Ascensão, fastígio e declínio da “Revolução Judiciarista” [i]

Francisco Mendes
19 min readFeb 4, 2018

Christian Edward Cyril Lynch [ii]

Insight Inteligência, n. 79, out./nov./dez. 2017, p. 158–168.

O presente ensaio examina a atual conjuntura político constitucional, a parti de uma interpretação das relações entre o Poder Judiciário de um lado, e o Poder Executivo e o Legislativo. Ele começará buscando descrever a dinâmica de um movimento que aqui vou chamar de “Revolução Judiciarista”. Argumento que, iniciada na academia jurídica na década de 1990 como um fenômeno doutrinário-ideológico, essa “revolução” evoluiu na década seguinte voltada para legitimar a judicialização da política e a atuação política dos operadores jurídicos.

Expressão suprema do processo de desprestígio da política profissional, as jornadas de 2013 potencializaram a transformação da “Revolução Judiciarista” ainda encubada em aberta. Uma vez que o governo Dilma e a classe política não foram capazes de dar resposta à frustração da população ali manifestada, a “revolução” ganhou corpo através das ações da Operação Lava Jato, apoiadas pela Procuradoria Geral da República, liderada por Rodrigo Janot com a chancela do Supremo Tribunal Federal.

O ativismo judiciário, ou judiciarismo, expresso pela Lava Jato, passou a representar, aos olhos da população frustrada, uma resposta para promover a renovação das práticas políticas — resposta que, por óbvio, projetou os próprios juízes e promotores como novos atores políticos, na medida mesma em que “cassavam” políticos profissionais acusados de corrupção.

Este pequeno ensaio terá cinco partes. A primeira procurará esclarecer a ação dos atores jurídicos a partir da crença por eles compartilhada de que estariam a promover na política brasileira a ansiada renovação por meio de uma espécie de “Revolução Judiciarista”. A segunda parte caracterizará o fenômeno do “tenentismo togado” como uma vanguarda que, em nome da sociedade civil, se investiu do objetivo de regeneração da atividade política, corrompida por representantes “carcomidos” pela corrupção. A terceira seção tentará esboçar os traços gerais do pensamento político ou ideológico da Revolução Judiciarista, tomando como paradigma a produção intelectual do professor Luís Roberto Barroso.

Por fim, descreverei os acontecimentos políticos a partir das ações dos protagonistas na cúpula do poder desde que o Senado Federal confirmou o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República até outubro deste ano. Concluirei que, depois do impeachment, a oligarquia parlamentar comandada pelo presidente Michel Temer conseguiu resistir e escapar da fase radical ou “jacobina” da revolução, que parece ter alcançado os seus limites. Por fim, lembro que o ensaio busca examinar as ações políticas à luz dos discursos dos atores, como forma de compreender suas atitudes e o modo por que eles as justificam no debate público.

Uma Revolução Judiciarista: o “tenentismo togado”

O terremoto político começou nas chamadas jornadas de 2013 que, tendo por estopim a insatisfação com a má qualidade dos serviços públicos e os gastos do governo federal com a Copa do Mundo que seria realizada no ano seguinte, mobilizaram milhões de pessoas em todo o país. As jornadas cristalizaram uma percepção difusa de ilegitimidade do sistema político que datava de pelo menos uma década. Iniciada pouco depois, a Operação Lava Jato serviu aos insatisfeitos para confirmar o alegado apodrecimento do sistema, dando rostos visíveis aos agentes judiciários empenhados no papel de liderar o processo de sua regeneração, através do combate aos corruptos e seu expurgo da política, em nome da moralidade administrativa.

O ressurgimento de um conservadorismo de tipo reacionário; o sentimento de exaurimento da situação petista; o desmentido das promessas de campanha pela presidente Dilma no dia seguinte ao de sua difícil reeleição, diante do reconhecimento da pior crise econômica da história, criaram um verdadeiro vácuo de legitimidade política que tornou possível sacudir os alicerces de instituições que até a véspera se julgavam de grande estabilidade.

