círculo #1

Microfilos
16 min readJun 5, 2015

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Os Fofos | Arte e Teatro | Racismo | Representatividade | Política

[discussão iniciada por "A Máscara Tipificadora do Branco", de Ana Maria Gonçalves, e "No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho", de Eliane Brum, textos gerados por este debate.]

um. O texto da Ana Maria Gonçalves contém alguns (talvez muitos) equívocos, que dão margens a ilações um tanto inadequadas. Aponto apenas uma: pelo destaque que ela deu ao problema, ao qual mesmo a fina flor do reacionarismo nacional, Nelson Rodrigues, não era insensível, o problema da atuação do negro no teatro, o argumento se torna um tanto capenga quando nos damos conta de que o sujeito por baixo da tinta preta era um ator negro, gay e nordestino.

dois. Talvez, mas o black face não é só racista pela exclusão do negro dos palcos, mas pela estereótipo construído, a caricatura dos traços característicos e a conexão de uma etnia a uma posição social específica. O argumento mais forte do texto da Ana Maria Gonçalves, quanto a mim, foi o seguinte: os Fofos argumentam que a peça tratava de tipos: a Megera, o Sem Vergonha etc; o negro, aí, é um tipo, é o Negro, em oposição aos Brancos e sua variedade.

um. Saber qual argumento é o mais forte, nesse caso, resvala em bizantinismo. Eu me refiro àquele ao qual, em diálogo com Nelson Rodrigues, ela dedica mais tinta (ou toques!). Quanto a esse ponto que você levantou, o de que, a despeito do uso norte-americano, o recurso seria por si só uma forma de estereotipar o negro (o negro como um tipo único diante da diversidade dos tipos brancos), concordo que ele possa ser visto como redutor e, em certo sentido, estigmatizante. Mas aí eu entraria em questões ainda mais bizantinas… Os tipos são compostos, em chave crítica ou apologética, a partir da família historicamente dita tradicional e da sociedade que se forma em torno dela. Queiramos ou não, as coisas se passaram assim. Retratar a maneira como se passaram não significa reiterá-las, sobretudo quando, como foi informado por todas as fontes q conheciam a obra e o gênero em questão, a partir dos caracteres sociais dados de início (mimetizando a sociedade de então), as coisas se desenrolavam no sentido de estabelecer o seu ridículo… Mas, enfim, toda essa discussão, no fundo, é sobre como combater uma doença pelos seus (supostos) sintomas, quando todos sabemos que a cura só poderá vir quando se atingirem as causas.

dois. Eu disse que o argumento era o mais forte “quanto a mim”, ou seja, o argumento que me atingiu com mais força.

Que os tipos sejam compostos historicamente dentro de um quadro de referências tradicional é verdadeiro, porém não tão sólido; se o mesmo personagem de black face fosse tratado como “macaca”, “preta fedida”, a reação seria de uma ojeriza muito mais imediata, mesmo que esse comportamento seja historicamente fiel (é como a minha avó fala; e aparentemente há um filme de Mazzaropi que tem esse linguajar). Os limites de qualquer reencenação são dados pela contemporaneidade; A Mulher do Trem já acontecia sob limites do tipo antes da intervenção do movimento negro. Noutros casos seria também claro que as chaves não são só “crítica” ou “apologética” — mesmo em uma abordagem “realista” os motivos de resgatar esse ou outro símbolo no contexto em questão se dá por motivos surgidos nesse contexto; sua política manipula e arranja o conteúdo histórico.

Dito isso, no desenrolar do debate mesmo o diretor dos Fofos disse que o modo que um público contemporâneo decodifica a máscara, por esse potencial estigmatizante, prejudica sua função humorística — perdendo sua função, “como outras máscaras do circo-teatro”, ela é retirada de cena. Nisto, não é como se se pretendesse reeditar O Nascimento de uma Nação; o teatro é sempre uma arte viva, que renova as fontes, impossibilitado em si de reproduzir as fontes.

