Dear White People e o silêncio ensurdecedor da internet

E o que racismo tem a ver com 13 Reasons Why

Gabriela Moura
8 min readMay 1, 2017

A Netflix lançou a série Dear White People esta semana. Se você já assistiu ao filme, lançado em 2014, talvez ache que já sabe o que esperar. A série, porém, é um tanto mais contundente, mas pode parecer fraca para os que já estão muito familiarizados com os debates e tensões apresentadas na novelinha.

Talvez esse post contenha spoilers. ¯\_(ツ)_/¯

Eu assisti a série procurando os motivos que levaram a produção a sofrer boicote em massa nos EUA após a exibição do teaser em um evento.

No vídeo, uma mulher negra que parece ser uma locutora de rádio fala ao microfone uma lista de fantasias de Halloween que são totalmente aceitáveis para pessoas brancas “pirata, enfermeira, qualquer um dos primeiros 43 presidentes americanos…” e o topo da lista de fantasias inaceitáveis “eu“, seguida por inúmeras imagens de homens e mulheres brancos com o rosto pintado para parecerem negros.

A mensagem de Dear White People é bem clara e critica a tradição da Blackface que começou no século XIX nos shows de menestréis, nos quais atores brancos se pintavam de preto usando carvão de cortiça para representar personagens afro-americanos de forma pejorativa. Dessa maneira, além de reforçar estereótipos racistas, a atitude também impedia que pessoas negras participassem de apresentações teatrais.

Só por volta de 1960, com o crescimento dos movimentos dos direitos civis, que buscavam igualdade para afro-americanos, esse tipo de atitude começou a entrar em declínio, mas não foi completamente extinta.

Mesmo com esse contexto, muitas pessoas se sentiram ofendidas pelo conteúdo do teaser de Dear White People e começaram a avaliá-lo negativamente em massa. Até o momento, o vídeo tem cerca de 500 mil visualizações e mais de 120 mil negativações. Para fins de comparação, o trailer do filme de Adam Sandlerpara a Netflix, The Ridiculous 6, tem mais de 7 milhões de visualizações e apenas 6 mil avaliações negativas.

Nos comentários, além de muitos ameaçarem cancelar o serviço por se sentirem ofendidas pelo conteúdo, alguns fazem ofensas preconceituosas direcionadas às “queridas pessoas negras”.

E o que me surpreendeu é que eu consegui, sabe-se lá como, encontrar um paralelo perfeito entre Dear White People e 13 Reasons Why.

Semanas atrás eu me deparei com uma internet fervilhando de posts sobre “não ser um por quê” na vida de alguém. Uma alusão à personagem Hannah Baker, da série 13 Reasons Why, que cometeu suicídio após gravar 13 fitas k7 contando sobre como o comportamento das pessoas eram os 13 motivos pelos quais ela havia decidido tomar aquela atitude. Até ai eu tenho certeza que vocês sabem porque a internet literalmente parecia não ter outro assunto. E olha que minha bolha é relativamente grande. Só no Facebook são quase 5 mil contatos e 12 mil seguidores. E a minha timeline foi inundada por: Hannah, suicídio, Hannah, fitas, Clay, Hannah e até uma corrente bizarra que consistia em pedir para seus amigos comentarem um status seu e você responderia cada comentário falando para aquela pessoa se ela seria um “por quê” na sua vida — super saudável.

Muita gente conseguiu enxergar que o que foi minando a saúde mental da personagem foi machismo e muito se debateu sobre o que foi chamado de “irresponsabilidade” ao mostrar uma cena explícita de automutilação. Críticos de cinema investiram tempo e argumentação buscando compreender qual era a proposta da série, e como aquilo deveria servir para que revíssemos nosso comportamento com pessoas que sofrem. Estupro e o descaso de pais e educadores diante de casos de violência sexual contra adolescentes também estiveram em pauta.

Com Dear White People isso não está acontecendo.

Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até ser enfrentado — James Baldwin

Curiosamente, nem metade do barulho foi feito sobre racismo, mesmo que o preconceito racial esteja diretamente ligado a tensões sociais propulsoras de transtornos mentais, como já expliquei aqui:

Dear White People é sobre racismo velado, explícito, e a relação entre os próprios militantes e seus diferentes pontos de vista sobre a luta. É sobre a problemática do empoderamento estético, que exige gastos, dor física e um esforço para ser aceito. É sobre as pessoas esperando que você, negro, seja o representante de todas as pessoas negras do mundo — como quando o professor de História de Samantha espera DELA a resposta sobre uma questão relacionada à escravidão, e todos olham para a menina aguardando que ela dê seu parecer. Afinal, ela é negra, obviamente ela TEM que falar a respeito. Ou os homens que se aproximam de Coco por a acharem muito bonita, mas nem cogitam um relacionamento sério ou levá-la para conhecer suas famílias.

Eu entendo. A percepção de que você contribui para uma sociedade racista pode ser perturbadora. Mas, você parece uma mulher crescida.

Mesmo assim, Dear White People ofende pessoas brancas que acham um absurdo serem reduzidas a um estereótipo — compreendem a ironia? Por este motivo surgiu o boicote na apresentação da série nos Estados Unidos.