Na tentativa de tornar legíveis os embaralhados e dramáticos acontecimentos, os diferentes segmentos do espectro político-ideológico mobilizaram categorias e esquemas teóricos extraídos de suas tradições intelectuais, à luz de seus respectivos imaginários históricos. Para a parte hegemônica da esquerda, especialmente a que se via apeada do poder por um impeachment percebido como golpe, o Brasil estaria experimentando uma contrarrevolução no sentido leninista ou trotskista. Entende-se, aí, que a revolução teria sido aquela promovida ao longo dos 12 anos de governos petistas, cujos importantes avanços sociais e subsequente avanço no sentido igualitário teria suscitado a reação dos setores conservadores da sociedade. Estes, por sua vez, teriam recorrido ao golpe.

Essa leitura do turbulento processo político como uma contrarrevolução é endossada pelos setores conservadores, ou seja, comprometidos com a defesa dos valores tradicionais atingidos por aquelas políticas e seus discursos legitimadores. A diferença entre as duas leituras reside no fato de que a categoria de contrarrevolução é lida pelos conservadores como algo positivo e desejável, tanto quanto ela aparece nos escritos do Burke tardio ou de reacionários assumidos como De Maistre ou de Bonald.

Em outras palavras, como uma saudável reação do bom senso contra o radicalismo que, artificialmente mobilizado por uma minoria de esquerda, estaria subvertendo a boa e velha ordem tradicional brasileira. Por aí se entende a centralidade do golpe de 1964 no imaginário histórico de ambos os segmentos, que leem os acontecimentos na chave de um eterno retorno.

Há um terceiro setor da sociedade, porém, intermediário, para quem não estaríamos vivendo uma contrarrevolução, e sim uma revolução. No seu imaginário histórico, os acontecimentos atuais não se assemelham a 1964, mas à revolução de 1930, e são promovidas por ela mesma, se autorretratada como uma classe média idealista, progressista e civicamente orientada. O conceito de revolução é aqui mobilizado em chave liberal, à maneira iluminista de um abade Sieyès, isto é, como um processo de ampla transformação promovido por uma sociedade civil cansada de privilégio e impunidade. Encabeçada por uma vanguarda de heróis, como foram outrora tenentes como Juarez Távora e Eduardo Gomes, que se levantaram contra a República Velha, a nova revolução de 1930 encontraria seus heroicos portadores em juízes como Sérgio Moro e promotores como Deltan Dallagnol.

A Operação Lava Jato é percebida como uma nova Coluna Prestes encarregada de varrer a politicagem, se não mais a golpes de metralha, pelo menos de vazamentos, delações premiadas e rigorosas condenações judiciais. Por essas características, o terremoto constituiu uma verdadeira “Revolução Judiciarista”. Emprego a expressão aqui em sentido amplo, levando em consideração o fato de seus protagonistas pertencerem aos órgãos da justiça e por acreditarem lhes caber regenerar um sistema corrompido por uma classe política profissional que o exploraria em próprio proveito.

Ao contrário do que se pode imaginar, o judiciarismo é fenômeno antigo no Brasil. Tem inspiração no papel de guardião da constituição exercido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, descrito e divulgado por clássicos como Tocqueville e James Bryce. Ele aflorou entre nós com a República e a criação do Supremo Tribunal Federal, encarregado de arbitrar as contendas entre os poderes políticos e garantir os direitos fundamentais. Liderado por Rui Barbosa desde o começo do regime, contra a ditadura do marechal Floriano Peixoto, e encampado por ministros do Supremo Tribunal, como Pedro Lessa, o judiciarismo tornou-se a partir da presidência Hermes da Fonseca (1910–1914) um discurso de combate ao establishment da República Velha, cujo modelo político oligárquico baseado na Política dos Governadores era diuturnamente denunciado pelos bacharéis.

