Amor, masculinidade e a vontade de mudar em “God’s Own Country”

Por Ícaro Rodrigues

Metamorfose Crítica
10 min readMay 1, 2020

O cinema LGBTQ+ tem mudado. Nos últimos anos, uma nova leva de filmes vêm fugindo das narrativas trágicas e estereotipadas já esperadas dentro da temática. Não sei se necessariamente pela demanda crescente por representatividade de minorias no cinema ou por novos olhares de diretores e roteiristas, mas a verdade é que produções premiadas como "Moonlight: Sob A Luz Do Luar" e "Me Chame Pelo Seu Nome" não encontrariam uma recepção tão grande em décadas passadas como receberam nessa. De qualquer forma, o fato é que não podemos mais negar a potencialidade e a relevância de "Carol", "Uma Mulher Fantástica", "Com Amor, Simon", e até o recente "Retrato de uma Jovens em Chamas", bem como de produções que fogem da ótica ocidental, como o filme coreano "A Criada". Todos esses filmes, cada um a seu modo, tiveram um impacto na forma como pessoas da comunidade serão representadas no cinema daqui em diante.

Sabendo disso, recentemente assisti "God's Own Country", do diretor inglês Francis Lee, e não consegui terminar o longa sem estar totalmente comovido e imerso nessa história de amor entre dois homens gays no interior da Inglaterra. Talvez a capacidade do filme de me marcar mesmo semanas após tê-lo visto seja resultado da naturalização de histórias LGBTQ+ com finais tristes, uma vez que quando um dos protagonistas não fica doente, termina sozinho ou morto. Como se fosse uma punição por esses personagens terem uma sexualidade não-conformante e explorá-la, transgredindo as normas sociais. A associação com “O Segredo de Brokeback Mountain” e o seu desfecho triste foi inevitável pra mim também graças à localidade interiorana, rural e fechada onde ambos filmes se passam — mas, felizmente, o filme foge desse fantasma!

Um outro motivo do filme ter mexido comigo foi a jornada bem escrita do protagonista nada carismático que, ao longo do filme, sofre uma transformação poderosa. Na minha opinião, a potência do roteiro se deve não só à ótima direção, mas também à forma como é abordado um tema ainda pouco explorado pelo cinema contemporâneo: a dinâmica tóxica entre amor e masculinidade existente nas relações do homem moderno.

A construção da masculinidade patriarcal*

Eu vejo a masculinidade como uma questão central no filme, não a descoberta ou aceitação da orientação sexual do protagonista, comum à maioria das histórias sobre homossexualidade. Francis Lee afirma que “God’s Own Country” foi pensada como uma homenagem a comédias românticas dos anos 80. Assim, a história é genuinamente sobre amor. Eu ainda acrescento: sobre como o amor é culturalmente negado aos homens, e, aqui, especificamente aos homens gays. A sinopse é a seguinte: Johnny (Josh O’Connor) trabalha isolado e solitário na fazenda da família, descontando sua frustração em bebidas e em sexo casual. Quando seu pai, Martin (Ian Hart), contrata Gheorghe (Alec Secanearu), um imigrante romeno, para ajudar Johnny na fazenda, o novo companheiro traz para ele sensações e emoções que ele nunca havia sentido.

No livro “A Vontade de Mudar: Homens, Masculinidade e Amor”, a pensadora e feminista negra bell hooks escreve sobre o estado de “dormência emocional” que vivem os homens na nossa cultura patriarcal. Segundo a autora, desde a socialização na infância, meninos aprendem a silenciar seus sentimentos e a romper com suas conexões emocionais para serem reconhecidos enquanto homens dentro dos parâmetros criados pela masculinidade patriarcal. O resultado é a construção de uma sociedade na qual homens não conseguem de forma alguma expressar o que sentem, tornando-se incapazes de amar e de serem amados.

Toda mulher quer ser amada por um homem. Toda mulher quer amar e ser amada por homens em sua vida. Seja gay ou hétero, bissexual ou celibatária, ela quer sentir o amor do pai, do avô, do tio, do irmão ou do amigo. Se ela for heterossexual, ela quer o amor de seu parceiro. Vivemos em uma cultura em que mulheres emocionalmente famintas e destituídas buscam desesperadamente o amor do homem.