A metáfora de doença/sintomas (existe um núcleo causal central do qual emanam símbolos da sua existência) é muito diversa da que gera protestos desse gênero, em que existe uma retroalimentação, digamos, entre infraestrutura e superestrutura (o que, guardadas as diferenças, é a mesma bipolaridade da sua metáfora). De acordo com essa outra visão, os símbolos reforçam o que seria a causa ou as causas, ou são, simplesmente, causas também; constragimentos sociais e econômicos causam e são causados pelos culturais.

Você teria de ter mais argumentos para preferir a metáfora doença/sintoma do que o modelo de alimentação mútua.

um. Falta aí levar em conta a relatividade do nosso próprio presente. Fazer toda a massa compacta do passado, que sem dúvida comporta infinitas dialéticas da injustiça, para se tornar simplesmente acessível, passar pelos ritos de assepsia recém-definidos é de uma enorme falta (justamente!) de senso histórico. O presente não define o passado, antes, talvez, o contrário, por mais que mais difícil de notar que possa ser. Quanto ao resgate da temática circense em geral pela cia em questão, creio que o interesse se explica por si só, sem a necessidade de se explicitar razões políticas, embora sejam realmente abundantes, e sem deixar de lado a “questão do negro”. Quanto ao assentimento da cia. à exigência dos litigantes, as razões certamente são várias: desde a pura e ingênua boa consciência social dos artistas até o mais frio interesse comercial em readequar uma produção determinada ao gosto do público potencial. Não há dúvida de que os referenciais se alteram de acordo com os padrões de “gosto”, o problema é quando se pretende que o teatro assuma um papel que não é necessariamente dele, mas dos ativistas… Por fim, doença/sintoma, infraestrutura/superestrutura, resumiria do seguinte modo: o teatro de convenção e a comédia de costumes imitam a realidade, e de uma forma geral é a imitação que delimita seu horizonte de crítica. A crítica não é possível se se manipula de saída e arbitrariamente (e não segundo a convenção social) a realidade, mesmo que seja pelas melhores razões. Nesse caso, o melhor que ela consegue é fazer propaganda de alguma causa, talvez boa, talvez não. Nessa medida, me parece, ela é um produto derivado da realidade, embora, evidentemente, seja também uma forma de atuação sobre a primeira. Ainda assim, não me parece absurdo equacionar que o complexo das relações de dominação material pese mais sobre o teatro do que o teatro sobre estas relações.

dois. O passado define o presente, ok; mas o presente, sim, define o passado: define qual discurso sobre o passado preservar, retomar e disseminar. O esforço dos Fofos por recuperar a linguagem do circo-teatro não tem um propósito meramente arquivístico; existe porque Fernando Neves queria recuperar suas origens, reafirmar o percurso de sua família e de sua história, reposicionar simbolicamente um trabalho marginalizado — e todas essas são ações políticas. Tem uma faceta de militância e ativismo embora não sejam nomeadas dessa forma. Por outro lado, é também falta de “senso histórico” tentar isolar a reencenação da peça… da dialética histórica. Os embates em torno do seu sentido e da permissão de expor os seus símbolos são história; no limite, seu argumento implica no absurdo de que devemos parar o devir para que o teatro ocorra numa bolha.

Em um nível, de fato, pode-se fruir a peça desse ponto de vista: assistir a uma linguagem tal como ela era feita. É provavelmente assim que eu a veria. Mas uma peça montada atualmente parece que não consegue se restringir a documento, como a exibição de um filme conseguiria (ou a exibição de uma peça gravada). Fora isso, a temática do circo-teatro em geral não precisa de “A Mulher do Trem” em particular ou mesmo do blackface, que existia nesta peça mas não na que a mesma trupe exibiu na semana seguinte. O que se poderia criticar (e a Stephanie Ribeiro criticou) é a falta de crítica dos Fofos, que não problematizaram esse elemento na retomada da estória. (Tentando uma outra abordagem, os Fofos poderiam ter criado novas máscaras, em uma leitura contemporânea que recriasse formas antigas. Isso teria um potencial enorme.)

