A Bela e a Fera (1991) — Parte 2

Miguel Serpa
39 min readSep 9, 2018

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Parte um

O que faz de A Bela e a Fera tão especial é o peso de seus personagens, sobretudo sua dupla de protagonistas, que possuem um dos relacionamentos mais bonitos e tangíveis já retratados em uma obra do estúdio. O que sempre impediu Walt Disney de adaptar A Bela e a Fera para a animação durante seu período era não saber como retirar de uma história tão simples e básica uma narrativa capaz de preencher o tempo de um filme, com começo, meio e fim, e que fosse satisfatória para o espectador. Este é o problema com muitos contos de fadas; eles são extremamente simplistas e curtos, com suas narrativas extremamente básicas e didáticas que não trazem consigo uma história rebuscada o suficiente para prender o público pelo tempo de um filme — claro que Disney conseguiu burlar este percalço em seu caminho com obras como Branca de Neve, Cinderela e A Bela Adormecida, normalmente o fazendo incrementando a narrativa ao adicionar mais personagens, sobretudo secundários, que dividiriam o espaço de tela da história principal com suas cenas de alívio cômico, não tanto adicionando à história principal em si, mas divergindo dela, para que a mesma pudesse se esticar por mais um tempo. No entanto, ele nunca soube o que fazer com A Bela e a Fera, história esta que essencialmente acompanha uma mulher andando por um castelo por sua duração e sendo pedida em casamento por uma fera repetidas vezes até aceitar. Pouca coisa acontece além disso, e sempre se houve a dúvida de como transformar um conto tão simples por uma lente cinematográfica. Demoraram-se décadas para que alguém, na forma de Howard Ashman, descobrir a resposta para este enigma: aprofundar os personagens.

Ashman decidiu que o seu A Bela e a Fera seria mais focado nos personagens, em seus dramas e seus conflitos, e em seus arcos narrativos, e isso daria a abertura para esticar a história, que não seria mais um conto monótono e cíclico, e sim uma narrativa pautada em um arco de personagem a ser completado no final. Este modelo seria a norma por toda a Renascença, e o é até hoje — é aqui que os filmes da Disney deixam de ser apenas contos descompromissados e se tornam narrativas estruturadas ao redor de seus protagonistas. A Bela e a Fera é um grande exemplo deste tipo de formato, porque o filme realmente se foca inteiramente aos seus personagens, no caso, a Bela e a Fera, e coloca o relacionamento deles como o principal ponto aqui, mais especificamente, a forma com que esses dois personagens vão se conhecendo, abaixando suas barreiras um para o outro, e se apaixonando. Isso é algo que não costumávamos encontrar em contos de fadas da Disney até então, que traziam seu romance de forma muito inconsequente e corriqueira. Nenhum conto de fadas vindo da Disney até então se levou a analisar e dissecar o relacionamento de seus príncipes e princesas, o amor nessas histórias era visto mais como uma recompensa, a resposta para todos os problemas, e a simbolização do final feliz para nossas protagonistas. Até mesmo com a princesa mais recente do catálogo da Disney até o momento, Ariel, este feito se repetiu, com seu relacionamento com Eric sendo mais uma versão de um romance genérico, onde mais uma vez a história da garota é toda pautada em conseguir quem ama, mesmo que eles mal tenham tempo para se conhecer e o filme não se dedique a construir o relacionamento entre eles, e terminando com eles juntos no final. Aqui, este conceito cai por terra, com A Bela e a Fera sendo todo pautado não só em acompanhar o relacionamento de seus protagonistas florir aos poucos, mas um de seus maiores temas sendo fazer por merecer o amor do outro, ao invés de simplesmente cair do céu como um brinde no final da história.

Por isso que eu me sinto tão frustrado quando algumas pessoas cismam em limitar toda a história de A Bela e a Fera como uma simples história que romantiza a síndrome de Estocolmo, porque o filme claramente não é isso, aliás, muito pelo contrário. O que faz de o romance entre a Bela e a Fera tão interessante e, por consequência, mais bem construído do que o de outros contos de fadas vindos pelas mãos da Disney, é que ele justamente vai contra as convenções que esperaríamos de uma história deste tipo. Ele não apenas subverte a relação que estas histórias, e estes filmes, normalmente tem com o romance, como subverte a própria história de onde se inspirou. A Bela e a Fera, originalmente, era uma história sobre a beleza interior, e não julgar um livro pela capa — cabia à Bela ter que aprender a amar Fera por quem ele é, e aprender a aceitá-lo apesar de sua aparência. No entanto, o filme da Disney questiona a figura de Fera, e não o pinta como alguém de bom coração que só queria receber amor, e Bela como alguém egoísta e superficial por não conseguir retribuir seu amor graças ao físico do personagem. Bela, aliás, não parece ter problemas com o exterior de Fera, seu problema é com seu interior, e sua figura grosseira, impulsiva, egoísta e violenta, que mantém o pai da mesma de refém apenas por ele procurar abrigo em seu castelo, e mais tarde, quando Bela decide trocar de lugar com Maurice e tomar seu lugar no castelo, a trata de maneira fria e distante, mas esperando que ela cumpra todas as suas ordens e vontades, como ir jantar na hora que ele mandar e não ir nos lugares que ele a proibir de ir. Bela a vê como um monstro inicialmente porque ele é um monstro. A transformação que Bela precisa que ele faça é interna, que ele vire alguém belo internamente para que seja digno de amor e possa quebrar a maldição com que se encontra. A Fera até tenta colocar a culpa da rejeição de Bela em sua aparência, dizendo para si mesmo que ela nunca se apaixonaria por um monstro como ele, mas isto é mais uma maneira de tirar a culpa de si e atribuí-la a outra coisa, para evitar ver seus próprios erros — em suma: enquanto que o conto de fadas original trata Fera como alguém incompreendido e julgado erroneamente, a versão da Disney o cobra por seus erros, e espera que ele mude ao longo da narrativa para, enfim, ser digno de amor.

