Pode o fascismo ser neoliberal?

Michel Ehrlich
5 min readMay 29, 2020

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Muito tem se falado de fascismo ultimamente, por motivos óbvios: analisar Bolsonaro quase inevitavelmente nos remete aos fascismos.

Não pretendo responder, nesse breve ensaio, por que considero o conceito de fascismo pertinente para compreender o bolsonarismo (o que tampouco significa que este seja cópia exata daquele). O meu ponto de reflexão é sobre um item que é frequentemente elencado como uma diferença fundamental entre esses dois regimes. Bolsonaro, embora de fato o tenha feito só recentemente em sua trajetória política, abraça um neoliberalismo radical e militante, enquanto os fascismos clássicos são anti-liberais. Embora concorde que haja um deslocamento, não acredito que seja uma mudança tão radical. Para compreender isso, passarei de forma breve por alguns pontos da relação entre fascismo e liberalismo e sobre o neoliberalismo.

Os fascismos são geralmente caracterizados, corretamente, entre muitas outras coisas como anti-liberais. Mesmo fascistas e elites econômicas tendo se aliado para governar, tratou-se sempre de uma aliança desconfortável. Os fascismos nunca foram defensores de uma noção de Estado-mínimo e de mercado desregulamentado. Esse ponto de divergência precisa ser relativizado, tendo em conta que, especialmente no pós-crise de 1929, mesmo entre os liberais, poucos dispensariam certo grau de intervenção estatal na economia. Em uma economia de guerra, que acompanhou, especialmente no caso alemão, quase todo o governo, tampouco existe Estado mínimo. Porém, a supremacia do Estado e medidas protecionistas (mesmo que motivadas mais por nacionalismo do que por teoria econômica) certamente causavam algum incômodo nos liberais, mesmo que não tenha impedido boa parte deles de apoiar em maior ou menor grau os fascistas como uma alternativa ao que viam como uma iminente ameaça comunista — além de que, principalmente na Alemanha, muitos estavam de acordo e se beneficiavam das políticas raciais.

Ainda mais importante é compreender o anti-liberalismo dos fascistas. Por mais que não fossem favoráveis a economia liberal (ao mesmo tempo em que logo ficou claro que não pretendiam ameaçar nem sequer minimamente a propriedade privada, salvo a de inimigos da nação/raça, como os judeus), os fascistas de modo geral desprezavam a economia. Os fascismos eram mais anti-burgueses do que anti-capitalistas. A crítica que os fascistas faziam a burguesia não era como classe socioeconômica, mas ao que consideravam como valores burgueses. Os fascistas desprezavam o descompromisso da burguesia com a nação/raça, seu distanciamento do trabalho braçal e sua moral duvidosa. O problema dos fascistas era mais com o estilo de vida dos burgueses do que com seu papel econômico. É por isso que o anti-liberalismo dos fascismos jamais pode ser equiparado ao seu anti-comunismo — e por isso que, mesmo que a contragosto, fascistas aceitaram se aliar a liberais e a conservadores (ou ao menos a parte deles) para chegar ao poder, mas é inimaginável que fizessem isso com os comunistas.

Essa forma específica da crítica fascista a burguesia leva a outro elemento importantíssimo dessa relação. Uma das características fundamentais dos fascismos era de pretender superar as divisões de classes sociais. Não nos enganemos, isso não significa acabar com as classes sociais, mas apagar os antagonismos de classe com algo que as unisse, papel exercido sobretudo pelo apego à nação/raça. E em grande medida conseguiu isso e configurou um raro regime de direita com forte apelo popular. Embora a base social inicial dos fascismos fosse uma classe média amedrontada e ressentida, os fascismos logo conseguiram agregar nas suas fileiras operários, burgueses, aristocratas, etc., se não necessariamente na mesma proporção que na sociedade (os fascismos continuaram tendo mais apoio, proporcionalmente, na classe média), mais do que qualquer outro partido ou movimento político de sua época. Comunistas, socialistas, liberais e conservadores tinham um discurso dirigido fundamentalmente a classes sociais específicas que pretendiam representar e era nesses setores sociais que obtinham mais apoio ideológico e militante (não me refiro somente ao voto, que é afetado por uma série de circunstâncias do período eleitoral). Os fascismos não. Isso também contribuía para o desprezo mútuo entre fascistas, por um lado, e liberais e conservadores por outro. Enquanto aqueles viam nestes fracotes sem compromisso nacional, liberais e conservadores se horrorizavam com a truculência e o apelo popular dos fascistas.