É preciso notar aliás que a defesa de um campo de liberdade para a arte e para a ciência são também convicções políticas, são defendidas também por ativismo e por militância (embora sem os rótulos) e implicam também em uma assepsia (embora sem esse nome), o que aliás se tentou aplicar sobre a forma do protesto (“melhor o boicote”, “melhor exibir e depois discutir” etc).

Esse trecho “o teatro de convenções e a comédia de costumes imitam a realidade” me soou como quando um debatedor falou de “cor natural”. Imitam certa construção da realidade, e você mesmo notou, derivada de certa posição de poder; a crítica “de saída” não é arbitrária, mas direcionada a esta posição de poder. A peça é vista como manifestação do poder e é o poder que se ataca através da peça. As questões a partir daí parecem ser: o quanto a peça é fruto do poder? (debatedores disseram que não é; se conjugou com lutas sociais e vem de outra origem); o quanto a peça colabora com o poder? (simbolicamente, concordou-se que de alguma modo colabora); o quanto o poder pode ser atingido por esse embate? (nas proporções que esse caso tomou, foi uma luta boa).

Os militantes não parecem estar pedindo por um novo realismo socialista ou por peças edificantes. Criticam uma representação estabelecida e perniciosa.

um. Explique a perniciosidade e eu retomo a questão da mímese em seguida.

dois. Perniciosa pela retroalimentação dos determinantes infraestruturais.

um. Ok. E como se faz crônica social sem oferecer um retrato da realidade tal como ela é, ou seja, tal como ela vem sendo estabelecida por determinantes materiais (eu diria, a ordem do capital e as instituições que a suportam)? Por hipótese, numa sociedade em que a maior parte, suponhamos, dos lixeiros são negros, retratar um lixeiro negro (pouco importando o encaminhamento dado à figura já que se criticaria a priori o “estereótipo”) em uma crônica, em uma peça, ou no que diabo for, seria pernicioso por “retroalimentar” o sistema de esquemas conscientes e inconscientes que regulam as perspectivas e possibilidades de desenvolvimento social dos sujeitos?

Até aqui, apesar dessa longa e abstrusa discussão que estamos levando, me parece que só há realmente uma questão em jogo: a tentativa de lançar um interdito sobre um recurso cênico. Por simples questão de honestidade intelectual, contudo, é preciso apresentar boas razões para tal. E, me desculpe, até agora, não consegui enxergá-las.

Quanto à imitação da realidade, sim, vc tem razão quando diz que a imitação é uma construção, no limite, tanto quanto a própria “realidade” o é. Eis um problema que toda a arte e a filosofia do século XX esmiuçaram até não mais poder. Mas a verossimilhança, numa comédia de costumes, convenhamos, não é difícil notar que estará atrelada justamente aos costumes. Se os costumes serão endossados ou criticados (entre outras possibilidades), isso dependerá de muito mais fatores do que um ou outro recurso cênico tomado isoladamente e descontextualizado. A questão não era com a posição ocupada pela personagem na hierarquia social, afinal, negá-la abstratamente seria puro diversionismo, quando essa posição é justamente o que dá ensejo à luta dos movimentos. O que causou toda a confusão foi o recurso cênico, e não me parece que o recurso é racista por si (como, em 2015? etc), embora, sem dúvida, haja histórico de seu uso dando suporte a atitudes racistas, conforme o resgate que a autora acima fez das palavras do Nelson Rodrigues, ou conforme o histórico norte-americano.

dois. Não estou achando abstrusa não, você se complicou onde?

- Sobre a primeira pergunta, como se faz crônica social etc.

Primeiro temos de por em dúvida essa preocupação estatística. Como é que a hipotética superioridade numérica de negros lixeiros implicaria em representar personagens negros? De um ponto de vista criativo seria até interessante enfocar a “minoria” nesse contexto. (Essa mesma preocupação estatística não acontece ao contrário: por exemplo, somos um país de 70% de negros e pardos, mas a classe média na capa da Isto É nesta semana é toda branca.)

Segundo, ignorando que o argumento estatístico é fútil, e mesmo que não se pretenda causar “resultados positivos” nas perspectivas dos indivíduos , também caberia perguntar a que vem essa crônica social — como eu disse antes a respeito da “abordagem realista”. Uma reportagem e uma ficção teriam dificuldades diferentes. Aliás, essa seria outra boa discussão: como a crônica social lidou com isso ao longo do tempo.

