Adolescentes encontram na mudança de gênero a chance de ser quem realmente são: ‘Eu me senti livre quando soube que podia mudar tudo’
Em busca da verdadeira identidade, jovens recorrem a processo de transição cada vez mais cedo
Alice Vieira e Gabriel Ojea
Tratada pelos profissionais de saúde com cautela e sempre em meio a controvérsias e debates políticos, a mudança de gênero vem acompanhada de decisões que alteram permanentemente a vida de uma pessoa. Essa responsabilidade não está atrelada exclusivamente aos adultos, mas também a adolescentes, como os jovens Theo e Luke, que desejavam conquistar o sentimento de liberdade.
De acordo com a psicóloga e psicanalista Maria Cristina Dalia, de 63 anos, a busca de uma outra identidade de gênero normalmente acontece depois de um sentimento de inadequação em relação a identidade do corpo. Ela explica que até o entendimento e o início de um processo de transição é um longo caminho. “Não é possível ter certeza se os adolescentes vão ou não se arrepender de suas escolhas, não existe garantia de nada e todo cuidado é pouco”, diz.
O adolescente Theo Gumiero Servidio, de 16 anos, percebeu que não se identificava com seu gênero de nascimento quando tinha apenas 13 anos. “Meu pai dizia que quando eu tinha 2 anos, eu chorava quando colocavam vestido ou saia em mim e não usava de jeito nenhum. Então acho que desde sempre me identifiquei como um garoto”, revela.
Theo deu início ao processo de transição antes da maioridade e explica que foi uma decisão complicada, pois sua família não reprimiu a ideia, mas demonstrou receio que ele acabasse se arrependendo ao decorrer da mudança. Entretanto, nunca deixaram de apoiá-lo. “Muitas pessoas LGBTs não tem essa sorte que eu tive tanto na família quanto nos amigos”, afirma.
Depois de muita conversa com seus familiares sobre as decisões que pretendia tomar, Theo passou a fazer acompanhamento no Hospital das Clínicas a partir de 2017. Esse ano, além de ter começado o tratamento hormonal, Theo pretende mudar toda sua documentação no cartório e almeja realizar a cirurgia de remoção dos seios (mastectomia).
Existem casos e casos. Segundo Maria Cristina, a decisão geralmente não é bem compreendida pelos familiares e por pessoas próximas a esse jovens, o que resulta em críticas e sofrimento para todos. “A mudança de gênero não é um processo que deve ser acompanhado somente em um consultório e requer a participação de vários profissionais, como médicos, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, que vão escutar o adolescente e seus familiares”, explica.
Luke Ribeiro Mazzei França Barros, de 19 anos, cujos pais são separados, teve grande dificuldade para fazer com que a parte materna de sua família aceitasse sua decisão. O suporte veio de seu pai, seus amigos e de sua namorada na época. “Eles sempre foram a favor da minha liberdade e felicidade”, afirma. Atualmente Luke vivencia uma aceitação mais plena, já que saiu da Baixada Santista e se mudou para outro estado, a fim de cursar Psicologia.
Assim como Theo, Luke também se identificou como homem trans antes dos 18 anos. Ele explica que primeiramente pensou que seria algo relacionado com sua orientação sexual e só depois de um tempo começou a entender sobre o que se tratava. “Eu fui percebendo que era uma questão interior, de como eu próprio me enxergava”, revela.
Desde os 14 anos Luke é acompanhado por uma psiquiatra e um psicólogo. Foi ao endocrinologista aos 17 anos e optou por começar o tratamento hormonal. “A decisão foi importante para entender quem eu realmente era, uma aceitação, que antes era bem dificultada por causa da auto-estima, entre outros”, confessa.
Ao atingir a maioridade, o jovem realizou a cirurgia de retirada dos seios e deu entrada para realizar a mudança da documentação em janeiro de 2018. A sentença saiu em abril do mesmo ano. “Muitas pessoas eram inconvenientes, principalmente na escola, mas a maioria já me tratava pelo nome social”, diz.
PRECONCEITO
Para Maria Cristina, até pouco tempo a mudança de gênero na menoridade não era admitida e o assunto nem estava em cogitação na área da psicologia, entretanto, ela afirma que cabe ao profissional despir-se de preconceitos e crenças, permitindo que o paciente se sinta à vontade para falar.
Tanto Theo quanto Luke já enfrentaram situações preconceituosas. Theo conta que recebeu apoio em sua escola, mas vivenciou momentos constrangedores. “Tinha um professor que era bem babaca comigo. Ele pulava meu nome na chamada, não tirava as minhas dúvidas e fazia questão de me chamar de ‘senhorita’ pra provocar, mas ele foi demitido por esse atos”, confessa.
Apesar disso, o adolescente procura não deixar se abalar, mas não consegue relevar o fato de que o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo, gerando dentro de si medo de entrar em banheiros masculinos sozinho e até de sair de casa sem nenhuma companhia, coisa que pessoas cisgênero fazem normalmente.
Por outro lado, Luke explica que devido a sua postura heteronormativa é difícil se ver em situações de preconceito. “Ter começado a hormonização e feito a cirurgia me fazem parecer homem cis e acabo não sendo alvo. O difícil de lidar é quando as pessoas ‘descobrem’ que sou trans e começam perguntas totalmente constrangedoras e desnecessárias”, afirma.
VIDA PÓS MUDANÇA
Não foi fácil para os garotos tomarem a decisão de dar início a um processo de transição antes dos 18 anos. Ambos precisaram encarar diversos obstáculos para conseguirem alcançar o tão sonhado sentimento de felicidade com o gênero que se identificavam. Por conta dessa luta, são muito convictos em relação às suas decisões.
Luke demonstra estar bastante satisfeito com a mudança. “Pude encontrar o meu verdadeiro eu. Não preciso me passar por uma pessoa que nunca fui e sim por uma pessoa que sou”, explica. Já Theo descreve sua vida no momento como ‘perfeita’. “Lógico que como qualquer pessoa eu passo por problemas, mas eu me sinto livre, feliz, suficiente e é muito bom sentir tudo isso”, garante.