O judiciarismo se caracterizava pela defesa do Poder Judiciário como um sucedâneo do poder moderador monárquico, capaz de garantir, por intermédio da jurisdição constitucional, o primado

do Estado de direito democrático contra as veleidades oligárquicas ou autoritárias do regime. Foi nessa condição que o judiciarismo legitimou o movimento tenentista e a Revolução de 1930 na década de 1920. Como seu discurso de acentuados contornos éticos, em torno da ideia de uma república liberal e civicamente mobilizada, o judiciarismo tornou-se uma vertente poderosa dentro do liberalismo brasileiro, reverberando nas décadas posteriores na luta dos bacharéis liberais contra o autoritarismo do Estado Novo e do regime militar.

Basta lembrar aqui os bacharéis da antiga União Democrática Nacional (como Afonso Arinos, Bilac Pinto e Aliomar Baleeiro) e do velho Partido Socialista Brasileiro (como Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, João Mangabeira). Mas o judiciarismo não prosperou porque sofreu a concorrência desleal, no papel de herdeiro do Poder Moderador, das Forças Armadas. O ambiente favorável à afirmação do discurso judiciarista só se delineou na década de 1990, devido à desmoralização do conservadorismo; o generoso desenho institucional da Constituição de 1988; a massificação do ensino jurídico e a valorização das corporações judiciárias, no que tange às suas carreiras e salários, atribuições e competências. A ascensão dos novos atores judiciários foi, por fim, coroada pelo advento do neoconstitucionalismo como filosofia e hermenêutica jurídicas e abençoada por parte da sociologia do direito.

O papel desempenhado pelos juízes e promotores, na qualidade de portadores da Revolução Judiciarista, só pode ser adequadamente compreendido na medida em que se entenda o espaço significativo que as “vanguardas modernizadoras” possuem na cultura política brasileira. Em todas as épocas de crise do sistema político-constitucional, sempre que se acreditou difusamente que a classe política se tornou obstáculo ao progresso do país, houve espaço para a emergência de novos personagens, investidos do papel de vanguarda regeneradora da república. Há o tecnocrata apartidário e patriota, engenheiro ou médico; há o bacharel ou o jurista liberal ou libertário, geralmente constitucionalista ou penalista; há o militar positivista, etc.

Nos últimos 15 anos surgiu uma categoria nova, a do juiz e a do promotor de justiça que, encrustados no Estado, entendem dever agir no sentido de combater a impunidade política, respondendo apenas à própria consciência iluminada pela Constituição. Por seu perfil ideológico e motivações, os “novos tenentes” são bacharéis ilustrados que, no passado, teriam sido atraídos pela carreira política propriamente dita. Diante das dificuldades opostas pela atual massificação da política, com seu “baixo nível”, porém, esses bacharéis julgaram mais cômodo e eficaz operarem de dentro do próprio Estado, através das instituições e instrumentos judiciários criados pela Constituição de 1988 e fortalecidos no curso das décadas seguintes.

Oriunda geralmente da classe média, legitimados intelectualmente pela aprovação em concurso público, e legalmente pelo papel de representantes funcionais da sociedade civil, esses promotores e juízes têm verdadeira ojeriza à política profissional, especialmente os ocupantes de cargos legislativos. Vistos como pragmáticos, incultos e mal-intencionados, os políticos profissionais viveriam exclusivamente da exploração de um eleitorado pobre e ignorante, desprezando as aspirações cívicas da sociedade civil, entendida como “classe universal”. Imbuídos de um idealismo constitucional, os novos tenentes desejam regenerar a “pureza” das instituições constitucionais de 1988, corrompidas pelos políticos “carcomidos”.