E ele acaba mudando, com o filme sendo literalmente sobre esta mudança, e sobre o poder transformador que o amor tem sobre alguém, neste caso, externamente sim, mas principalmente de forma interna. Porque Fera encontra em Bela alguém digno de afeição, alguém com quem ele se encanta, e acaba querendo mudar por ela. Ao contrário do que as críticas referentes a síndrome de Estocolmo dão a entender, Bela nunca desculpa o comportamento abusivo de Fera, ela nunca abaixa a cabeça para ele e deixa que ele faça o que bem entender com ela — aliás ela é a única que não faz isso. Parte do que faz a dinâmica dos dois tão interessante e divertida no primeiro ato do filme é o fato de justamente Bela encarar Fera de frente, ao contrário de acatar aos seus chiliques, como os objetos encantados fazem. Basta vermos a cena onde Fera discute com Bela por ela se recusar a ir jantar com ele, ou a cena onde ela tenta curar seus ferimentos quando ele a salva dos lobos na neve — enquanto todos os objetos encantados abaixam a cabeça para os ataques do patrão, a mulher é a única a demarcar seu território, primeiro quando diz a ele que não irá jantar e ponto final, e segundo quando os dois discutem enquanto ela ajuda a sarar seus machucados. Os dois acabam tendo uma relação em pé de igualdade, e os momentos em que nós podemos vê-los interagindo e brigando um com o outro automaticamente o deixam mais interessantes do que todos os casais genéricos destinados a ficar juntos que os contos de fadas da Disney nos entregaram até então. Aqui, nós podemos ter uma ideia de como é a dinâmica entre os dois, e isso já os faz muito mais divertidos de se acompanhar.

E é a atitude pé firme de Bela que faz com que Fera mude de atitude. Ela conquista o coração do monstro ao ser a única pessoa que o trata de igual para igual, e não como alguém digno de ser temido. Fera, então, procura mudar o seu próprio comportamento para agradar a ela, e nunca o contrário. É ele quem busca amadurecer para que, então, possa conquistar Bela. Porque a realidade é que Fera nunca cresceu. Muitas pessoas tratam o fato de Fera ter sido amaldiçoado pela feiticeira com onze anos como um “furo de roteiro” por parte do filme — devido às contas, já que no começo da história, tendo se transformado em Fera há dez anos, o protagonista completa vinte e um. Mas isso foi uma decisão deliberada por parte dos animadores — havia até a ideia de mostrar Fera criança sendo amaldiçoado. E Fera se comporta como um adolescente na maior parte do tempo, isso é também parte do que faz dele uma figura divertida. Ele é claramente um garoto que não tem nenhuma experiência com como lidar com alguém do sexo oposto, o que nos é mostrado nas cenas em que Horloge, Samovar e Lumière dão dicas de como conquistar Bela a ele, como se ele fosse ainda um menino aprendendo a namorar. E muitos dos maneirismos de Fera, até mesmo corporais, revelam a imaturidade do mesmo. Em seu cerne, Fera ainda é um menino que odeia ser contrariado e que faz pirraça quando não consegue as coisas do jeito que quer (novamente, a cena em que ele demanda que Bela vai jantar com ele é um excelente exemplo disso). Ele não é tanto um homem perverso que deliberadamente age de maneira cruel para com os outros, e sim um menino mimado e inflexível, que age de maneira irracional e levado pelas suas emoções. Mas quando ele se apaixona por Bela, Fera faz o esforço para amadurecer, ao invés de continuar sentindo pena de si mesmo e deixar que a maldição tomasse conta de sua vida.

A rosa faz um perfeito paralelo para o relacionamento do monstro com Bela, e com a ideia do amor e da beleza no geral. A rosa sempre foi um elemento presente em A Bela e a Fera (sendo ela que impulsiona Bela a ir morar com Fera, quando seu pai a rouba do jardim do monstro, e faz uma barganha com ele, dando-o Bela em troca de sua vida), mas é a versão da Disney que a catapulta para uma posição de destaque absoluto. O produtor do filme, Don Hahn, disse que, ao adaptar A Bela e a Fera, os animadores decidiram que a rosa precisaria ter um significado maior aqui, para explicar o porquê de Fera ser tão possessivo em relação a mesma. Inicialmente, Fera guarda sua rosa em uma redoma de vidro, na ala oeste, que ele proíbe estritamente qualquer pessoa de visitar. É como se ele quisesse a flor apenas para si, como um objeto, para guardar e possuir, o que se reflete na maneira inicial com que a criatura trata Bela, como um objeto ao seu dispor, assim como todos ao seu redor (literalmente, no caso), determinando onde ela vai ou deixa de ir e até que horas ela vai jantar. No entanto, quando Bela se recusa a acatar suas ordens e viver como sua marionete, e Fera entende que é preciso valorizar Bela como pessoa e não como um objeto, ele deixa de ser tão possessivo para com a flor, até deixando que Bela entre na ala oeste. Fera vai se esforçando para não só ser amigável para com Bela, mas para entendê-la melhor e seus interesses, demonstrado por quando ele a mostra sua biblioteca, por saber que a mesma gosta de ler. Este ponto chega ao seu ápice quando Fera deixa Bela ir embora do palácio, quando a mesma descobre que seu pai está doente, e permite que ela vá encontrá-lo, mesmo que assim a maldição nunca seja quebrada — ele coloca os desejos e necessidades de Bela acima dos seus, pois a ama de verdade, e compreende que, portanto, tem que deixá-la livre, e não mais presa à uma redoma de vidro.

Esta mudança de Fera pode ser perceptível através de diversos elementos ao longo do filme, um deles sendo a própria animação do personagem. Glen Keane foi o responsável por animar a criatura, devido a trabalhar normalmente com personagens largos e poderosos, como o urso em O Cão e a Raposa, e Professor Ratagão de O Ratinho Detetive. Aqui, Keane pega tudo o que aprendeu com esses personagens e entrega talvez o seu melhor trabalho. Ele disse que inspirou Fera em uma série de animais diferentes, como o búfalo, javali, gorila, leão, e urso, indo ao zoológico diversas vezes durante a preparação para o projeto, e treinando ao desenhar esses animais. Keane disse que queria inspirar Fera em animais conhecidos para fazê-lo familiar ao espectador, ao mesmo tempo em que não fosse uma figura humana (no fim, a Fera da Disney traz muitas similaridades com a de Jean Cocteau, sendo uma criatura mais felina do que qualquer outra coisa, algo que foi Cocteau que originou em seu filme, com retratações clássicas do personagem o pintando como um monstro surreal ou então um javali). Outro ponto importante da construção visual de Fera são seus olhos azuis, o único atributo humano que lhe resta, funcionando como um lembrete de que por baixo daquela fachada animalesca, ainda há um homem, e diversos momentos chave da história, que querem demonstrar o amadurecimento do personagem, se focam em seu par de olhos, como no clímax, onde ele se recusa a assassinar Gaston, após o mesmo tê-lo atacado e tentado matar, mostrando que ele não é mais a pessoa impulsiva e raivosa de antes, tendo desenvolvido uma compaixão.