As insistências de Samantha para escancarar o racismo na universidade, em especial após uma festa de black face, promovida por um grupo de alunos brancos conhecidos por sua revista “satírica” e à qual deram o carinhoso nome de Dear Black People — em resposta ao programa de radio de Samantha — a fazem virar persona non grata no espaço, sofrendo advertências por parte do reitor — um homem negro que alimenta o perfeccionismo de seu filho — chacotas e deboches. Tudo piora após um aluno ser alvo de violência policial em uma festa, onde a “””confusão””” foi iniciada pelo ato racista de um aluno branco que reivindicava o direito de falar “nigga”, piorando uma tensão já existente.

Eles [pessoas brancas] estão muito ocupados dando tapinhas nas costas uns dos outros por nos deixarem entrar [na universidade].

O debate circula em duas instâncias: como é a relação com um mundo racista e como é a relação entre militantes negros. Uma das questões, por exemplo, é quanto estamos dispostos a nos sacrificar para sermos mais bem aceitos em espaços brancos.

As pessoas olham minha pele e presumem que sou pobre, ou sem instrução, ou mendiga. Então é, é pessoal. Eu quero ser mais palatável, entrar para uma irmandade, o que há de errado nisso?

Fui eu que te falei de Assata Shakur. E o que ela diria de você detonando sua conta bancária por um aplique?

Ao longo do enredo, a busca por pertencimento, a constante exposição à violência e os personagens brancos podem ajudar o expectador brancos a se verem nas cenas, como em um espelho. Isto é, caso assistam. Dear White People é mais leve do que deveria ser e mais suave do que gostaríamos que fosse. Mas, ainda assim, suficiente para realizar um convite à reflexão. Entretanto, o silêncio ensurdecedor das redes sociais é tudo o que resta. Se, por um lado, 13 Reasons Why acendeu os debates sobre comportamento suicida, por outro, Dear White People poderia ser um pontapé inicial para falar sobre raça. Não está acontecendo. Será que veremos organizações criando eventos para falar de depressão causada pelo racismo, e como os brancos são responsáveis com sua negligência ao se oporem a falar de raça?

Em um certo momento da série, os sentimentos do personagem branco, que se coloca sensível à causa negra, também são decupados. A meritocracia latente daqueles que vivem propagando seu apoio aos debates raciais mas que, no fundo, se sentem vitimizados ou ameaçados quando veem negros se reunindo em volta de suas pautas, me lembraram a motivação que me levou a escrever sobre manipulação, quando passei uns três meses observando exatamente este comportamento.

Também é relevante refletir sobre como um militante é tratado quando age de maneira veemente sobre seus objetivos. Não é raro que sejam acusados de extremismo, segregação ou pessimismo. Sabe quando aquela pessoa namastê vira e fala “mais amor, por favor”? Isso dá a entender que pessoas negras são sabem amar, e, por serem selvagens, só conhecem a violência como forma de linguagem. Esse é o racismo naturalizado e institucionalizado, onde a voz do negro, que é a vítima direta da violência racista, não apenas é desacreditada como, também, utilizada como munição pelo agressor. Daí surgem aquelas frases já conhecidas: você vê racismo em tudo. Os negros são os principais racistas. Etc, etc, etc.

Você não acusa o médico de ter te infectado só pq ele diagnosticou seu problema.

A festa de black face Dear Black People foi uma “piada” criada por alunos brancos que “se ofenderam com os pedidos de Samantha por mais sensibilidade racial”. Logo na primeira cena vemos as pessoas pintadas de marrom, usando box braids e turbantes. O que pode ser uma mão na roda aos menos preguiçosos na hora de entender os papos sobre dois principais tópicos: apropriação cultural e estereótipos negativos.

As opções são drama urbano barato ou pornô trágico. Quando acidentalmente nos dão um filme de qualidade, eles acham que isso os dá direito de nos tratarem feito merda. Licença moral de classe.

Tipo Tarantino…só porque ele deixou o Jamie Foxx matar um bando de racistas em Django Livre, ele acha que pode fazer carnaval com todos os estereótipos negros da história.

- (…) racismo, aqui? Eu não acredito! *ironia*

- Quem poderia imaginar? *ironia*

- É, eu achei que o presidente Obama tinha resolvido isso. *MUITA IRONIA*

Ao mesmo tempo, Samantha e alguns outros personagens se irritam com as evasivas de Troy, menino negro filho do reitor, em assumir posturas mais enérgicas. Troy não quer manchar sua imagem, e é visto como a ponte entre os alunos brancos e negros. Seu pai controlador dita o que ele faz, com quem ele fala e quais atitudes precisa tomar para manter seu alto nível de popularidade — um esforço hercúleo que compreendemos quase no final da série.

Um sistema que exige perfeição em troca de igualdade, é insustentável e injusto…muito injusto

Silêncio é tudo que há. Será que leremos pessoas brancas refletindo sua postura da mesma forma que dedicaram tempo e tutano falando sobre o machismo sofrido por Hannah de 13 Reasons Why? A resposta está em uma das falas de Samantha:

Espero que ainda estejam aí, porque com certeza o racismo ainda está.

Curtiu o post? Clique no coraçãozinho pra ajudá-lo a correr por aí!

--

--

Gabriela Moura

Alma presa numa mente maluca e um corpo descoordenado. É o que tem pra hoje. Escritora. Feminista. RP. Desenhista. Troublemaker.