Mortes negras são a nova pornografia — nós nos tornamos insensíveis

(tradução com pitacos da Gabi)

Gabriela Moura
13 min readApr 20, 2017

Traduzo abaixo o artigo “Mortes negras são a nova pornografia — nós nos tornamos insensíveis”, publicado no site Afropunk. Clique aqui para ler o original em inglês. Texto original de Michael Harriot.

Em 1964, no caso da Suprema Corte de Jacobellis versus Ohio, Potter Stweart[1] tentou explicar seu sentimento sobre considerar algo obsceno ao escrever:

“Eu não tentarei mais definir os tipos de material que eu entendo serem abraçados dentro desta breve descrição; e talvez eu nunca possa fazê-lo inteligentemente. Mas eu sei quando o vejo.”

O engraçado é que o caso de obscenidade em questão foi sobre o filme francês The Lovers. Se você ousar assistir ao longa-metragem hoje, se questionará “era isso que os preocupava tanto?” Eu o vi, e embora eu não quisesse que uma criança de sete anos o assistisse, não o chamaria exatamente de “pornográfico”. De fato, pornografia tem se tornado cada vez mais subjetiva conforme nossa exposição a ela aumenta. O que costumava ser considerado pornografia, hoje são apenas cenas básicas de filmes PG13 [2]. A cena banida de Instinto Selvagem é parte de um comercial, e deve haver três atrizes em toda a Hollywood de quem não possamos encontrar fotos de seus seios. O que era ultrajante para nossos avós, é normal agora.

É assim que a mente funciona. Eventualmente nós vemos ou experienciamos algo tantas vezes, que não é chocante aos nossos cérebros mais. Obscenidade foi de decote a seios nus, a nudez total, e que não mais nos causa impacto. Nós precisamos ver cusparadas, tapas e danças eróticas, porque nos dessensibilizamos.

É assim com sexo. É assim com violência (lembra quão perturbadoras eram as bumfights [3] 10 anos atrás?). E é assim com corpos negros.

As fotos do rosto de Emmet Till eram incrivelmente chocantes para as pessoas. Quando o filme Roots foi lançado em 1979, os mais velhos dirão como eles foram para a escola no dia seguinte furiosos com as pessoas brancas. As poucas e horríveis cenas de escravidão e mutilação causaram um clamor difícil de ignorar. Mesmo o vídeo de Rodney King [4] causou um tumulto nacional. O vídeo de Eric Garner [5] ultrajou milhões pelo país. Eles nunca tinham visto um corpo negro ser realmente apagado. Aquilo foi perturbador para muitas pessoas.

Mas isso não é mais verdade.

Agora, há um novo vídeo de brutalidade policial ou, alguém sendo morto ao vivo na internet em cada feed de notícias e timeline. Trocamos imagens de telefone celular de matança negra como cards de Pokemon. E não são apenas pessoas brancas machucando pessoas negras. São clipes do mundo das estrelas de hip-hop. São brigas entre meninas adolescentes após a aula. É polícia sufocando alguém até a morte. São fotos do Trayvon [6] morto na rua. É a morte negra em alta definição de imagem e som no Facebook Live, Instagram e Snapchat. Nos tornamos nossos próprios pornógrafos de câmeras escondidas, transmitindo o desaparecimento de corpos negros como se fossem filmes de festa de aniversário ou de formatura.

E o mundo está se tornando insensível.

Mesmo que não estejamos contribuindo para nossas próprias mortes através da distribuição dessas imagens, estamos ajudando o resto da América a desenvolver uma imunidade. Nós criticamos o mundo por não fazer nada sobre as vidas negras e depois viramos e fazemos da visão do sangue negro uma ocorrência comum. E as pessoas que se tornam imunes não são apenas os caucasianos que olham de longe — somos nós que ficamos entorpecidos por nossa própria dor.

Se você tivesse que aquecer o frango não temperado e a salada de batata das pessoas brancas uma vez por semana, você talvez não achasse delicioso, mas logo pararia de reclamar como aquilo seria horrível. É isso que acontece com a psique dos negros quando continuamos ingerindo as visões da supremacia branca e nossos cérebros se acostumam a testemunhar a violência contra nós — não importa quem seja o perpetrador.

Nós nos tornamos vítimas pré-condicionadas? Estamos lentamente começando a aceitar nosso destino? Mesmo que os vídeos sirvam pra alimentar nosso fogo interior, quanto tempo irá levar até nos acostumarmos ao nosso próprio calor?

As pessoas que compartilham estes vídeos não pensam sobre como se sentiriam se alguém explorasse o momento mais doloroso de suas famílias como se fosse piada, ou usar o momento de sua morte para ter atenção temporária como se fosse uma festa. É desrespeito aos mortos. É malícia.