Terceiro, acho que dava pra fazer assim.

Além disso, como a sua provocação dá a entender, o discurso da estatística pode ser ainda mais forte do que a representação final, o negro como lixeiro. O apelo à estatística, ou a uma suposta estatística, é um “sintoma” mais profundo. Uma anedota: outro dia, num grupo de dúvidas de escritores, um sujeito expôs um dilema: tinha sete ladrões na sua estória; queria colocar quatro negros e três brancos, mas isso “seria racista”, então pensou em colocar quatro brancos e três negros, mas isso “seria muito distante da realidade”.

um. Sem dúvida seria interessante enfocar a minoria, mas não era esse o ponto. a questão é se seria pernicioso enfocar a possível maioria? O que eu queria dizer com isso é simplesmente que oferecer um retrato do estado geral de coisas, ou seja, uma elite cuja imensa maioria é branca e uma massa dominada cuja maioria é negra não significa estar de acordo ou reiterar esse estado de coisas. A arte pode ter pretensões políticas explícitas, mas pode não ter. E geralmente a melhor crítica é a que oferece um retrato adequado a um estado de coisas determinado (um retrato geralmente tão disforme quanto o mundo retratado), não a que oferece lições de altruísmo e boa consciência (nesse sentido, por exemplo, Kafka é um realista crítico e o teatro sartreano, uma igreja de subúrbio) Se haverá ou não consequências políticas independentes das pretensões, bem, isso consiste ao mesmo tempo em um truísmo e numa demonstração não raro indemonstrável.

Quanto à questão “estatística”, primeiro, talvez eu esteja enganado, mas o último senso dá o conjunto “negros” como pouco mais de 50%, não 70%. Mas isso é menos relevante que o ponto que você levanta. Concordo que as revistas semanais, a publicidade, enfim, o establishment informacional, dão pouco destaque à população negra. E não apenas publicando apenas fotos de brancos em suas capas, mas, o que é muito pior, escamoteando os problemas sociais da maioria negra e pobre da população. A questão, porém, seria sobre como resolver esse tipo de problema. Seguindo a “lógica” da intervenção contra essa peça, a questão seria fazer o possível para impedir a veiculação de todos esses meios até que representassem adequadamente os que se consideram mal representados? Por absurda, a hipótese deve ser de antemão desconsiderada. Então, além do trabalho, importante, de contra-informação, cabe trabalhar pela ampliação dos canais de comunicação, mais do que pela vedação e (im)possível repartição dos já existentes.

Você se pergunta, entre outras coisas, como a crônica social lidou com “isso” ao longo do tempo? Eu coloco uma outra anedota. Tenho aqui comigo um volume de crônicas do Vinícius que sinceramente não sei como ainda não foi boicotado por movimentos minoritários em geral. É um prato cheio para tudo o que consideram estigmatizações e ataques a sua auto-estima, etc. Entretanto, foi por iniciativa dele que se montou o espetáculo teatral, transformado depois em filme, Orfeu Negro, com elenco inteiramente composto por pessoas negras. Veja quanta ambiguidade pode caber numa única persona, coisa de que os juízos peremptórios e as infinitas minúcias da desconfiança moral institucionalizada (um pouco como toda polícia política, uma vez munida de aparato material suficiente, soube fazer à perfeição), apesar de infinitas e minuciosas, não podem chegar a captar.