O pensamento político da “Revolução Judiciarista”

O pensamento político da “Revolução Judiciarista” encontra um bom termômetro na obra de Luís Roberto Barroso, professor de direito constitucional da UERJ e hoje ministro do Supremo Tribunal. Trata-se de um kantiano assumido, que acredita em um processo histórico de avanço civilizacional e aposta no judiciarismo, exercido por meio da hermenêutica neoconstitucional, como instrumento de superação do atraso nacional. Como uma espécie de Rui Barbosa redivivo, Barroso cedo apostou na revitalização do direito constitucional como disciplina, convertendo-o em instrumento prático voltado para promover a concretização de valores constitucionais como os direitos humanos e a democracia liberal.

Essa revitalização passava pela nova hermenêutica jurídica chamada doutrina da efetividade da Constituição, depois superada ou alargada pela recepção do chamado neoconstitucionalismo. Essa nova hermenêutica passou a tratar princípios constitucionais como regras cuja aplicação, devido aos seus enunciados relativamente vagos, facultariam ao juiz decidir em certos e determinados casos valendo-se de uma discricionariedade ampla, orientada por valores políticos éticos e comunitários.

O direito constitucional, manejado pelas lentes do neoconstitucionalismo, teria por fim reconstruir a República brasileira contra seus males seculares. Investido da condição de juiz constitucional, ele guarda a esperança de que o Supremo Tribunal, sob o seu comando ou inspiração doutrinária, se transforme em agente privilegiado da revolução regeneradora, funcionando, em suas próprias palavras, como uma “vanguarda iluminista” encarregada de “empurrar a história”.

Do ponto de vista político, Barroso é um “neoliberal progressista”: revela-se tão simpático às reformas de Estado promovidas por Fernando Henrique Cardoso quanto aos programas sociais e às políticas de defesa das minorias adotadas pelo Partido dos Trabalhadores. Em seu diagnóstico das causas do retardo brasileiro, ele parte das interpretações anti-iberistas elaboradas por liberais como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da Matta. Contra os efeitos nefastos da colonização — patrimonialismo, estatismo, falta de ética e desigualdade perante a lei -, Barroso defende emancipar o mercado e a sociedade civil do estatismo, renovar as universidades públicas pelo financiamento privado, acabar com a impunidade dos ricos pela restrição à liberdade depois do segundo grau de jurisdição, e a dos políticos, pela restrição do foro privilegiado; reduzir as desigualdades raciais, sociais e de gênero; reformar o sistema político pela introdução do semipresidencialismo, do voto distrital misto e do fim das coligações nas eleições proporcionais.

Como seria de se esperar, a difusão da doutrina neoconstitucionalista ou, pelo menos, de uma certa interpretação dela, obteve entusiástica repercussão dentro das corporações judiciárias. A doutrina da efetividade e o neoconstitucionalismo puseram a Constituição no centro do sistema jurídico, autorizaram os operadores jurídicos a se orientarem politicamente e promoveram uma revolução intelectual a partir da academia, que dali se propagou às procuradorias de justiça e aos tribunais.

Os livros de direito constitucional viraram verdadeiros tratados de hermenêutica eivados de judiciarismo, girando basicamente em torno da fundamentação doutrinária dos direitos fundamentais e na descrição das atribuições do Ministério Público, do Judiciário e da Defensoria Pública. A parte dedicada a explicar as atribuições e funcionamento dos outros poderes, especialmente o Legislativo, praticamente desapareceu.

A desmoralização da classe política gerada pela degeneração do presidencialismo de coalizão e pelo emprego generalizado da corrupção como meio de governo criaram a partir de 2013 o ambiente propício para que muitos operadores jurídicos, já habituados desde interferir nas políticas públicas pela judicialização da política, decidissem alterar o modus operandi da Justiça para promover a investigação e prisão dos próceres do regime, a fim de refundar a república com base nos princípios republicanos e democráticos consagrados na Constituição.

Começou então a “Revolução Judiciarista” que, a partir da Operação Lava-Jato, cujos personagens — como o procurador Deltan Dallagnol e o juiz Sérgio Moro teriam participação nada desprezível no processo de impeachment de Dilma Rousseff e de incriminação pública do ex-presidente Lula.