Ao longo do tempo, Fera vai abandonando seus tiques e trejeitos animalescos, que tinha em abundância no começo da história — a cena em que ele é introduzido em específico, sendo extremamente poderosa e belissimamente animada com o jogo de sombra e brincando com o suspense, mostra-o se movimento como uma criatura irracional e selvagem, algo que aos poucos, a medida em que se apaixona por Bela, ele vai largando e assumindo sua humanidade. Esta linha tênue entre a bestialidade e a humanidade de Fera é o que faz sua figura tão interessante, com Keane dando destaque total à linguagem corporal do personagem para mostrar o seu esforço e dificuldade em se reconectar com seu lado humano, como quando ele tenta comer com talheres ou quando tenta dar de alimentar aos passarinhos, tentando se livrar de sua dureza e grosseria e ser mais delicado. A animação de Fera e sua linguagem corporal é lotada destas dualidades, como sua figura imponente e cruel, e a dor e solidão que sente por dentro, ou até o contraste de sua aparência assustadora com o seu jeito imaturo e infantil de ser. Além do personagem de Fera, o castelo também muda visualmente a medida que o personagem muda, inicialmente sendo cercado por breus, sombras e estátuas assustadoras, e, com o tempo ganhando mais cor, a medida que a luz do sol vai entrando e tons quentes vão pipocando por entre o palácio.

Antes e depois do castelo da Fera

Bela, portanto, deixa de ser a típica princesa da Disney, passiva e definida apenas por sua beleza e seu próprio relacionamento. Sim, ela é bonita, como seu próprio nome já diz, mas também há mais na personagem do que apenas este elemento. Primeiro que ela tem uma personalidade forte e definida, marcada por sua curiosidade e seu intelecto, sua paixão por livros, e etc. Além disso, pela primeira vez em um conto de fadas da Disney, é a princesa que dita o rumo de seu relacionamento com o príncipe, é ela quem tem o controle da situação, ao contrário de todos os outros filmes de princesa até então, onde o homem simbolizava todos os sonhos da mulher, sempre a resgatando no final. Aqui, não só nós acompanhamos o relacionamento entre os personagens título evoluindo e crescendo desde o princípio, e ele não simplesmente cai dos céus sem que nenhum dos dois realmente se conheça ou tenha que batalhar por ele, o que faz com que A Bela e a Fera seja uma das melhores histórias de amor contada pelos estúdios Disney, mas Bela passa a ser uma figura proativa, que não espera sentada até o amor de sua vida cair dos céus. No fim, é Bela quem salva o dia, através de seu amor e sua compaixão, salvando a Fera da morte e o restaurando de volta para sua forma humana. Eu já falei no passado os meus problemas com esse nosso hábito de ver personagens, sobretudo personagens femininas, que não sejam estereotipicamente fortes no sentido convencional como fracas. Há muitas maneiras de alguém ser “forte” sem que seja empunhando uma espada, mas nós normalmente vemos características como a bondade e como a compaixão como sendo atributos fracos e passivos, o que não é verdade, e o filme nos prova isso. Há inclusive tentativas de se reverter isso, dando à personagens força física e literal, mas esquecendo de construir seu personagem com mais cuidado, de lhe dar conflitos e camadas, e no final essas personagens acabam sendo um personagem tão vazio e um estereótipo tanto quanto a típica princesa passiva que precisa de salvamento. É até uma maneira bem preguiçosa de se escrever um personagem, como se apenas colocar uma arma na mão de uma mulher automaticamente transforme-a em uma figura interessante e complexa.

Então, tudo isso para dizer que, não, A Bela e a Fera não é uma história que romantize a síndrome de Estocolmo, ou ao menos não a versão da Disney. Se qualquer coisa, este filme desconstrói o conto original, ao sair dos moldes típicos dos contos de fadas com o seu romance mistificado e idealizado, que se põem como a resposta para todas as coisas, e pinta a relação dos protagonistas com maior complexidade, com eles tendo tempo para se conhecer, e aprendendo a se respeitar e a desenvolver uma conexão humana verdadeira, pautada no respeito mútuo pelas figuras um do outro, ao invés de simplesmente se apaixonarem a primeira vista e ficarem juntos imediatamente depois disso. Eu achei que isso fosse óbvio para qualquer um, até porque filmes infantis da Disney não costumam ser dos mais sutis de todos, mas, aparentemente, se uma subversão de gênero não se pintar como Shrek e se vender como uma autoparódia sentindo a necessidade de fazer graça das convenções de cinco em cinco minutos com piadas de quebra de quarta parede, e piscando para o público, as pessoas não conseguem interpretar — ou isso ou então vale qualquer tipo de desonestidade para conseguir as curtidas no textão lacrador no Facebook (sim, eu tenho problemas com a minha geração. Não, eu não quero falar sobre isso).

No entanto, isso não quer dizer que o filme não possua falhas, ou que não existam críticas válidas a serem feitas ao mesmo, sobretudo no que tange a personagem de Bela. Sim, ela foi um grande passo da figura da Ariel, uma personagem um tanto sem agência e cujo único papel era desejar que seu príncipe se apaixonasse por ela, que por sua vez já havia sido um grande passo das princesas clássicas do estúdio, que eram ainda mais passivas e vazias de personalidade, mas a Disney ainda tinha um longo caminho a seguir no que tange a construção de suas princesas e personagens femininas. O problema com Bela, apesar de ela ser uma figura muito mais proativa e ter uma personalidade marcante e definida, é que, assim como em A Pequena Sereia, A Bela e a Fera também faz uma curva no meio do seu caminho e acaba tirando muito do peso e do propósito da personagem. Porque, no fim das contas, a história deste filme não é de Bela, e sim de Fera. A narrativa é toda pautada em seu conflito interno: é ele quem tem que aprender a se tornar alguém melhor, é ele quem tem que deixar de ser um monstro e se tornar um homem, é ele quem muda e é ele quem aprende uma lição no decorrer da narrativa. Bela acaba sendo apenas sua auxiliar neste processo todo. Isto não seria tanto um problema se o filme não se abrisse dando a entender que ele daria no mínimo tanto espaço para Bela em sua narrativa quanto para Fera. O filme se abre com Bela cantando sobre seus desejos de querer mais da vida, de sair da cidade do interior em que vivia e ir atrás de uma grande aventura, mas, no fim, este elemento é abandonado, seu conflito interno é deixado de lado para dar espaço para Fera, e o arco da garota se conclui com ela se casando e sendo feliz para sempre, como se apenas isto fosse o suficiente para saciar a sede de aventura que a mesma possuía no começo da história. O arco e papel narrativo de Bela é sacrificado para dar enfoque à Fera, e isso é uma crítica muito mais válida e importante de ser feita ao filme do que se ele romantiza ou não a síndrome de Estocolmo (mas claro que para perceber essa dissonância narrativa, as pessoas teriam que realmente prestar atenção no filme e não o ir assisti-lo preparados para fazer uma crítica de má fé ao mesmo que seria desconstruída logo em seus primeiros minutos de duração).

