimentei com esse motor de recompensa, percebi que é um dos meus preferidos para motivar jogos “de mundo aberto” ou “sandbox” como alguns preferem chamar, ou seja, jogos onde uma vez dado esse objetivo claro do que vai gerar a recompensa final, quem joga está livre para seguir qualquer curso desejado para alcançá-lo, sem a necessidade de um “roteiro prévio”. Também valorizo muito a questão da clareza e transparência do “1 xp por 1 unidade de tal coisa” que advém desse motor, principalmente em relação a motores de recompensa mais crípticos ou que dependam da subjetividade de quem arbitra, como “marcos” ou “avanços na história” que não sejam definidos claramente no início do jogo.

A FANTASIA DO DESTINO MANIFESTO

Porém, apesar de reconhecer a elegância mecânica do motor de recompensa descrito acima, existe uma questão que deve ser apontada. Não é coincidência que a unidade de recompensa escolhida originalmente fosse a peça de ouro. Temos que lembrar que nada é criado num vácuo e que o jogo de masmorras e dragões dos anos 70 foi escrito num contexto do meio oeste estadunidense, influenciado por um modo de pensar capitalista e inspirado na fantasia heroica do início do século 20, que possui tons coloniais e imperialistas. Temos na camada ficcional proposta, grupos de pessoas que saem do “mundo civilizado” para desbravar os “ermos selvagens”, pilhar quaisquer riquezas dos povos originários desses “ermos” e por acumular essa riqueza são recompensados não só com maior poder político (castelos, títulos, terras) como também com maior poder fisiológico e sobrenatural (mais pontos de vida, poderes, feitiços). É a narrativa de legitimação do conquistador sobre os povos conquistados, o “destino manifesto” que tanto figura nos mitos de “pais fundadores” da cultura norte-americana.

Dito, isso, será que tal mecânica precisa estar sempre reproduzindo essa mesma narrativa? Ou seria isso uma escolha de nós que a utilizamos em nossos jogos? Precisamos sempre reconstruir a saga do bandeirante da fantasia? Correndo o risco de um pedantismo filosófico, o “sistema” é assim porque tem que ser ou porque deixamos que seja?

Pensando sobre isso, desejava ainda usar um motor de recompensa transparente e tangível como o do XP por carga, mas que pudesse ser expandido para além do contexto ficcional “invasão, saque, pilhagem” ao qual foi originalmente atrelado. Minha tentativa é o que se segue.

O XP POR BUSCA

Partindo da ideia anterior de que teríamos um motor que recompensa carregar a “unidade de XP” do ponto A ao ponto B, decidi expandir esse pensamento para deixá-lo genérico o suficiente de modo a suportar diversos tipos de aventuras ou “buscas”.

Para isso comecei a pensar sobre as unidades de recompensa, partindo por base daquelas usadas originalmente. Como foi citado por Holmes anteriormente, teríamos por base a peça de ouro e demais itens especiais como joias e gemas que seriam convertidos num valor de peças de ouro. Moldvay acrescenta que isso se aplica apenas aos tesouros não-mágicos (algo a que sou favorável, já que itens mágicos têm em suas próprias capacidades uma recompensa, sem necessidade de outra adicional).

Então, para nosso motor mais abrangente, podemos começar com essas duas unidades. A peça de ouro é algo mundano, possuindo valor advindo da quantidade de material (ouro) contido nela e por isso gerando uma relação equivalente entre o valor da recompensa e a carga da mesma. Joias e gemas são itens mais raros e que podem valer mais do que apenas a sua massa material, representando recompensas que valem grandes quantidades de XP sem necessariamente ocuparem a mesma quantidade de carga.

Partindo daí, definimos duas unidades de recompensa para nosso “XP por Busca”:

  • Itens Mundanos: 1 de XP para cada 1 de carga (cn) de materiais mundanos;
  • Itens Especiais: XP equivalente ao valor estimado, independentemente de sua carga;

Ambas as recompensas precisam estar relacionadas ao objetivo da busca, que seria definido pelo grupo de jogo ao iniciar a partida (da mesma forma que o objetivo originalmente é sempre ir atrás de algum tesouro).

CENÁRIO 1: LENHA PARA O INVERNO

Digamos então que temos o seguinte cenário:

Moradores da vila têm de ir à floresta em busca de lenha para o inverno que se aproxima.

Esse não seria um objetivo normal de aventura pela ideia de XP por tesouro tradicional, uma vez que não se está em busca de riquezas propriamente ditas. Porém, usando a ideia de XP por busca, podemos tornar esse um objetivo perfeitamente válido para nossa aventura, não só ficcionalmente como mecanicamente, sem depender de uma subjetividade de “marcos cumpridos” (se eu trouxer 10 gravetos é suficiente pra cumprir o marco? Ou tenho que trazer 100? Ou derrubar uma árvore? Ou 10 árvores? etc.).

Nesse cenário acima, cada 1 de carga em lenha (material mundano) o grupo conseguiria 1 de XP. Dessa forma, quanto mais lenha, mais XP, porém maior dificuldade em carregar essa lenha de volta à vila, maior tempo passado na floresta, mais rações consumidas, maior chance de encontros aleatórios, etc. Deixamos a cargo de quem joga e não de uma arbitrariedade subjetiva, o quanto de XP será trazido pelo grupo no final da aventura.

CENÁRIO 2: DEVOLVER O ÍDOLO SAGRADO

Vejamos outro cenário, que lida com os itens especiais:

Membros de uma ordem religiosa devem levar um ídolo de volta ao templo de sua Deusa.