Mas esse protagonismo teria sido impossível sem a chancela do Supremo Tribunal Federal e o apoio decidido do ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Deposta a situação petista, o Procurador-Geral voltou-se agressivamente contra a oligarquia peemedebista que se apoderou da presidência da República, buscando desalojar de seus postos, como criminosos, ministros de Estado, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado e o próprio presidente da República. Começou então a fase, digamos, jacobina da Revolução, de que farei aqui um breve inventário.

A articulação da resistência ao judiciarismo depois do impeachment

A oligarquia peemedebista e seus aliados que assumiram o poder depois da queda de Dilma Rousseff têm se mostrado infinitamente mais hábeis na contenção da Revolução Judiciarista. Cedo perceberam que o tenentismo togado da Lava Jato só prosperava pelo endosso da Procuradoria Geral da República e chancelado pelo Supremo Tribunal Federal.

O ponto alto da Revolução Judiciarista havia sido a remoção de Eduardo Cunha da presidência da Câmara, articulada por personagens como Janot, Teori Zavascki e Edson Fachin. De modo que em dezembro de 2016 aconteceu o primeiro tropeço do judiciarismo revolucionário quando idêntica medida, tomada contra o presidente do Senado, Renan Calheiros, trombou com a resistência da Câmara Alta. Diante do receio de desobediência à sua decisão, porque desprovida de força material para se fazer obedecer, o pleno do Supremo recuou da liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio. Decidiu contraditoriamente que a decisão que valera para remover Eduardo Cunha não valia para remover Renan.

O argumento da “razão de Estado” da estabilidade passou a ser desde então empregado pela oligarquia para refrear o ativismo judiciário ou judiciarismo exacerbado. O objetivo era estabilizar Michel Temer na presidência, que a assumira com o objetivo justamente de proteger a oligarquia política dos expurgos judiciários. A “razão de Estado” passava sobretudo por defender a estabilidade como meio indispensável de superação da crise econômica, pela adoção de medidas como a fixação de um teto de gastos, da reforma trabalhista e da previdência. Haja vista que tais reformas dependiam de aprovação pelo Congresso, alegou-se que a manutenção de Renan Calheiros na presidência do Senado era indispensável ao projeto de emenda constitucional que estabelecia o teto de gastos. Começou então o processo de desmoralizar o Supremo perante a opinião pública.

Foi assim que Michel Temer aproveitou a onda conservadora para resistir em nome de ordem e da estabilidade ao liberalismo dos judiciaristas. Essa atitude veio acompanhada de diversas providências voltadas para dividir as forças que apoiavam a “Revolução Judiciarista” e alterar a correlação de forças junto à sociedade, à Procuradoria e ao Supremo Tribunal. Tais medidas foram facilitadas pelo fato de que a impopularidade de seu governo autorizava Temer a fazer o que bem entendesse, sem pruridos morais ou de satisfação à opinião pública. No que diz respeito às forças socioeconômicas, Temer passou a acenar com a possibilidade de empregar sua ilegitimidade e impopularidade para aprovar as reformas econômicas desejadas pelos economistas ortodoxos e pelo empresariado.

A partir dessa perspectiva, a oligarquia passou a apresentar o judiciarismo como grave empecilho à aprovação das reformas e subsequente recuperação da economia. No que diz respeito à correlação de forças no Supremo, houve duas mudanças apreciáveis. Em primeiro lugar, a indicação do então ministro da Justiça e ex-chefe da polícia paulista, Alexandre de Moraes, para a vaga aberta pela inopinada morte de Teori Zavascki, em fevereiro, sinalizou de modo iniludível que a oligarquia estava disposta a nomear juízes abertamente conservadores e governistas para brecar o avanço do judiciarismo.