Feita essa breve passagem por alguns dos elementos da relação entre fascistas e liberais, cabe, antes de concluir, abordar dois elementos rápidos do neoliberalismo, gestado no pós-guerra e efetivamente aplicado a partir dos anos 1970 e que se mostrou ser mais do que uma mera atualização do liberalismo, que serão importantes para a questão com a qual iniciei o texto. O primeiro aspecto é que o neoliberalismo não tem asco do Estado. Isso não significa algum tipo de conciliação com políticas keynesianas, mas, de forma resumida, que o neoliberalismo reconhece a necessidade do Estado justamente para criar as condições do livre-mercado e do sistema concorrencial. Nesse sentido, o neoliberalismo se alia com governos genocidas (fascistas ou não) não na coligação desconfortável do empresariado alemão com Hitler, mas na franca aliança dos Chicago Boys com Pinochet. Diferentemente do que ocorrera nos fascismos, em que as elites negociavam com a equipe de Hitler ou Mussolini as políticas que lhe eram favoráveis, o neoliberalismo é plenamente capaz de ser o próprio motor propulsor do governo tirânico.

O outro aspecto importante que quero destacar é que o neoliberalismo rompe com o discurso dirigido a uma classe social específica do liberalismo. Uma característica fundamental e distintiva do neoliberalismo é justamente que ele já não é mais essencialmente uma doutrina econômica, mas uma racionalidade que norteia todos os aspectos da organização da vida, inclusive a economia. O neoliberalismo não se limita a defender certas políticas econômicas (ou a ausência delas), pois percebeu que estas só “funcionariam” se as pessoas também moldassem sua forma de pensar ao neoliberalismo, se cada indivíduo fosse o que Foucault chamou de “empresário de si mesmo”. É isso que torna possível motoristas de Uber na contemporaneidade clamarem por Estado mínimo, algo, a nível coletivo, praticamente inconcebível no período anterior a 2ª Guerra Mundial, quando o discurso liberal sequer se dirigia a trabalhadores em condições precárias; mas o neoliberalismo o faz. Enquanto no entreguerras os ressentimentos populares usados pelos fascismos tenderiam a um anti-liberalismo (e até um anti-capitalismo retórico), na era do neoliberalismo é possível mobilizar os ressentimentos contra o Estado de bem-estar social (ou mesmo um projeto de).

O neoliberalismo, dessa forma, resolve boa parte das contradições (como já vistas, não inconciliáveis) do liberalismo com os fascismos. O neoliberalismo não se incomoda com um Estado forte, pelo contrário, é capaz de comandá-lo para seus próprios interesses. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo não adota o tom elitista do liberalismo clássico (o que não significa que não o seja), consequentemente já não incomodando tanto os novos fascistas e, principalmente não tem mais um discurso de classe específica e, tal como os fascismos, pretende abarcar todos os estratos da sociedade sob uma mesma mentalidade.

Não quero dizer com isso que o neoliberalismo seja necessariamente fascista; tal como no entreguerras, o fascismo não é a primeira opção das elites econômicas (não tenho dúvida de que teriam preferido Alckmin ou Meirelles a Bolsonaro ). Tampouco que os fascismos de hoje (ou neofascismos, ou pós-fascismos ou movimentos políticos com traços fascistas) sejam necessariamente neoliberais — especialmente na Europa, onde alguns dos movimentos de extrema-direita ainda se colocam como herdeiros dos fascismos de seus respectivos países (o que não é o caso de Bolsonaro, que não se posiciona como sucessor do integralismo), o anti-liberalismo ainda é muito importante. O que pretendo colocar é que neoliberalismo e fascismo podem se conciliar de forma mais confortável do que liberalismo e fascismo e formar não somente uma coligação, mas uma simbiose.

Algumas referências:

PAXTON, Robert — Anatomia do Fascismo.

BROWN, Wendy — Cidadania sacrificial.

FOUCAULT, Michel — Nascimento da Biopolítica.

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