Nesse caso já temos um cenário que parece envolver mais um tipo de tesouro, mas note que aqui não estamos pilhando a relíquia ancestral de um povo e sim devolvendo algo a seu local de direito. Mecanicamente, porém, podemos usar o mesmo motor de XP, assumindo o ídolo como uma joia e determinando seu valor usando alguma das muitas tabelas de tesouro presentes em jogos clássicos de fantasia. Usando o D&D de 1974 por exemplo, uma joia pode prover de 300 a 10.000 de XP, pesando apenas 20 de carga.

Em nosso cenário então, o pequeno ídolo, cujo valor simbólico é muito maior que sua carga, seria um item especial rendendo XP igual a quantidade rolada na tabela de joias, ao ser devolvido em segurança para seu templo.

CENÁRIO 3: A FESTA DA PRIMAVERA

O festival da primavera se aproxima e é preciso trazer flores da campina para o jardim da cidade.

Personagens teriam de trazer as flores (item mundano relativo ao objetivo) do ponto A (campina) ao ponto B (jardim da cidade), recebendo 1 de XP por cada flor (1 cn). Digamos que eles encontrassem uma planta rara, uma muda que floresce apenas a cada geração, por exemplo, o valor dela em XP poderia ser determinado como uma gema ou joia e adicionado à recompensa do grupo, se conseguissem trazê-la para plantar no jardim da cidade.

OS MEMBROS DA BUSCA

Com os cenários acima já temos uma abrangência maior no nosso rol de aventuras, mas eu ainda não estava completamente satisfeito, uma vez que outro elemento do motor de XP original estava de fora, a experiência advinda dos confrontos com criaturas. Porém, novamente, como minha ideia era expandir as possibilidades da camada ficcional de jogo, a partir da ideia do D&D de 74 de 100XP por nível de monstro derrotado, proponho o seguinte:

  • 100 XP por nível dos seres envolvidos no cumprimento da busca;

Então, pegando o Cenário 1 sobre colher lenha, digamos que o grupo precisasse escapar de uma matilha de lobos, cada lobo renderia XP de acordo com o nível, já que se colocaram como um obstáculo à busca. No Cenário 2, além do ídolo, digamos que houvesse uma comitiva de sacerdotes sendo escoltados ou aliados que foram encontrados no caminho e ajudaram dando direções até o templo, eles também renderiam XP por suas interações com o cumprimento da busca.

Podemos ir até mesmo além e de acordo com o tipo de busca, contar até mesmo os próprios personagens chegando em segurança ao objetivo como parte do XP. Veja o exemplo adiante:

CENÁRIO 4: VIAGEM À CAPITAL

Uma família de aldeões decide viajar até a capital para o feriado do Solstício de Verão;

Cada personagem participante da busca renderia XP baseado no nível em que estivesse quando chegassem ao seu objetivo. Encontros na viagem que prejudicassem ou ajudassem a cumprir a busca também renderiam XP. Qualquer item mundano ou especial também poderia ser contado se envolvido no cumprimento da busca (recolher troncos para uma balsa sobre rios profundos, por exemplo).

Levando em conta os membros da busca para a contagem de XP também passa a pôr um maior valor no grupo de personagens. Tradicionalmente, apesar de se apregoar que o jogo é coletivo, na verdade a melhor situação para todos os personagens é que pouco antes do fim da partida, todos os demais pereçam, para que a experiência não seja dividida. Contratados passam a ser vistos como recursos dispensáveis, já que, se eles chegam vivos ao fim da partida levam consigo uma porção do XP. Temos, na verdade, um jogo em que todos jogam de forma individual, embora estejam em grupo. Do ponto de vista mecânico, a sobrevivência dos companheiros só interessa até um momento antes de dividir a recompensa (outra influência do modo de pensar capitalista, de competição perene por recursos “escassos”).

Quando se passa a envolver as próprias personagens e aqueles que as acompanham em sua busca no total de XP recompensado, temos um incentivo para que o grupo inteiro chegue em segurança no objetivo, pois assim, todos receberão maior XP.

Eu adicionaria ainda que a divisão de XP seja feita pelo próprio grupo, de acordo com o que julgarem necessário. Afinal, num sistema de regras em que certas classes avançam de forma diferente, talvez seja mais vantajoso dar mais XP a um personagem que subindo de nível terá acesso a magias de cura ou algum outro recurso útil ao grupo, do que dividir igualmente e ninguém alcançar nada de útil.

RECAPITULANDO

Resumindo então minhas propostas para o XP por Busca, temos as seguintes recompensas para aquilo que se relaciona ao cumprimento da busca determinada pelo grupo no início da partida:

  • 1 XP para cada 1 de carga de itens mundanos envolvidos no cumprimento da busca;
  • 100 XP por nível de seres envolvidos no cumprimento da busca.
  • XP variável por elementos especiais envolvidos no cumprimento da busca;
  • O XP é recompensando ao final da partida e distribuído entre o grupo como preferirem.

Por enquanto é isso, escrever e refletir sobre essas ideias me fez pensar que não necessariamente precisamos continuar amarrando regras de jogos antigos ao contexto ficcional em que elas foram inicialmente atreladas, e que os sistemas (não apenas de jogos) não são o que são porque necessariamente é o único caminho possível, mas porque alguém escolheu que fosse dessa maneira, e da mesma forma, se estivermos dispostos, podemos escolher reconstruir, reformular e recriar algo diferente.

Até o próximo texto,

Memento Mori.

--

--

Luis Oliveira

Ilustrador, rpgista e membro do Lampião Game Studio. Autor de jogos como NOIR e SMD. Instagram: @lpauloliveira