Acredito que este rombo na construção e na jornada de Bela provenham das mudanças de roteiro, que nunca foram reparadas. Como citado, A Bela e a Fera começou completamente diferente do que acabou se tornando, nas mãos de Richard Purdum, que mantinha o filme muito mais fiel ao conto original, até que Howard Ashman e Alan Menken foram chamados para musicalizar o projeto, que não estava funcionando nas mãos de Purdum, e a narrativa acabou mudando também. A história original é toda pautada no personagem de Bela, com ela tendo que crescer ao longo da narrativa, tendo que aprender a amar Fera apesar de sua aparência — Fera não muda, ele já era uma pessoa boa e altruísta, e era Bela quem tinha que aprender a ver isso; tanto é que o conto quase não dá atenção para a maldição de Fera e o que o levou a se tornar um monstro, algo que é um dos elementos principais da história da Disney — porque os pormenores de sua aparência não importam, o que importa é que Bela consiga vê-lo para além da mesma. Ao invés de Fera tendo que superar sua maldição, é Bela que tem que amá-lo por quem ele é por dentro. Mas os caminhos que a história original toma, neste sentido, também são muito mais questionáveis. Esta sim é uma história que acaba romantizando relacionamentos abusivos, até porque, sua função era assegurar mulheres presas à um casamento arranjado de que elas deveriam cumprir com seus deveres, e de que, no final, tudo daria certo e elas seriam felizes em sua nova vida casadas com um desconhecido. Assim, no original, Bela é passada a nós como alguém egoísta e superficial, em um primeiro momento, por se recusar a amar Fera, quando, na realidade (e isto é algo para o qual o filme da Disney chama a atenção) Fera não fez nada que o fizesse digno de amor; ele ameaçou matar seu pai, e depois a manteve prisioneira, longe de sua família e de tudo o que ela conhecia. Mas, ao contrário do filme, a história nunca questiona ou para para analisar o personagem, e nós devemos crer que, apesar de tudo isso, ele é uma pessoa boa, e que Bela é a errada da situação. O máximo que Fera faz para agradar Bela é cercá-la de bens materiais, ao invés de tentar mudar e amadurecer, e fazer esforço para de fato tentar conhecer e se aproximar de Bela, e a história nos passa-o como um mártir toda fez que a menina rejeita seu pedido de casamento.

Eu não estou tentando problematizar o conto original, querendo mais contextualizá-lo em seu período de origem e entender o que levou a ser desta forma. A Bela e a Fera, de Beaumont, é um produto de seu tempo, escrito em um momento onde casamentos arranjados eram uma realidade, e visando dialogar com as mulheres presas a algo deste tipo, e auxiliá-las durante este processo. No entanto, em 1991, A Bela e a Fera já era uma narrativa um tanto quanto antiquada, com casamentos arranjados, ao menos no ocidente, já tendo deixado de ser uma realidade há muito tempo, então não era nada menos do que da obrigação da Disney e de seus animadores de remodelarem esta história arcaica, para que ela dialogasse mais com os nossos tempos, se livrando de suas morais e valores um tanto quanto conservadores. O estúdio conseguiu fazer isso, mas acabou sacrificando parte do personagem de Bela no processo. O filme de Jean Cocteau, por outro lado, consegue conciliar estas duas facetas da história: o foco narrativo ainda é em Bela, e em sua jornada para descobrir que o que importa é a beleza interior e não a exterior, mas a obra ainda consegue dar mais atenção à figura de Fera, o pintando como alguém torturado por sua dualidade, entre um homem e um monstro, e não sabendo como balancear as duas identidades dentro de si. Ainda assim, nem esta versão está vazia de problemas, com o filme caindo no mesmo buraco que a obra original, e acabando por defender o relacionamento abusivo que Fera e Bela possuíam, não procurando mudar isto, como a obra da Disney faz.

É uma pena que a personagem de Bela tenha se fechado no filme de 1991 como uma versão mais fraca de si mesma do que como começa a obra, mas eu argumentaria que esta mudança, de colocar o foco em Fera, também trouxe melhorias para a história. Não só isso rebuscou mais a narrativa, a deixando menos simplista, ao aprofundar mais os personagens e fazê-los tendo que batalhar e fazer por merecer o amor um do outro, diferentemente de boa parte dos contos de fadas, onde o amor simplesmente cai do céu como uma recompensa, mas até em aspectos menores do filme isto teve seu impacto. Um exemplo disso são os personagens secundários, os objetos encantados. O conto original deixava subentendido que havia magia no castelo de Fera, mas não colocava o enfoque neste aspecto como a Disney fez. Jean Cocteau, em seu filme, foi quem começou a brincar com este conceito, colocando objetos inanimados ganhando vida no castelo de Fera, mas ainda em sua versão estes objetos eram bastante impessoais, não possuindo rostos, e sendo sobretudo braços que surgiam segurando os candelabros ou servindo os personagens na hora do jantar, ou então estátuas que se moviam. Mas, no fim, tanto no conto original, quanto na versão de Jean Cocteau, a magia e os objetos da história serviam mais para acentuar o quão virtuoso Fera era, e ambas as versões chamavam atenção para os objetos preciosos que o personagem possuía, e dava para Bela, para pintá-lo como alguém altruísta e generoso. A versão da Disney, mais uma vez, desconstrói isso, se utilizando de seus objetos encantados para atentar ao fato de que Fera via todos em sua volta como objetos ao seu dispor, e que não fazia o esforço para construir de fato uma conexão humana com alguém — o que passa a mudar quando ele conhece e se apaixona por Bela.

Além disso, esses personagens também são extremamente carismáticos, se inspirando nos secundários de A Pequena Sereia para aderir leveza à narrativa, e quebrar a tensão da história principal com seus momentos cômicos, fazendo desses personagens lotados de personalidade. Sem falar que eu adoro o fato de os animadores terem se atentado à natureza desses objetos ao construir suas personalidades — Lumière é um candelabro, o que significa que ele é cheio de luz e vida, sendo um boêmio e um bon-vivant que valoriza pela diversão, Horloge, sendo um relógio, cuja função é informar a hora para que as pessoas se organizem e se planejem, além de ser necessário meticulosas engrenagens para seu funcionamento, é alguém extremamente metódico e disciplinado, que não quer que nada saia de seu controle ou do que fora planejado, e Madame Samovar, uma chaleira, é calorosa e carinhosa, agindo como uma mãe para Bela, e sempre querendo auxiliar e ajudar as pessoas ao seu redor. Além disso, esses personagens também podem ser lidos como partes da própria Fera com as quais ele precisa se reconectar para voltar a ser humano; Lumière representa o carisma, Horloge representa a disciplina e Madame Samovar representa o carinho pelo próximo. Ao longo da história, os três personagens dão conselhos amorosos à Fera sobre como agir ao redor de sua amada, e, a partir do momento em que ele passa a dar ouvidos à eles, ele vai gradualmente se transformando em humano novamente, e deixando sua monstruosidade de lado, quase que como essas figuras representassem parte da consciência do personagem, e traços de personalidade imprescindíveis, que a Fera tem que aprender a exercer para crescer.