Eu prometi há mais de um ano parar de assistir a vídeos de brutalidade policial. Eu não preciso vê-los para saber quão hedionda a polícia pode ser. Eu não quero aquelas visões acumuladas em minha mente. Duas coisas que eu não preciso ver: a vagina da Sharon Stone e o fim de uma vida negra. Eu não preciso de mais vídeos terroristas para explicar o que é a supremacia branca.

Eu sei quando a vejo.

Notas da tradutora:

[1] Potter Stewart foi Juiz Associado da Suprema Corte dos Estados Unidos da América de 14 de Outubro de 1958 a 3 de Julho de 1981.

[2] Nos Estados Unidos, há uma classificação para filmes chamada PG-13 que significa “Parents Strongly Cautioned” ou “Pais fortemente advertidos”. Essa classificação (ou selo) indica que o filme não é aconselhável para crianças menores de 13 anos. Fonte: site Cinescópio TV. http://cinescopiotv.com/2014/06/09/entendendo-pg-13/

[3] Bumfights foram uma série de filmes produzidos pela Indecline Films. Os vídeos mostravam adolescentes e pessoas em situação de rua das regiões de San Diego, São Francisco, Los Angeles e Las Vegas brigando em troca de dinheiro e, às vezes, álcool. Os vídeos foram alvo de muitas críticas de organizações como a National Coalition for the Homeless, que alegavam que os materiais disseminavam ódio e desumanizavam as pessoas em situação de rua. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Bumfights

[4] Rodney Glen King (Sacramento, Califórnia, 2 de abril de 1965 — Rialto, Califórnia, 17 de junho de 2012) foi um taxista afro-americano que foi violentamente espancado pela polícia de Los Angeles que o haviam detido sob a acusação de dirigir em alta velocidade na noite de 3 de março de 1991. O julgamento e absolvição dos agentes policiais envolvidos provocou os violentos tumultos de Los Angeles de 1992. A cena, registrada em vídeo por uma testemunha, correu o mundo. A absolvição dos policiais, em 29 de abril de 1992, por um juri formado por dez brancos, um negro e um asiático, provocou uma das maiores ondas de violência da história da Califórnia. Foram três dias de confrontos, incêndios, saques, depredações e uma onda de crimes que causaram 58 mortes, deixaram mais de 2800 feridos, destruíram 3.100 estabelecimentos comerciais e causaram prejuízos estimados em mais de 1 bilhão de dólares. Mais tarde, após os distúrbios, em 17 de abril de 1993 por volta das 7 horas da manhã, num novo julgamento, foi tomada a decisão de condenação de dois agentes dos distúrbios de Los Angeles, e a absolvição de outros dois. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rodney_King

[5] “Não consigo respirar, não consigo respirar!”. A frase pronunciada pelo afro-americano Eric Garner ao morrer asfixiado pelo abraço mortal de um policial, em julho, percorreu nesta quinta-feira várias cidades dos Estados Unidos, na segunda noite consecutiva de protestos desde que um júri de instrução inocentou o policial — uma decisão que desencadeou um debate sobre a violência policial contra a minoria negra e reavivou velhos fantasmas que o país acreditava estarem superados. Milhares de pessoas expressaram pacificamente sua indignação em Nova York, Los Angeles, Chicago, Boston, Minneapolis, Atlanta, Oakland e outros lugares. Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/05/internacional/1417759105_218357.html

[6] O Caso Trayvon Martin foi um assassinato ocorrido em Sanford, Flórida, Estados Unidos, em que o garoto Trayvon Martin foi alvejado pelo segurança George Zimmerman, na noite de 26 de fevereiro de 2012. Martin era um Afro-americano de 17 anos de idade, estudante do ensino médio. George Zimmerman, um homem de 28 anos de ascendência hispânica, era segurança de um condomínio onde Martin estava temporariamente hospedado e onde o tiroteio ocorreu. Após uma ligação de Zimmerman, a polícia chegou em dois minutos depois do disparo. Zimmerman foi levado em custódia. Ele apresentava uma lesão na cabeça, foi tratado e, em seguida, foi questionado por cinco horas. Por fim, acabou liberado sob a alegação de que o tiro foi em legítima defesa, fato que deu sequência a manifestações em várias cidades dos Estados Unidos. O julgamento de Zimmerman começou em 10 de junho de 2013 em Sanford. Em 13 de julho de 2013, ele foi inocentado das acusações de assassinato em segundo grau e de homicídio culposo. A respeito dos rumores espalhados de que o real motivo do crime seria racismo, os advogados de Zimmerman contestaram e prometeram publicamente mover ação civil contra a emissora de televisão NBC, acusando-a de “fabricar um crime de racismo” e ter desrespeitado o veredito da Justiça. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Trayvon_Martin