A consequência disso é a criação de um ciclo perigoso no qual mulheres e crianças buscam o amor que os homens não conseguem dar:

Ninguém anseia tanto pelo amor masculino quanto uma pequena menina ou menino que de maneira legítima precisa e busca o amor de seu pai. Talvez esse pai esteja ausente, morto, presente em corpo, ainda que não emocionalmente, mas a fome da menina ou do menino por ser apreciado, reconhecido, respeitado, cuidado por ele, existe.

O amor masculino nesse sentido pode ser comparado a uma jóia rara. Escasso, ele é supervalorizado em uma cultura que ensina que seu preço é superior ao abundante amor materno. De forma semelhante, podemos perceber essa busca por reconhecimento na relação entre Johnny e seu pai Martin. Ele, mesmo não satisfeito em trabalhar na fazenda, considerando o trabalho um fardo, continua em troca da promessa de ser reconhecido pelo pai. Seu pai, por sua vez, renega os seus esforços e sempre aponta erros, desprezando qualquer sinal de "fraqueza" que seu filho deixe transparecer. E assim, a cruzada por aceitação do amor paterno se repete.

Em virtude disso, o personagem ergue uma fachada, sustentada basicamente pela virilidade, para conseguir esconder sua vulnerabilidade. A fim de afirmar uma suposta masculinidade “imbatível”, Johnny se envolve não apenas em uma série de situações ridículas (se recusando a levar luvas e casaco para enfrentar o clima frio, por exemplo), como também se expõe a riscos de saúde com o seu comportamento (trabalhando ininterruptamente para provar seu valor). Graças à criação em uma família fria, voltada para o trabalho no campo, o protagonista se torna um homem incapaz de estabelecer ligações afetivas com as pessoas. Isso é refletido principalmente na sua impossibilidade de manter contato com outros homens, limitando-se sempre ao sexo casual. Francis Lee capta bem esse distanciamento traduzindo nos poucos diálogos entre os personagens e nos longos momentos de silêncio e contemplação da paisagem montanhosa, contando com o excelente trabalho corporal dos atores para transmitir os sentimentos na tela.

Além disso, hooks nos ensina que o patriarcado obriga os homens a viverem em uma espécie de "estoicismo emocional". Nós aprendemos que a virilidade é sinônimo de não demonstrar sentimentos, mas que, se por acaso sentirmos e esse sentimento doer, a atitude mais máscula é empurrá-lo goela abaixo e esperar que passe. Assim, a raiva por não ser reconhecido, a sensação de incompletude e de não pertencimento, aliada à inconsciência emocional e à pressão crescente de ser quem o pai e avó esperam dele, transforma Johnny em um homem que mascara sua fragilidade sendo inconsequente, arrogante, em certas situações agressivo e muitas vezes infantil. A soma desses problemas o torna incapaz de falar sobre suas dores e angústias - o álcool, então, vira seu ponto de fuga.

Johnny bebe excessivamente todas as noites em que se sente impotente para lidar com as suas emoções. Não é coincidência os homens serem apresentados mais cedo às bebidas alcoólicas, as consumirem mais e morrerem mais por causa delas. O filme começa justamente no fim de uma dessas noites, reafirmando mais uma vez o ciclo vivido pelo personagem. Dessa forma, percebemos como a masculinidade molda a personalidade e as perspectivas de Johnny, sequestrando dele qualquer consciência emocional.

A vontade de mudar

Tudo muda com a chegada de Gheorghe. Bastante observador, o imigrante romeno logo entende a situação vivida por Johnny, "Aqui é um lugar bonito... Quando eu era pequeno nunca pensei que deixaria minha fazenda. Aqui é um lugar bonito, mas solitário, não acha?", interpela Gheorghe em certo momento. A relação dos dois evolui rapidamente durante os dias de cuidado do rebanho de ovelhas longe da casa. De uma relação conflituosa, passam para um interesse sexual que se transforma em um relacionamento. Atencioso e cuidadoso, Gheorghe consegue enxergar a beleza do mundo mesmo após fugir da guerra em seu país natal e refugiar-se num país hostil a imigrantes. Ele apresenta a Johnny a importância de cultivar o afeto nas pequenas coisas, desde o toque entre pessoas que se amam até nas relações cotidianas. Gheorghe ensina Johnny a ser emocionalmente expressivo.

Esse é um momento de virada para o protagonista. A fachada construída pelo protagonista para si e para os outros desmorona: ao se permitir amar, Johnny desperta sua consciência emocional. Seja na contemplação da paisagem à sua volta ou no o simples ato de cozinhar, ele consegue enxergar a possibilidade de afeto presente nas pequenas coisas, perceber como a vida pode ser colorida e aconchegante. A fotografia do filme consegue destacar esse sentimento, pois até então os tons frios ajudavam a criar uma atmosfera de distanciamento entre os personagens e, a partir da aproximação dos dois, ela valoriza os tons quentes.