No entanto, a maior motivação para esta mudança narrativa de A Bela e a Fera veio de Howard Ashman. Foi ele que, ao ser chamado por Katzenberg para reerguer A Bela e a Fera após o fracasso da versão de Richard Purdum, além de transformar a história em um musical, decidiu dar mais atenção à Fera, querendo iniciar a história justamente com um prólogo que informasse ao público sobre como a Fera se transformou em uma fera, e os pormenores de sua maldição. Isso se deu por Ashman se ver muito naquele personagem, porque ele também se sentia como alguém visto como um mostro pelo resto do mundo, alguém incompreendido, que as pessoas temiam, e queriam se livrar. Veja, Ashman era gay, e ele inclusive temeu aceitar trabalhar na Disney inicialmente, por acreditar que uma companhia um tanto quanto conservadora quanto aquela o julgaria e o discriminaria, mas, mais do que isso, ele tinha AIDS, em um período onde a doença estava matando milhares de jovens, e o governo americano em específico fazia muito pouco para ajudar os doentes, que eram totalmente estigmatizados como sendo sujos e promíscuos, e até mesmo como estando sendo castigados divinamente por seu estilo de vida. Muitos atribuíram o fato de a Fera ser elevada a o grande protagonista da história ao fato de Ashman se ver nele, e poder expressar sua própria relação com a doença que possuía, e com o mundo que o julgava por possuí-la, através do personagem. Disse Bill Condon, diretor do remake de A Bela e a Fera de 2017, em uma entrevista:

“Foi ideia dele, não apenas transformar a história em um musical, mas também fazer de Fera um dos personagens centrais. Até aí, era principalmente a história de Bela que estava sendo contada. Especificamente para ele, era uma metáfora para a AIDS. Ele estava amaldiçoado, e essa maldição havia trazido tristeza para todos aqueles que o amavam, e talvez um milagre pudesse ocorrer — e a maldição pudesse ser desfeita. Era algo muito concreto o que ele estava fazendo.”

Mas mais do que o foco em Fera, o filme também coloca muito em pauta a maneira com que a sociedade lida com o que é diferente, e com o que ela não entende. Desta maneira, o filme até se mantém fiel à interpretação da folclorista Maria Tatar, que disse que essas histórias como A Bela e a Fera são tão populares por povos do mundo todo e se mantém até os dias de hoje por trazerem leituras sobre como nós, como uma sociedade, lidamos com “o outro”. A versão de Ashman, no caso, não lidava muito bem com o outro, e não apenas no que tangia Fera. O número de abertura mostra claramente como Bela é julgada pela sua aldeia, por não agir como a mesma espera que ela aja, sendo curiosa e gostando de ler, o que faz com que os outros a tratem como uma aberração. O mesmo pode ser dito de seu pai, Maurice, um inventor, mas que muitos encaravam como alguém louco, e digno de chacota. Parte do porquê de Bela não sair julgando o exterior de Fera imediatamente ao conhecê-lo se dá porque ela também estava acostumada a ser julgada por desviar dos padrões impostos pela sociedade. Mas a aldeia de Bela, que é inteiramente pautada em discriminar o que é diferente e celebrar apenas o que se adéqua às normas sociais, não vê a Fera com os mesmos olhos, e imediatamente decidem ir atacá-la quando descobrem de sua existência, no final do filme. O produtor Don Hahn, em uma entrevista, apontou como a música Canção da Multidão deixa bem claro a visão de Howard Ashman para com a sociedade em geral, e isso fica óbvio para qualquer um ao descobrirmos sobre as dores que afligiam Ashman enquanto ele fazia A Bela e a Fera. Nos atentemos a esse trecho da música;

Não gostamos daquilo / Que nunca entendemos/Esse monstro pode até nos devorar! / Tragam facas e lanças / Para salvar suas crianças! / Liquidemos essa fera! / Vamos matar!

Esse trecho deixa muito claro os paralelos entre a forma com a qual a aldeia trata a Fera e como Ashman se sentia tratado pela sociedade no geral. E ele não estava errado: milhares de pessoas morreram de causas relacionadas a AIDS durante os anos oitenta, só nos Estados Unidos, porque o governo falhou em combater a epidemia quando ela começou, deixando que ela se arrastasse por anos a fio, e grande parte isso foi motivado por as maiores vítimas da doença estarem às margens da pirâmide social; homossexuais que viviam em centros urbanos, o que deu oportunidade às pessoas de, ao invés de auxiliarem esses grupos, moralizarem a doença e a tratarem como um castigo divino e uma punição merecida por essas pessoas se desviarem das normas sociais. É como Ashman disse em sua música: “nós não gostamos daquilo que nunca entendemos”, e era exatamente assim que ele, e diversos homossexuais estavam sendo tratados naquela época. O filme deixa bem claro que o preconceito e a intolerância não são sentimentos lógicos ou racionais, eles são ilógicos, motivados pelo ódio e pelo completo medo e desprezo daquilo que é diferente. Fera é punida por desviar da norma, assim como Bela e Maurice, enquanto que as pessoas dentro dos padrões e que asseguravam às expectativas das massas, eram celebradas. Isso nos leva à Gaston.