Por fim, eu fiz recurso ao argumento estatístico não porque a arte, seja ela qual for, deva por razão de consciência ou técnica aplicar-se a encarnação estatística dos atores sociais. Mas porque a estatística não deve ser um parâmetro confirmado nem negado pela criação. É só uma questão de chamar as coisas pelo nome: dizer que todos os postos considerados inferiores na hierarquia social são ocupados por pessoas pobres e que a maioria dessas pessoas pobres, no Brasil, é negra, é assinalar um dado, não emitir um juízo, como aparentemente, querem as tentativas de fundamentação de intervenções como essa que estamos discutindo. E negar um dado na esfera de sua representação secundária (na medida em que ele aparece nas manifestações culturais — independentemente da forma como se apresenta), não altera em nada o seu caráter de dado, apenas o escamoteia, sabe-se lá com quais intenções.

dois. Sobre o primeiro parágrafo: em um sentido, a descrição realista ou, para ampliar as coisas, paradigmática sempre tem o potencial de ser perniciosa, porque por mais que se descreva como diagnóstico ou denúncia ou circunstancial ela se impõe como modelo; e os modelos todos demandam que se pense a partir deles (uma descrição “realista” sobre racismo e pobreza implicaria em políticas públicas para saná-la; ainda mais, essa descrição persistiria em grande parte apesar dos resultados dessas políticas — quando se diz que “não se pode mais falar nessa divisão brancos e negros” se reclama o abandono de um modelo de uma visão “realista”), os modelos diminuem a percepção de divergências e determinam quais as perspectivas de um sujeito sobre ações e situações. Isso não pode ser negado porque é a própria condição de possibilidade de alguém querer fazer uma descrição realista: dar uma base ao pensamento que seja sólida, fornecer uma imagem da realidade pretensamente abrangente por completo; e determinar posturas a partir disso. Os produtos culturais, além disso, existem em uma rede de outros produtos culturais — uma mensagem (que seja, a de que negros são pobres e trabalhadores da infraestrutura) repetida por esse conjunto tem uma pressão psicológica distinta da de um artigo acadêmico ou uma longa reportagem. Ademais, quanto mais distantes do cotidiano de um indivíduo certos grupos e culturas, mas ele vai se aferrar a compreensões vagas absorvidas dessas mídias. Todos esses efeitos e condicionantes existem. Quando escrevemos um texto, definimos os conceitos de saída — por que? Porque sabemos dos problemas que advêm do contrário. Em suma, ou o criador que quer fazer crítica social age com ingenuidade e não reconhece essa problemática; ou com malícia; ou decide por um ou outro uso segundo critérios pensados, e não automáticos.

A demonstrabilidade de uma visão assim pode ser inferida de alguns relatos. O documentário Good Hair, do Chris Rock, por exemplo problematiza a imposição de uma aparência estética branca aos negros. (É isso também que está em jogo na blackface; certos traços como exóticos ou ridículos ou pelo menos anormais — nenhuma outra pessoa em A Mulher do Trem tem os traços enfocados dessa forma.) Estabelece-se que um cabelo é ruim e o outro é bom por meio de uma série de ações culturais; a partir desse modelo, o comportamento de uma série de indivíduos é determinado; o mercado aceita pessoas apenas segundo o modelo, reforçando economicamente o crivo; criam-se empresas que lucram com isso e reforçam o estereótipo. E é uma coisa que nasce na cabeça da gente, não existe hierarquia real. Um outro exemplo disso ocorreu nessa discussão abaixo sobre se deixar meninas quererem ser princesas as impede de ser cientistas: é a representação interna de um comportamento e outro que os tornam incompatíveis e assim bloqueiam o desenvolvimento de alguém. Ainda outra discussão interessante é sobre a imagem do negro nos livros de fantasia; na busca por um herói, o menino negro eventual só se descobrirá selvagem, vilão, necessitado de um guia branco e europeu (link).

Sobre o segundo parágrafo: eu disse “negros e pardos”, o que dá em torno de 70%, se me lembro bem. Seu argumento nesse trecho é falacioso, porque A Mulher do Trem não foi atacada por não ter um negro na peça, ou peças somente com atores brancos não sofrem boicotes tão intensos por isso (embora possam ser criticadas); A Mulher do Trem sofreu essa interposição porque continha um símbolo racista. Quanto aos outros meios, se, como no Zorra Total, há também blackface, pede-se a interrupção; de resto, me parece haver o pedido por um aumento de representatividade. (Nisso, está de acordo com o que você diz de aumentar os canais de representação; talvez apenas ressaltando que é preciso ampliar o espaço nos canais tradicionais de comunicação, e que são canais de poder — as artes cênicas, ao que indicam algumas referências, como a do Nelson Rodrigues, é um desses espaços de poder). Há um texto didático e divertido sobre a demanda representativa.