O inimigo da “revolução judiciarista”

Em segundo lugar, e tão importante quanto, a oligarquia conseguiu o inestimável apoio do ministro Gilmar Mendes, que se colocou como principal inimigo da “Revolução Judiciarista” e buscou, desde então, desmoralizá-la em todos os seus pronunciamentos públicos. Seu primeiro e maior serviço prestado à oligarquia peemedebista foi o de, na qualidade de presidente do Tribunal Superior Eleitoral, evitar a cassação da chapa eleitoral vencedora nas eleições de 2014, já anunciada pelo ministro relator do processo, Herman Benjamin, e que implicaria desalojar Temer do Palácio do Planalto. O mesmo realismo (ou cinismo) que não coibira Temer de nomear o próprio ministro da Justiça para o Supremo, a fim de embarreirar as ações dos ministros daquela Corte, também não o coibiu de nomear, para o Tribunal Eleitoral, juízes de antemão comprometidos com sua absolvição.

Também o novo ministro da Justiça Torquato Jardim, vinha expressamente com a missão de desatarraxar os parafusos da Lava Jato na Polícia Federal, promovendo oportunamente a mudança do diretor-geral e contingenciando verbas que mantivessem a Lava Jato funcionando na mesma velocidade. A estratégia de Temer era a de ganhar tempo, sobrevivendo até que o mandato de Janot encerrasse, que a economia se recuperasse e, pela melhoria do ambiente político, ele pudesse ter a esperança de concluir o mandato sem ir para a cadeia no dia seguinte.

Outro ponto fundamental a ser atacado na operação abafa movida pela oligarquia política contra o judiciarismo foi resistir ao movimento em curso no Supremo, em ação relatada pelo ministro Barroso, no sentido de restringir o alcance do foro privilegiado, tornado símbolo dos privilégios jurídicos da classe política e sinônimo de impunidade penal.

O Congresso Nacional correu para promover a tramitação de um projeto de emenda constitucional destinada a acabar com o foro privilegiado para todas as autoridades. Aqui também a hipocrisia reinou sem peias, porque a proposta, apresentada como satisfação à opinião pública, não passava de tentativa de intimidar a corporação judiciária a provarem do mesmo “remédio republicano”, já que também teria suprimido seu privilégio de foro.

Percebendo que a maioria dos ministros do Supremo apoiaria Barroso na restrição do foro, em decisão que poderia ser proferida antes do julgamento referente à cassação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral ou que a ameaça ao Judiciário em forma de PEC passasse do Senado para a Câmara, o governo recorreu aos préstimos do ministro Alexandre de Morais. Ele teve, então, a oportunidade de mostrar ao que viera: pediu vista para adiar a decisão.

Para compensar a molecagem, os ministros “revolucionários” anteciparam o voto favorável à restrição do foro Carmen Lucia, Rosa Weber, Marco Aurélio. A crescente divisão do STF acerca dos rumos a serem tomados ou dos endossos à atuação de Janot, avolumadas pela atuação deletéria de Gilmar Mendes como ator abertamente político, começaram a surtir o efeito desejado pela oligarquia: desacreditar o judiciarismo.

Ao mesmo tempo, os setores conservadores e liberais mais à direita começaram a falar na necessidade de uma nova Constituinte, a começar pelo Pouco depois, em um “Manifesto à Nação”, publicado pelos juristas Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias, a 9 de abril de 2017, seus subscritores proclamaram também a necessidade de uma nova Constituição. No dia seguinte, foi a vez do professor Simon Schwartzman entrar na discussão, dando respeitabilidade acadêmica à discussão.

Diante da articulação dos setores conservadores contra o judiciarismo revolucionário, de que era ele, afinal, o comandante-em-chefe, Janot divulgou em meados de maio a delação dos donos da JBS e, com ela, a famosa gravação em que o presidente da República sublinhava a necessidade de continuar a subornar Eduardo Cunha na cadeia para impedi-lo de fazer delação premiada.

Uma vez que a articulação oligárquica avançava a olhos vistos, Janot calculou que a divulgação da delação e do áudio provocaria uma reação de tal ordem junto à imprensa, ao público e ao meio político, que obrigaria Temer a renunciar ou reverteria a tendência dos ministros cooptados por Gilmar Mendes no Tribunal Superior Eleitoral no sentido de evitar a cassação da chapa que o elegera vice-presidente da República.