Gaston é um personagem que não estava no conto original. Ele, como tantos outros elementos que a Disney adicionou em sua versão, veio de Jean Cocteau. Cocteau foi quem teve a ideia de contrapor a monstruosidade externa e a beleza interna da Fera com alguém externamente belo, mas internamente monstruoso. No caso, o personagem de Cocteau se chamava Avenant, e para cimentar ainda mais o ponto do diretor, ambos os personagens eram interpretados pelo mesmo ator. A Disney, por algum motivo, não usou o mesmo dublador para ambos os personagens — mas a versão brasileira usou, mostrando como a nossa indústria da dublagem é extremamente subestimada. Mas, enfim, Gaston é diferente de outros vilões da Disney no sentido de que ele não é uma bruxa malvada e poderosa, como Úrsula foi antes dele, e sim um homem comum. No começo do filme ele nem é propriamente malvado, sendo apenas bruto e grosseiro, mas pintado com um viés cômico. Mas este é o seu propósito; mostrar como a vilania e a monstruosidade se encontram até mesmo em pessoas comuns. E Gaston é o maior símbolo de comum possível, porque ele simboliza todos os padrões sociais que os homens são esperados a seguir, e é por isso que ele é tão amado; como dito, ele corresponde às expectativas da sociedade; ele é bruto, grosseiro, misógino, e fisicamente forte. Gaston não é punido por seus erros porque ele corresponde aos padrões e expectativas sociais, então ele é celebrado pela população da aldeia. Enquanto isso, Bela, Fera e Maurice, pessoas genuinamente boas, são punidos por desviarem das normas. A Bela e a Fera nos diz que a sociedade celebra e recompensa os opressores, ao passo em que julga as vítimas, porque elas não se adequam à sociedade, então não merecem ter um espaço na mesma. A música Gaston é um excelente retrato disso, com Gaston cantando sobre todos os seus feitos e se gabando de seus talentos, mais voltados aos seus feitos físicos e sua força do que à sua índole. Essa cena é extremamente engraçada e divertida, mas ela é marcante porque, diferentemente de outras músicas de vilões da Disney, que cantam sobre seus planos malvados, e muitas vezes são párias sociais (basta lembrarmo-nos de Úrsula), Gaston é celebrado aqui, com todos da aldeia cantando com ele e o elevando ao status de herói, ou de um deus, mostrando que para a aldeia pouco importava a índole das pessoas e seus valores, e que essas pessoas eram inteiramente superficiais, julgando as pessoas por sua aparência e por como eles se adequam aos padrões impostos. A Bela e a Fera, sem sombra de dúvidas motivado pela maneira com que Howard Ashman enxergava a sociedade, tem uma visão muito cínica sobre as massas (um exemplo é LeFou, o ajudante idiota de Gaston que faz tudo o que ele mandar, cujo nome, em francês, se traduz para “o tolo”, simbolizando perfeitamente o que toda a aldeia era, um conjunto de tolos que não conseguiam ver um palmo na frente de seus respectivos narizes).

Isso faz de Gaston um personagem muito mais interessante, porque acaba sendo bem mais realista do que os típicos vilões da Disney, mesmo com seus momentos cartunescos e exagerados. No início do filme, Gaston é só alguém bruto e grosseiro, um personagem cômico, mas a medida que o filme avança, ele vai se transformando cada vez mais em um vilão, motivado pela rejeição de Bela, a primeira pessoa que não caiu por seus charmes, e lhe disse não — isso faz com que ele enlouqueça, e se transforme em um monstro. Enquanto que Fera se apaixona genuinamente por Bela, e decide mudar por ela, se transformando de um monstro para um homem, internamente, aprendendo a valorizá-la não como um objeto, mas como pessoa, e decidindo fazer um esforço para se conectar genuinamente com ela, Gaston a vê como um troféu. Seu interesse por Bela se manifesta porque ela é a única pessoa da aldeia que não cai por seus charmes, e que não cede às suas vontades. É só quando ele não ganha o que quer — Bela — que ele se transforma, e vai mostrando sua face mais terrível ao longo que o filme avança, até se transformar em um monstro no final. Assim, ele é o perfeito paralelo para a Fera; enquanto o protagonista é um homem preso em um corpo de um monstro, Gaston é um monstro que se esconde dentro de um homem. Mais do que isso, Gaston é a pessoa que Fera se transformaria se não fosse pela maldição e, mais tarde, pela influência de Bela. Assim como Fera, Gaston possui uma gangue de bajuladores que o acompanha para onde quer que passa, e nunca precisou ouvir um não na vida, porque a sociedade sempre se guiou a sua vontade. Mas, enquanto Fera aprende a mudar e se transforma em alguém melhor ao aprender a valorizar Bela, Gaston a vê como uma recompensa a ser conquistada, e nunca para e analisa seu próprio comportamento, sendo essa sua própria ruína no final das contas. A batalha final entre Fera e Gaston pode ser lida como Fera batalhando contra sua própria monstruosidade, contra sua vaidade e seu egoísmo. Mas enquanto que Fera demonstra compaixão para com Gaston, depois de já ter vencido a luta entre eles, e poupa sua vida, Gaston não se dá por vencido e vai por trás de Fera, lhe dando um golpe fatal, mas ao mesmo tempo perdendo o seu equilíbrio e caindo para sua morte — no fim, foi seu orgulho que foi sua ruína.

O animador Glen Keane também deu atenção especial para esta dualidade entre Gaston e Fera. Como citado, os olhos de Fera, assim como os de Gaston, são azuis — isso é o seu único elemento humano, que se destaca em relação ao resto de seu corpo, totalmente animal e monstruoso. Isso é porque o filme usa do azul para simbolizar a humanidade e a bondade, e o vermelho para simbolizar a monstruosidade e a maldade. Bela é totalmente pintada com tons de azul — na cena inicial, ela está usando seu vestido azul, que se destaca em relação aos tons quentes de laranja e vermelho do resto da aldeia, assim ela é a simbolização do bem em um mundo fútil e mesquinho. Já Gaston, é inteiramente pintado de vermelho, o que, junto com seus trejeitos brutos e grosseiros, sem nenhuma consideração por qualquer outra pessoa além de si mesmo, o mostra como um verdadeiro monstro. Já Fera transcende por entre as duas cores ao longo do filme — inicialmente, assim como ele se movimenta como um ser animalesco e bruto, o personagem utiliza uma capa vermelha, mostrando a sua faceta mais monstruosa. Mas a partir do momento em que ele se apaixona por Bela, e ela o motiva a entrar em contato com seu lado humano e se tornar uma pessoa melhor, o mesmo vai sendo pintado com tons de azul — na cena mais famosa do filme inteiro, a valsa entre o casal principal, ele está vestido com um casaco azul, simbolizando sua transformação em um homem novamente.

Olhos de Fera: seu único atributo humano
Dualidade entre o azul e vermelho: Bela, que representa o bem, de azul, e Gaston o mal, de vermelho
Fera avança neste espectro: no começo do filme, quando age como um monstro, usa sua capa vermelha, à medida que a história avança e o personagem se reconecta com sua humanidade, troca para o azul.

Felizmente, Fera consegue seu final feliz. Após tantos anos sendo julgado e deixado de lado pela sociedade, o personagem acabou se reservando a aceitar sua monstruosidade, e foi se desconectando cada vez mais de seu lado humano. É Bela que o motiva a fazer o esforço para se tornar um homem novamente, para deixar sua monstruosidade de lado, e se tornar internamente belo — seu amor por ela o transforma de uma fera para um homem. Na cena onde Gaston e a aldeia invadem seu castelo, inicialmente, Fera não reage, ele não está irritado ou furioso — ele está triste e cansado. O personagem à essa altura não tinha mais nada pelo o qual lutar, aceitando que sempre seria visto como um monstro, incapaz de amar a si mesmo. É quando Bela retorna para ele que o personagem arranja força interior para derrotar Gaston; mais uma vez, o amor que ele sente por Bela desperta seu lado humano, e o faz lutar para ser a melhor versão de si mesmo, ao invés de deixar que sua maldição tome conta de sua vida. E os dois terminam juntos no final, felizes para sempre.