Mas amar também significa se entregar ao outro, implica uma certa dependência emocional e exige, em troca, a exposição de uma vulnerabilidade - algo intolerável para a masculinidade patriarcal. Gheorghe entende isso, Johnny, porém, encontra dificuldades para aceitar. No livro “O Quarto de Giovanni”, o escritor James Baldwin consegue traduzir muito bem esse sentimento de insegurança e medo presente na relação gay que vive à sombra da masculinidade patriarcal:

— Ame-o! — disse ele então e falava com veemência. — Ame-o e deixe que ele o ame também! Você acha que realmente possa existir qualquer outra coisa mais importante? E por quanto tempo, na melhor das hipóteses, poderá durar isso, uma vez que ambos são homens e têm ainda todo o caminho a percorrer? Apenas cinco minutos, posso lhe asseverar, apenas cinco e a maior parte deles, hélas, será no escuro! E se você achar que esses minutos são sujos, então eles serão mesmo sujos, sujos porque você não estará dando nada, estará desprezando o seu corpo e o dele. Mas vocês podem fazer com que o tempo passado juntos seja tudo, menos sujo, podem dar um ao outro alguma coisa que os fará melhor, para sempre, se não sentirem vergonha, se ao menos pararem de procurar a segurança!

Tanto David, o protagonista do livro, quanto Johnny são desafiados a romper com a comodidade oferecida pelo patriarcado, a "tirania do familiar", para expressar seus sentimentos e entrar de vez no relacionamento com outro homem.

Ainda, vemos o rompimento do distanciamento emocional e o início da aproximação por parte de outros personagens. A avó, figura antes presa ao papel de gênero de cuidar, cozinhar e garantir a vitalidade dos trabalhadores da fazenda, ao decorrer da obra se mostra uma mulher atenciosa e preocupada com o futuro de seu neto.

Entretanto, a cena mais poderosa é a da reaproximação de Johnny com seu pai. Após aprender com Gheorghe o poder presente na troca de afetos e de se tornar responsável pela fazenda, Johnny começa a olhar a figura paterna de outra forma: entendendo agora seus sentimentos, ele se permite cuidar do pai. Martin, por sua vez, com a piora em sua saúde, é obrigado a depender do filho para cuidar não só da fazenda, como também de si mesmo. Ao ter de expor sua vulnerabilidade dessa maneira, o personagem entende que não adianta descontar o seus sentimentos de incapacidade e de frustração no filho, reconhecendo nos cuidados e na atenção dele, o seu carinho e o seu valor. Johnny finalmente recebe a aceitação e o amor paterno, mas isso só foi possível porque a ação inicial partiu dele. Todo esse turbilhão de sentimentos consegue ser sintetizados em uma só cena, apenas com a expressão corporal e um singelo, mas potente: “obrigado”.

Por fim, o filme consegue mandar uma mensagem poderosa aos homens no que diz respeito à construção de masculinidades saudáveis. Novamente parafraseando bell hooks: “Nós [mulheres] não podemos mudar os homens, mas podemos encorajá-los, implorar, e afirmar sua vontade de mudar. Nós podemos respeitar a verdade de seu eu interior, uma verdade que talvez eles sejam incapazes de falar: que eles anseiam se conectar, amar, e serem amados”. Da mesma forma, Johnny foi convocado por Gheorghe a falar de suas emoções, a romper o silêncio imposto ao gênero masculino e a afirmar no seu amor por ele a vontade de mudar. Desse modo, cabe a nós homens, com participação de mulheres aliadas, fazer o chamado para o despertar emocional de nós próprios e dos homens de nossa vida. Nós precisamos urgentemente construir uma cultura antipatriarcal que não negue aos garotos e aos homens o direito de amar. Nós, homens, precisamos ser ao mesmo tempo Johnny e Gheorghe em nossas relações, afirmando sem medo a nossa vontade de mudar.

  • As atitudes de Johnny também podem ser lidas como “masculinidade tóxica”. No entanto, preferi usar “masculinidade patriarcal” para definir essa configuração de práticas masculinas por ser a mesma expressão que bell hook utiliza no livro “A Vontade de Mudar: Homens, Masculinidade e Amor”.

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Coletânea de reflexões sobre cinema, literatura, música, política e direito.