Hora dos meus dois centavos

Creio ser inegável que a violência visual influencie nossos níveis de sensibilidade. Este debate já é feito em análises sobre pornografia, como o autor coloca no início como exemplo. Preciso, contudo, chamar atenção ao fato de que o caso Eric Garner não apenas é muito recente como também é ilustrativo sobre como o choque visual promoveu uma onda de revolta da comunidade negra americana em relação à violência policial, contrariando o texto de Michael. “I can’t breathe” se tornou um movimento nacional e ganhou repercussão mundial. Ou seja, as pessoas não estavam tão insensíveis às imagens de como Eric teve sua vida ceifada brutalmente.

Créditos da foto: Dave Bledsoe

Porém, o autor não está errado ao afirmar que a contínua exposição a estes materiais torna a população menos sensível. Ele abre, inclusive, uma forte autocrítica à própria comunidade negra sobre a divulgação deste tipo de material. Lembrando que sua análise diz respeito à realidade estadunidense.

Trazendo para cá o mesmo debate, o que será que podemos tomar como lição a partir deste texto?

As fotos de Claudia sendo arrastada por uma viatura policial ou de Amarildo sendo abordado minutos antes de desaparecer rodaram todos os telejornais e veículos impressos. Também são comuns as imagens de negros amarrados a postes como “lição” a ser tomada por consequência de algum ato infracional, como furto de mercados, lojas ou mesmo sem nenhum caso que comprovasse responsabilidade sobre um crime, apenas por terem sido confundidos com assaltantes.

Eu tendo sempre a duvidar da capacidade de análise por meio de um único caminho. Aqui, por exemplo, podemos abrir duas questões. 1) Por que a população não-negra se tornou insensível às quedas de corpos negros? 2) Por que parte da comunidade negra parece — ao menos em um primeiro momento — “entorpecida por sua própria dor” (usando os mesmos termos que o autor usou ao questionar as razões pelas quais a comunidade negra divulga imagens de violência)?

Para o primeiro ponto, temos como uma das respostas o racismo. A morte negra não choca porque é vista como natural. E essa naturalidade tem muitas raízes. Será que Claudia receberia a devida atenção se fosse uma mulher branca sendo arrastada por uma viatura policial? Qual seria a posição da mídia se uma adolescente branca fosse atingida por tiros da pistola de um policial, dentro de uma escola particular em Pinheiros? E se uma criança branca de dez anos de idade fosse morta na frente de casa enquanto lia um livro, seria visto como mera fatalidade, como aconteceu com Eduardo de Jesus, morto em sua casinha humilde no Morro do Alemão? O racismo científico — conjunto de teorias que afirmavam que indivíduos negros eram intelectualmente inferiores, de hábitos animalescos e com sérios desvios de caráter — , mesmo que refutado há muito tempo, ainda paira no imaginário popular. Por esta razão, boa parte do sofrimento da população negra ainda é visto como consequência de sua própria degeneração — crimes, promiscuidade, entre outras conceituações de cunho moral — e não como produto de fatores socioeconômicos e históricos. Exemplo disso é o recente caso de Maria Eduarda — 13 anos, morta a tiros dentro da escola. Em vez de as energias serem aplicadas na investigação do crime e compreensão das dinâmicas da violência nas periferias, parte da população foi rápida ao encontrar uma imagem de outra menina — não identificada — segurando um fuzil em um local que PARECIA ser um baile funk, entonando a acusação: “Olha aí! Era namoradinha de bandido, merecia morrer porque coisa boa não era”. E lá foram os movimentos sociais desmentir o boato e explicar que não, aquela moça da foto não era Duda. Mas…e se fosse? Por que dizer que aquela jovem da foto, cuja vida desconhecemos, merece morrer? Ela está segurando uma arma, mas, até que se prove o contrário, não cometeu o crime. Enquanto ela é vista como merecedora de sofrimento por segurar uma arma de fogo, pessoas como James Holmes, que matou 12 pessoas e feriu outras 58 em Denver, no Colorado, são vistas como pacientes psiquiátricos incapazes de terem dimensão dos próprios atos. E atenção: não proponho aqui que seja feito um julgamento sobre qualquer caso, TAMPOUCO abro espaço para determinações diagnósticas, tarefas que competem exclusivamente a juristas e médicos. O ponto aqui é como a mídia ajuda a moldar o juízo de valor feito a este ou aquele indivíduo que, pela razão que for, vá parar nas páginas policiais, contrariando os princípios éticos do Jornalismo e das Relações Públicas.