Mas Howard Ashman não teve o mesmo final feliz. O letrista já sabia que estava com AIDS desde a produção de A Pequena Sereia, mas foi só após o filme já ter se completado, e ele e Menken terem ganhado dois óscares por seu trabalho naquela obra, que o mesmo contou ao seu colega sobre seu estado de saúde. Quando ambos foram acionados por Katzenberg para migrarem para A Bela e a Fera, Ashman teve que contar para os executivos da companhia sobre o seu estado de saúde deteriorado, e a Disney se comprometeu em ajudá-lo com o que precisasse durante a produção do filme. Assim, os animadores e toda a equipe de A Bela e a Fera se dividiu entre Los Angeles e Nova York, com boa parte dos animadores morando em uma pousada no interior do estado enquanto trabalhavam no filme, perto da casa de Ashman, devido ao seu estado debilitado, com o mesmo tendo que trabalhar de casa, e os animadores indo até ele para mostrar o seu progresso — poucas pessoas até então sabiam do que estava acontecendo com o letrista, então ninguém entendia ao certo porque essa organização se deu. Com o tempo, Ashman foi ficando ainda pior de saúde, sendo internado em um hospital, e, ainda lá, continuando trabalhando em A Bela e a Fera. Nos últimos dias de sua vida, Howard pesava apenas trinta e seis quilos, tinha perdido a visão e já quase não conseguia mais falar. Na última visita que os animadores fizeram à Howard, logo após a apresentação para a imprensa de A Bela e a Fera ter sido um enorme sucesso, sua mãe puxou os lençóis para mostrar o suéter de A Bela e a Fera que ele usava. Howard Ashman morreu dia 14 de março de 1991, com quarenta anos, oito meses antes de A Bela e a Fera estrear no cinema. Nos créditos finais da obra, há uma dedicatória para Ashman, que diz: “Para nosso amigo, Howard, que deu a uma sereia sua voz e a uma fera sua alma”.

E esta dedicatória não era nenhuma hipérbole, Howard Ashman foi imprescindível tanto para A Pequena Sereia, quanto para A Bela e a Fera. A Renascença da Disney sem sobra de dúvidas não teria acontecido se não fosse por seu envolvimento. Ele era mais do que apenas um letrista, ele funcionou como um diretor de todos os filmes com que se envolveu. Foi ele quem trouxe a ideia de remodelar os filmes da Disney como um musical da Broadway, e este conceito é parte fundamental de todas as obras da Renascença. Com A Bela e a Fera ele foi além, salvando o filme do estado calamitoso em que a obra se encontrava, e lhe transformando no que ela é hoje. Foi Ashman quem decidiu que esta versão de A Bela e a Fera seria toda pautada no personagem da Fera, e se abriria com um prólogo que narrasse sua maldição, afinal, e este é quiçá o ponto mais importante do filme todo, pois é com este foco no conflito interno de Fera que o filme se diferencia de todas as outras versões, dando mais nuances ao personagem e ao relacionamento do mesmo com Bela, com o mesmo não sendo mais algo idealizado, mas sendo uma relação tangível, com ambos tendo tempo para se conhecer, e desenvolvendo uma conexão verdadeira, algo que ainda não tínhamos visto por parte do estúdio. E Ashman continuou atuando como uma espécie de diretor para a obra — foi a ele e a Menken que Katzenberg recorreu, antes mesmo de sequer trazerem diretores novos, para que a dupla remodelasse a história como um musical, e a partir do que eles criassem, a equipe de animadores desenvolveria. A maior prova disso é que os diretores do filme, Gary Trousdale e Kirk Wise, só chegou muito depois, após a história já estar quase que inteiramente encaminhada, e a Disney nem sabia se eles seriam os diretores oficiais, sendo considerados “diretores atuantes”, ou seja, eles atuariam como diretores até o estúdio saber o que fazer com o cargo — se mostrando tão competentes que foram mantidos. Mas o verdadeiro homem comandando a parte criativa do filme foi Ashman, e isso era algo que ele fazia com todos os projetos em que se envolvia. Ele não se dava por satisfeito apenas compondo as músicas para esses filmes separadamente, ele precisava estar intrinsecamente envolvido nos projetos, e foi exatamente isso que ele fez tanto com A Pequena Sereia, quanto com A Bela e a Fera, e foi a sua visão e sua criatividade que deslancharam a Renascença. Se não fosse por Ashman, sem sombra de dúvidas, o estúdio Disney que conhecemos hoje seria totalmente diferente. Roy E. Disney e Jeffrey Katzenberg chegaram a o comparar a Walt Disney, devido a sua paixão e sua garra por todos os projetos que tocava, sendo Ashman a pessoa que, por mais que não fosse o diretor oficial dessas obras, com sua paixão contagiante, conseguia unir todos os diferentes artistas e motivá-los a trabalhar em prol de um objetivo único: contar uma bela história.

Segundo Don Hahn, na última vez que visitou Ashman no hospital, o mesmo perguntou; “O filme será um grande sucesso. Quem teria previsto isso?” Para o que Ashman respondeu; “eu teria”.

E Ashman estava certo. A Bela e a Fera foi exibido no festival de cinema de Nova York, em uma versão incompleta, com a animação ainda no estado de esboço — um movimento arriscado, tendo em vista que o festival era dominado pela cena cult, com os grandes artistas e grandes entendedores de cinema, e dificilmente um desenho da Disney arranjaria popularidade e aclamação com este público. Mas, surpreendentemente, foi exatamente isto que aconteceu. A Bela e a Fera foi ovacionado no festival, e quando finalmente foi distribuído para os cinemas, encontrou aclamação que a Disney não encontrava quiçá desde Branca de Neve e os Sete Anões. O filme simplesmente consolidou o retorno a forma da Disney, retorno este que havia sido ensaiado com A Pequena Sereia, mas que só aqui mostrava sinais de que, sim, talvez o estúdio realmente tivesse voltado para ficar, recriando a magia perdida dos antigos clássicos, e ascendendo o interesse do público na Disney novamente, interesse este de quando estes filmes não eram vistos apenas como entretenimento barato e infantil, e sim filmes que pudesse dialogar com todos os públicos.

