Cruzes são colocadas nas areias da Praia de Iracema para lembrar mortes de mulheres no Ceará — Foto: Gustavo Portela/Fórum Cearense de Mulheres (Site G1–2018)

Violência contra a mulher aumenta com pandemia de Covid-19

Quarentena deixa mulheres mais vulneráveis a seus agressores

4 min readMar 25, 2020

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Confinamento é necessário para controle da pandemia, mas governos precisam agir.

A atual pandemia do novo coronavírus nos obriga a olhar para a humanidade com uma nova lente. Com quase 15 anos de profissão como comunicóloga, e estudando questões de gênero e raça há cerca de 7 anos, esta é certamente uma situação inédita (e assustadora) pra mim. E, mais do que um ineditismo situacional, o que vivemos hoje vira nosso mundo de cabeça pra baixo, nos empurrando a novas formas de trabalho. E é a partir deste ponto que eu parto.

A recomendação da Organização Mundial de Saúde para diminuirmos a incidência da Covid-19 é permanecermos em isolamento social ficando em casa. Dessa forma, achatamos a curva de contaminação a partir da diminuição de circulação do vírus. Embora a medida seja necessária e não deva ser contrariada, outros problemas surgem a partir deste.

Em uma conversa informal com algumas amigas, falávamos sobre prováveis consequências dessa crise para além das mortes já computadas e das prováveis que teremos: piora das taxas de desemprego, aumento da fome, aumento da população carcerária por furto de comida, crescimento no número de suicídios e aumento da violência doméstica.

Este último ponto já começa a ser mostrado. A Justiça do Rio de Janeiro já registra aumento de 50% de casos de violência contra a mulher. As denúncias representam cerca de 80% dos casos atendidos nos plantões das delegacias.

O problema era esperado. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos já afirmava que a permanência em casa por mais tempo que o usual poderia fazer os casos de violência contra a mulher saltarem.

A mesma previsão foi feita pela ONU Mulheres, que organizou um documento onde são apresentadas as consequências da pandemia às questões de gênero. Nele é afirmado que:

Em um contexto de emergência, aumentam os riscos de violência contra mulheres e meninas, especialmente a violência doméstica, aumentam devido ao aumento das tensões em casa e também podem aumentar o isolamento das mulheres. As sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essenciais devido a fatores como restrições ao movimento em quarentena. O impacto econômico da pandemia pode criar barreiras adicionais para deixar um parceiro violento, além de mais risco à exploração sexual com fins comerciais.

Previsões como essa são possíveis graças a mapeamentos que permitem que vejamos em detalhes as dinâmicas da violência.

O Dossiê Mulher 2019, do Instituto de Segurança Pública, traz gráficos com dados assustadores apontando que mulheres podem estar muito vulneráveis dentro de suas próprias casas. No estudo, vemos, por exemplo:

“Em 2018, o interior de residência figurou em 71,9% dos casos de estupro de mulheres no Rio de Janeiro, corroborando com a ideia de que as mulheres estão mais vulneráveis à violência sexual no âmbito privado do que nos espaços públicos. Ou seja, de cada dez estupros ocorridos no estado em 2018, sete foram praticados em casa. Esta face da violência sexual também é confirmada pelo fato de que pelo menos 44,8% dos autores deste delito são pessoas muito próximas às vítimas (companheiros, ex-companheiros, pais, padrastos, parentes, conhecidos).”

Não há, exatamente, um lugar seguro para mulheres, como sabemos. Mas existe um imaginário popular que coloca o agressor quase sempre como um estranho, e o documento do ISP faz cair por terra essa ideia fantasiosa do violador desconhecido.

“Grande parte dos homicídios dolosos de mulheres ocorreram no interior de residência.”

Importante salientar que, diante da catástrofe global enfrentada, não é prudente ou responsável sugerir que mulheres evitem o isolamento social. Pelo contrário, a recomendação é veemente e tida como fator primordial na contenção do novo coronavírus. Cabe ao poder público, portanto, oferecer segurança para a adequada adesão às recomendações, o que inclui possibilitar que essas mulheres cumpram o que é definido pela Organização Mundial de Saúde em locais onde elas não estejam suscetíveis.

No documento da ONU Mulheres são apresentadas diretrizes para políticas de proteção a mulheres e meninas, entre elas:

> Promover medidas de políticas que permitam reconhecer, reduzir e redistribuir a sobrecarga de trabalho não remunerado que ocorre nas residências com cuidados de saúde e atendimento a meninas, meninos, pessoas idosas e pessoas com deficiência, e que é absorvido principalmente por mulheres.

> Promover estratégias específicas para o empoderamento e recuperação econômica das mulheres, considerando programas de transferência de renda, para mitigar o impacto da pandemia e suas medidas de contenção, incluindo apoio para que elas se recuperem e desenvolvam resiliência para crises futuras.

> Adotar medidas que permitem garantir o acesso das mulheres migrantes e refugiadas aos serviços de saúde, emprego, alimentação e informação, mitigar os riscos de proteção com atenção especial à violência e ao tráfico de mulheres e meninas, e promovam a coesão social.

E, por isso, essas manchetes recentes explicitando o aumento da violência doméstica em consequência de um maior tempo em casa ao lado de agressores deixam evidente a urgência de políticas públicas de prevenção e combate à violência de gênero.

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Alma presa numa mente maluca e um corpo descoordenado. É o que tem pra hoje. Escritora. Feminista. RP. Desenhista. Troublemaker.