Sobre o terceiro parágrafo: concordo. Mas isso significa, na linha do que disse há pouco, que o artista pode ser criticado pela abordagem e falta de critério — a Vinicius poderia ser contraposto a contradição entre as duas visões que a obra dela suporta segundo você; e um livro como “Combe”, de quadrinhos, que li recentemente e que traz histórias de escravos, poderia ser criticado na medida em que todas as mulheres do livro são culpadas da desgraça, como Eva. O que você quer eliminar, eu entendo, é a possibilidade da autocensura prévia, como a que ocorre como um personagem de Augusto Monterroso que não consegue escrever sátira social porque não quer ofender ninguém; por um lado esse parece ser um perigo aos artistas que já têm a criatividade morta — aquém da autocensura, o que se pede é mais dúvida, mais crítica, mas por em questão os próprios automatismos, o que se cria ou recria por default. Blackface tem tal história, artista, você elabora tudo isso e sustenta o que fez?

O quarto parágrafo acho que foi respondido pelo anterior. Deixei alguma coisa de fora?

um. Enfim, continuaremos discordando. Embora eu reconheça e, como pessoa negra, tenha vivido alguns dos problemas que você levanta, as possibilidades de solução não me comprazem muito. Quanto a proporção de negros, verifiquemos uma informação oficial depois, mas eu acredito que esteja na casa de 51% a 53% (o conjunto pretos, pardos e indígenas — autodeclarados no censo). Mas isso, como eu já disse antes, não torna válido ou inválido nenhum argumento. Quando vc acusa meu argumento de falacioso, não entendo bem. Primeiro, a questão contra a peça não era unívoca. Começou pelo interdito contra o blackface e desdobrou-se em relação às razões pelas quais se tratava de algo negativo esse recurso. Dentre as muitas questões, levanto duas: 1) estigmatiza traços físicos de pessoas negras; 2) tira a oportunidade a um ator negro representar um personagem negro (o que era o caso, por exemplo, na peça do Nelson). Ao contrário do que vc disse, o diretor afirmou no debate que as características caricaturais, físicas e psicológicas, não eram apenas da personagem negra, mas de todas as demais. Quanto ao outro ponto, o de tirar a oportunidade de um negro, por puro preconceito, cai um tanto por terra quando se nota que se tratava de um ator negro (pardo), não acha? Por fim, o outro ponto que se levantou era a razão pela qual havia diversos tipos brancos e o negro era ele próprio um “tipo”. Eu diria que é uma questão de situação mais que de racismo. Mas, enfim, não vou me alongar novamente a respeito. Por último, a hierarquia social: você tem razão ao dizer que não se trata de um tipo de objeto que se tome nas mãos. Nessa medida, trata-se de algo simbólico, ou seja, está, como vc diz, nas nossas cabeças. Mas não é verdade por isso que basta mudarmos nossas cabeças para que a hierarquia social se desfaça. Creio que notar esse ponto nem exige uma argumentação muito acurada… apenas uma breve digressão: após a acomodação do proletariado branco europeu no pós-guerra, a esperança revolucionária geograficamente se transferiu para as lutas coloniais, os desvalidos em geral do colonialismo eram o novo sujeito revolucionário. Um sujeito revolucionário põe abaixo uma hierarquia, caro amigo, não dentro de cabeças, mas cortando cabeças…

Sartre/Fanon viam nas lutas coloniais o alvorecer do homem novo. Já a esquerda pós-moderna americana, o mais longe que pode ir é um condescender-se de um menino negro que não tem um super-herói com quem identificar-se. Percebe o descompasso? Por fim, se a questão for mesmo permanecer no âmbito dos super heróis, parece-me muito mais produtivo criar super-heróis negros para meninos negros, já que se julga que precisamos disso, do que fazer a grita a cada vez que alguém tiver a brilhante ideia de fazer de um negro um antagonista qualquer.

[discussão abandonada]

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