Mais tarde, A Bela e a Fera quebrou paradigmas, quando ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme de Comédia e Musical, e foi indicado à Melhor Filme no Oscar, sendo a primeira animação da história a conseguir tal feito, algo que simplesmente não existia naquela época (e isso quando a Academia só indicava cinco filmes por ano). Até hoje esta conquista nunca foi rivalizada, e foi sem sombra de dúvidas a cereja no bolo do retorno da Disney para a sua glória de outrora. Demorariam dez anos até que o Oscar abrisse uma categoria especifica para animações, e isto sem sobra de dúvidas pode ser rastreado até o impacto de A Bela e a Fera, sendo este filme que não só abriu os olhos da Academia para a existência das animações, que antes eram relegadas às sobras da indústria cinematográfica, mas por o sucesso não só deste filme, mas da Disney por toda a década de noventa ter chamado a atenção para a indústria animada novamente, que há anos se encontrava às moscas, com muitos outros estúdios passando a querer beber da fonte da Disney — e é por isso que hoje Hollywood é lotada de estúdios animados, como a Pixar, a Dreamworks, a LAIKA, entre outros, sendo que, naquela época, o único estúdio que regularmente lançava animações cinematográficas era a Disney. Precisou de um feito como A Bela e a Fera para que as animações fossem vistas não como perda de tempo, mas sim como uma forma de arte legítima, na qual se valeria a pena investir. No fim, A Bela e a Fera não ganhou o Oscar principal, mas Menken e Ashman repetiram seu feito em A Pequena Sereia, ganhando os óscares de Melhor Trilha Sonora, e de Melhor Canção Original, para a música título, A Bela e a Fera, com outras duas do mesmo filme concorrendo, sendo o primeiro a conseguir tal feito.

A Bela e a Fera é simplesmente o Magnum opus de toda a Renascença da Disney, e isso é indiscutível, mesmo que o filme não seja particularmente o meu favorito da era — ele simboliza todo o esforço e todas as mudanças que ocorreram dentro do estúdio até chegar a esse ponto, e recompensa essa mudança no rumo da companhia com uma belíssima obra de arte. O envolvimento de Ashman e Menken, a mudança arquitetada dentro da Disney por Katzenberg e Eisner, o sucesso anterior de A Pequena Sereia e o trunfo visual e técnico de Bernardo e Bianca na Terra dos Cangurus, tudo culminou em A Bela e a Fera, solidificando o filme como um marco que nenhum outro filme do estúdio a segui-lo, por mais incríveis que sejam, conseguiu se equiparar. E, com A Bela e a Fera, o esforço dos animadores que trabalharam e deram seu sangue não só para este projeto, mas por todos os outros que o precederam, foram finalmente recompensados, quando Michael Eisner, na apresentação de estreia do filme, anunciou que um novo estúdio de animação estava sendo inaugurado para este corpo de trabalhadores, anos depois de os mesmos terem sido enxotados do prédio do departamento animado original e colocados para trabalhar em um lote à quilômetros de distância, em armazéns e trailers precariamente amontoados juntos — aquele havia sido o símbolo da derrocada da Disney, com os animadores tendo que se provar e provar que a animação ainda era uma forma de cinema válida, se quisessem manter seus empregos. Com A Bela e a Fera, eles finalmente haviam atingido este propósito, tendo sido vingados e validados, e retornando para o pódio que ocupavam anteriormente. Mas nem todos estavam felizes com isso: Jeffrey Katzenberg não havia sido informado que Eisner pretendia inaugurar um novo prédio para o departamento animado, e viu aquilo como uma traição, e uma puxada de tapete por parte de quem, até então, considerava um amigo. Este momento marcaria um novo período para a Disney, um período marcado por lutas de ego por parte dos executivos, e que, eventualmente, trariam uma nova derrocada para o estúdio.

Mas mais do que brigas internas, acredito que o fato de Howard Ashman ter trabalhado com tanto afinco em A Bela e a Fera mesmo estando em seu leito de morte é um sintoma perfeito de o que fez o filme tão especial: um corpo de artistas inteiramente devotos e em prol de um projeto. Ashman, Menken, Trousdale, Wise, Glen Keane, e diversos outros dando seu sangue para realizar aquele filme, inteiramente motivado pela dedicação e pela confiança dessas pessoas na história que estavam contando. Isto é algo que não acontece todos os dias, e A Bela e a Fera é uma ocasião rara — não é atoa que até hoje apenas duas outras animações conseguiram repetir seu feito ao serem indicadas para Melhor Filme no Oscar. E também é notável que diversos outros filmes que o sucederam tentaram recriar seu feito, mas não inteiramente compreendendo o que o fez tão especial. Este é o que passa a ser o erro da Disney com o tempo — ao invés de seus filmes serem obras espontâneas e genuínas, feitas através da paixão e da convicção das pessoas envolvidas nas mesmas em seu poder de encantar e dialogar com o público, eles passam a seguir uma fórmula, tentando milimetricamente recriar os elementos de A Bela e a Fera em si, mas não conseguindo aderir a magia e o coração que juntaram todos esses elementos juntos em prol de uma história marcante e envolvente, quase que como riscando os itens de uma lista de compras. Um grande exemplo disso é o remake de A Bela e a Fera, de 2017, que muitos críticos viram como uma tentativa de capitalizar em cima da nostalgia e do carinho do público para com a obra original, ao mesmo tempo sem que os responsáveis pelo filme entendessem que o que fez A Bela e a Fera especial em primeiro lugar não foi uma coleção de momentos e personagens específicos, e sim a dose de sentimentos e de substâncias guiando esses personagens e momentos, para que, juntos, eles se transformassem em algo especial — terminando como uma cópia idêntica do filme de 1991, mas vazio de qualquer tipo de substância.

Mas, por enquanto, a Disney ainda estava no topo do mundo, com um de seus maiores sucessos, e o que muitos veem como uma das melhores animações de todos os tempos. Para mim, a cena que perfeitamente define o que faz de A Bela e a Fera tão especial é a cena da valsa: enquanto a Bela e a Fera dançam belissimamente por entre o salão, e a música que possui o título da obra acompanha seus movimentos — um perfeito casamento de personagem, animação e música, que se conectam juntos perfeitamente para realizar um dos momentos mais lindos e tocantes da história do cinema. Essa cena só foi possível graças aos avanços tecnológicos, com o CGI sendo usado para dar profundidade ao salão, enquanto a câmera acompanha os personagens dançando por entre o ambiente — Walt Disney sempre quis fazer tal cena, tentando tanto em Cinderela quanto em A Bela Adormecida, mas graças às limitações tecnológicas de seu período, esse momento sempre ficava estático, faltando o detalhamento e a profundidade dos cenários que apenas o CGI pôde aderir aqui. Esta é a definição perfeita para a Renascença: o casamento do clássico com o novo, que juntos se transformam em algo transcendental. Verdadeiramente uma das joias de toda a filmografia dos oitenta anos da Disney, que ainda me dá arrepios, não importa quantas vezes eu a revisite.

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