Pela derrubada de Temer, Janot esperava ainda assegurar a continuidade do movimento “revolucionário” pela escolha de seu favorito, Nicolao Dino, como seu sucessor na Procuradoria Geral da República, por parte de quem viesse a ocupar a poltrona presidencial. Mas a jogada não deu certo.

A despeito do apoio à renúncia que lhe emprestaram órgãos da imprensa liberal, como a Rede Globo e a Folha de São Paulo, Temer revelou uma resiliência digna de baratas em invernos nucleares. A oligarquia acabou por ficar de seu lado, depois de dois dias de profunda incerteza; da mesma forma, o establishment socioeconômico interessado em preservar um presidente impopular, cuja fragilidade o obrigava a comprometer-se com uma agenda retrocessiva que outro em seu lugar não seria capaz de abraçar com tanto empenho.

O resultado foi que, poucos dias depois, a despeito da abundância de provas de irregularidades eleitorais, Gilmar Mendes conseguiu garantir a absolvição da chapa presidencial vitoriosa em 2014, no curso de uma sessão que, pelas características que assumiu, foi uma escancarada fraude judiciária. O emprego, mais uma vez, do argumento da razão de Estado para justificar a absolvição de Temer, contra todas as provas, jurisprudência e doutrina, tiveram o efeito adicional de também desmoralizar a Justiça Eleitoral do Brasil.

De perfil político, comprometido com a agenda oligárquica conservadora, mal disfarçada pelo abraço oportunista do discurso garantista, Gilmar Mendes tornou-se no Supremo Tribunal Federal a nêmesis de Luís Roberto Barroso. Se este age conforme um idealismo liberal, orientado por valores de liberdade e progresso, aquele passou a agir ostensivamente conforme um realismo conservador, norteado pelos valores da ordem e da estabilidade.

Em contraposição ao relativo comedimento e cordialidade de Barroso, com sua indisfarçável aversão aos políticos profissionais, Gilmar Mendes age de forma truculenta e desassombrada, ao arrepio da Lei Orgânica da Magistratura. Negocia abertamente seus compromissos políticos, frequenta o Palácio do governo para trocar ideias com Temer, fala fora dos autos, intimida colegas e promotores, e dá declarações políticas cínicas, como aquela, referente à portaria que afrouxou o combate ao trabalho escravo.

Por fim, em aliança com colegas como Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, notoriamente ligados ao establishment petista alvejado pelo judiciarismo, Gilmar firmou seu império na segunda turma do Supremo Tribunal. Esta passou a se opor abertamente à primeira, liderada por Barroso, pautando-se por uma política de condenação aberta dos métodos adotados pela Revolução Judiciarista, na qual seus argumentos conservadores se unem ao discurso garantista dos demais colegas contra o ministro Edison Fachin.

Por outro lado, seria de se imaginar que a maioria de seus colegas resolvesse em algum momento dar um basta ao processo de desmoralização contínua da magistratura promovido por Gilmar Mendes. No entanto, tudo debalde. Embora acreditem que a postura de Gilmar seja deletéria, não abririam precedente para que pudessem ser eles mesmos questionados pelos pares amanhã. Nada de novo nas tradições nacionais. Como diria um dos nossos pais da pátria, o visconde do Uruguai: “Assim está o país, e assim é o sistema”.

O Termidor ou esfriamento da Revolução Judiciarista

Desde junho, portanto, desenhou-se a perspectiva do Termidor, ou seja, do esfriamento da Revolução Judiciarista. A oligarquia passou a atacar o ativismo judicial e o tenentismo togado, não pelos motivos certos, mas pelos errados. Atacaram os excessos do neoconstitucionalismo, da jurisprudência dos princípios, etc., não para reequilibrar o sistema ou acabar com a “vanguarda iluminista” do ministro Barroso, mas para preservar seus privilégios através do formalismo hermenêutico e de juízes compadres. A oligarquia desistiu de manter as aparências de apoio às medidas de combate à corrupção e assumiu de forma desassombrada que o seu único propósito é o de sobreviver, lançando mão de todos os meios de poder ao seu alcance.