O segundo ponto: será que a comunidade negra está se tornando insensível, também? Aqui também cabem muitos debates. Um caminho do qual podemos partir é sobre quais os rumos que os movimentos sociais estão tomando nas esferas virtuais. Por muito tempo os negros foram excluídos de todos os espaços sociais considerados “dignos”. Estes eram reservados apenas para os “homens de bem” — ou seja, brancos. Tudo isso com o respaldo da lei.

Confiram a explicação sobre o trabalho de Ramatis Jacinto no artigo “Estudo da FFLCH analisa como negro foi excluído do mercado de trabalho após abolição”.

Então, hoje estamos lutando para diminuir este abismo, sabendo que ainda levaremos muitos anos para reverter os efeitos nocivos destes fatos, porque as atuais políticas públicas são falhas e não conversam entre si para a criação de sistemas reais de reparação. Afinal, como falar apenas de cotas raciais sem falar de políticas de permanência, sem debater a defasagem escolar de mulheres negras, que são as maiores vítimas de feminicídio no país, ainda que a Lei Maria da Penha seja uma das leis de proteção à mulher mais elogiadas do mundo, mas que encontra entraves nas ferramentas do Estado, que por sua vez falha em oferecer subsídios que garantam a segurança dessas mulheres, que também padecem na base da pirâmide no mercado de trabalho, além da situação de jovens homens negros, que são as maiores vítimas da violência policial, e por aí vai? Percebem como absolutamente todos os problemas sociais estão atrelados e provam a necessidade urgente de políticas que coadunem entre si?

Pois, enfim, ainda amargamos estes dados assustadores, mas hoje temos modelos negras na televisão…olha que dez. E isso não é ironia minha.

No começo do ano fui procurada pela redação do UOL para dar minha opinião a respeito de representatividade em concursos de beleza.

Expliquei, na ocasião:

“Pela TV, uma comentarista disse que a atual proposta do concurso [Miss Universo] é avaliar a ‘beleza com propósito’, para que a miss exerça uma mudança no mundo, participando de projetos sociais e ações que possam inspirar crianças ao redor do globo. Entretanto, a aparência continua sendo o primeiro e principal filtro para ser essa representante universal. É preciso respeitar a trajetória e o trabalho de cada moça ali. Porém, é insano defender um concurso de beleza, com exigências precisas de medidas e comportamento. Nenhuma mulher deveria depender de um padrão de beleza para se sentir feliz e aceita. Raissa Santanta [candidata brasileira] foi doce ao dizer, em uma entrevista que foi ao ar antes da cerimônia, que deseja ser uma forma de representatividade para as meninas negras do Brasil. E não podemos jogar nos ombros da modelo a obrigação de erguer uma bandeira política. Mas vale lembrar que ser uma mulher negra representante da beleza tem seus limites. Temos o exemplo da ex-globeleza Nayara Justino, substituída por ser ‘negra demais’, com sua pele bem escura e cabelo crespo. Representatividade não pode significar ter que se adequar a um modelo de beleza. E o concurso de miss mostra que é importante você ser você mesma, mas apenas se você for magra e alta…”

Nos debates sobre possíveis avanços na representação do negro na mídia, alguns ativistas são veementes na defensiva: “Claro que não é uma mudança estrutural, mas, pelo menos, é um avanço, não somos burros de achar que estamos revolucionando algo.”

Quando Michael afirma que negros estão entorpecidos pela própria dor, então ele talvez esteja errado. Se não estamos entorpecidos, talvez estejamos envaidecidos pela chance de alcançar determinados espaços pela primeira vez na história. Ou, pelo menos, cansados demais pela violência diária. Qualquer que seja a explicação, há de se compreender a importância de estudar as razões que levam a população num geral a ver com certo nível de normalidade as mortes negras, não apena as que são televisionadas, mas todas as que entram nas estatísticas. Afinal, o aumento de 56% de feminicídios entre mulheres negras gerou alguns debates entre coletivos e organizações de mulheres, mas nem de longe pareceu instigar o interesse de grandes jornais em realizar matérias investigativas sobre o problema. Bato muito nas teclas de que não há uma forma única de luta e que é preciso estar com a saúde em dia para aguentar o efeito rebote que qualquer movimento social sofre ao questionar paradigmas até então intocados. Entre a crítica e autocrítica, muitos detalhes podem passar despercebidos. A pessoa cansada, o coletivo sem apoio ou a pura vaidade, mesmo, consequência natural da psique humana diante de algo que faça a dopamina borbulhar a cada like.

Acompanhem mais do meu trabalho no meu site profissional.

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Gabriela Moura

Alma presa numa mente maluca e um corpo descoordenado. É o que tem pra hoje. Escritora. Feminista. RP. Desenhista. Troublemaker.