Da mesma forma, depois do episódio da JBS, o governo e seus aliados arregimentaram uma teia de advogados e juristas encarregados de desautorizar, criticar e resistir a tudo o que viesse de Janot, a fim de desmoralizá-lo e criar narrativas contrárias, de abusos, calúnias, violações da lei, etc. Estejam certos de que em breve também não cumprirão decisões do plenário do STF que entendam inconstitucionais. A tática passou a ser a de desmoralizar os juízes e promotores que apoiarem medidas contra o presidente, ministros de Estado, deputados e senadores.

O último episódio, em que se buscou arredar Aécio Neves do Senado, em caso semelhante ao de Renan Calheiros, revelou em definitivo os limites do poder do Supremo, que pela segunda vez consecutiva não conseguiu repetir o precedente da prisão do Delcídio Amaral. O Senado e a Câmara, aliás, já sinalizaram por diversas vezes ao longo do ano que, no que diz respeito ao mandato de seus membros, poderão se recusar a cumprir decisões do Supremo Tribunal, postura que fatalmente convida os ministros daquela Corte a uma postura de maior contenção.

Por fim, até agora, a nomeação de Raquel Dodge para a PGR tem confirmado a escolha providencial de Temer, não tendo ela revelado qualquer espírito jacobino, parecendo comprometida com a tese da razão de Estado em que a oligarquia se escudou para resistir à “revolução”.

Enquanto isso, Gilmar e seus aliados continuam a brandir argumentos, ora de razão de Estado, ora de garantismo, para desrespeitar ou reverter decisões do Supremo tomadas sob a inspiração de Barroso, destinadas a combater a impunidade dos políticos, como a restrição do foro privilegiado e a execução automática da sentença criminal depois da segunda instância. Também a bancada evangélica passou a intimidar o Supremo com projetos destinados a submeter a referendo do Congresso suas decisões “iluministas” relativas a costumes, como o aborto ou o casamento gay, ou que confiram às igrejas legitimidade processual de questionar judicialmente suas decisões. Em síntese, o avanço do judiciarismo liberal a título de combater a corrupção, causando severas baixas no establishment político, gerou forte reação dos setores por ele prejudicados tanto à direita como à esquerda.

Conclusão

Com a reação liderada por Gilmar Mendes no Supremo Tribunal e a queda do Janot da condição de Procurador Geral da República, a “Revolução Judiciarista” entrou definitivamente no seu Termidor. O paralelo histórico com os acontecimentos franceses pode a mais de um título ser útil. É de bom alvitre recordar que, a exemplo do atual, o governo do diretório que assume durante o Termidor, responsável pelo sufocamento do jacobinismo, é marcadamente empulhador, covarde e corrupto. E que, embora fatigada de tantos ódios, perseguições e denúncias, nem por isso a opinião pública desistiu de querer “Justiça”, ou seja, consolidar as conquistas da Revolução.

Tudo bem pesado, corremos o risco de que, das eleições presidenciais do ano que vem, saia o nosso 18 Brumário, com seu respectivo Napoleão Bonaparte, ou seja, um homem forte com discurso de união nacional, cuja autoridade carismática consolidará de modo ordeiro as conquistas da “revolução”. Isto, claro, se a história realmente se repetir, como farsa ou realidade, como diria um velho barbudo, cujo nome esqueci. Da nova configuração que sairá das próximas eleições dependerá, pois, o destino da “Revolução Judiciarista”.

[i] Texto disponível em http://insightinteligencia.com.br/pdfs/79.pdf, acessado em 4 de fev. de 2018.

[ii] Jurista e cientista político, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), clynch@iesp.uerj.br

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