Atlantis: O Reino Perdido (2001)

Miguel Serpa
25 min readDec 5, 2018

--

De todas as grandes mudanças que impactaram a indústria da animação na virada dos séculos, uma das mais chamativas e curiosas é a crescente, ainda que limitada, onda de filmes animados de ficção científica que começaram a pipocar no final dos anos noventa e começo dos anos 2000, saindo do campo lúdico e adocicado que ditava os grandes musicais da Disney, populares na época, e apostando em um maior nível de ação e aventura em suas histórias, inspirados pelo crescente potencial tecnológico que agora tais filmes poderiam alcançar com o surgimento do CGI e do auxílio cada vez maior de computadores para a técnica, que inspiraram a indústria e os animadores a irem além, e experimentarem com materiais mais ousados e grandiosos, mais similares a grandes blockbusters de ação, que agora estavam ao seu alcance com a nova tecnologia, filmes como O Gigante de Ferro, de Brad Bird, e Titan A.E., de Don Bluth. Essa maior curiosidade da animação hollywoodiana como um todo de testar seus limites caiu como uma luva para a Disney, o mesmo estúdio que lançou o modelo do qual agora a indústria queria se libertar, estando a própria também se sentindo engessada pelos seus musicais, que já não faziam mais tanto sucesso, e procurando novas maneiras de reinventar, e de se manter relevante no novo século, com a sombra da animação computadorizada crescendo cada vez mais sobre o império midiático de Mickey Mouse, e o mesmo não sabendo como dialogar mais com o público, cujos interesses se distanciavam cada vez mais de suas doces e sorridentes animações em 2-D. A resposta para esta crise de identidade que afligia a companhia, portanto, não podia ser outra do que seguir os passos de seus concorrentes e apostar no campo diametricamente oposto de seus filmes de princesas e contos de fadas da década de noventa, o da aventura épica, da ação e da ficção científica. Assim, o filme que abria o novo milênio para a companhia, em 2001, e anunciava ao público o nascimento de uma nova, mais madura e ousada Disney, era nenhum menos que Atlantis: O Reino Perdido.

E a companhia não poupou esforços e gastos para fazer de Atlantis diferente de tudo que a mesma já tinha lançado antes, a mesma estava séria em fazer de Atlantis um grande épico de ação, um blockbuster megalomaníaco com tudo que se tem direito. As mentes por trás de tal obra, portanto, não podiam ser nenhumas além das de Kirk Wise e Gary Trousdale, os mesmos animadores responsáveis por dirigir A Bela e a Fera e O Corcunda de Notre Dame, dois dos filmes mais épicos e grandiosos que o estúdio já havia feito até então, sendo musicais bombásticos e com um pé no melodrama (ou com o corpo todo submerso no mesmo, no caso de Corcunda). Agora, a dupla teria que dar o mesmo tratamento que deram a suas duas últimas obras, mas trocando o campo dos musicais românticos e sacarinos pelo da ficção científica, algo que eles estavam mais do que dispostos a fazer, levando em conta que a ideia de mudar o rumo pelo qual a Disney vinha seguindo partiu, primariamente, deles. Ambos os animadores, juntamente com o produtor Don Hahn, queria sair da bolha dos musicais onde se encontravam, e tentar coisas novas com seu próximo filme, inspirados por obras de Júlio Verne, mais especificamente Vinte Mil Léguas Submarinas, e por grandes filmes de ação e aventura dos anos cinquenta. O trio acabou por decidir se inspirar na cidade perdida de Atlântida (citada pela primeira vez em um escrito do filósofo Platão, que conta sobre como esta grande potência certo dia foi engolida pelos oceanos, gerando diversos debates e estudos que visam defender ou contestar tal existência, alçando Atlântida ao status de lenda mitológica), por acreditarem que o público médio já teria conhecimento prévio sobre esta possível civilização, assim eles não teriam que perder muito tempo explicando os pormenores e a história por trás da mesma. Em seus estudos sobre a mitologia e as teorias envolvendo Atlântida, os diretores se basearam particularmente nos escritos do clarividente americano, Edgar Cayce, como a existência de um cristal que fornecia poderes de cura e longevidade aos atlântidas, que veio a se tornar um elemento chave para o filme.

Wise e Trousdale também queriam criar uma mitologia própria para a sua versão de Atlantis, fundando um mundo único para servir de pano pro filme, e essa foi a porta de entrada para que logo Atlantis se tornasse um dos filmes mais ousados e ambiciosos a já sair das mãos da Disney. “Nós queríamos evitar que Atlantis fosse apenas ruínas gregas embaixo d’água. Desde o princípio nós estávamos comprometidos com criá-la dos pés ao chão. Vamos inventar a arquitetura, as vestimentas, cultura, costumes, como eles dormiriam e como eles comeriam. Então nós chamamos pessoas que nos ajudariam a desenvolver tais ideias” disse Wise. Assim, os animadores se inspiraram em designs e estilos arquitetônicos de diversas partes do mundo, da América do Sul à Ásia, e essa grande mistura de culturas ajudou a definir a Atlantis do filme como a civilização mãe da onde partiram todas as outras civilizações do mundo, dentro da história. Wise e Trousdale foram além ao chamar o linguista Marc Okrand, famoso por desenvolver dois idiomas próprios para a série Star Trek, para criar o idioma próprio de Atlantis. Com todas essas inovações e investimento criativo por parte da produção, logo o ânimo com Atlantis contagiou toda a companhia, e o filme foi ficando cada vez mais ousado e se firmando mais e mais como algo único, e fora da bolha infantil e alegre da Disney, priorizando totalmente pelo estilo aventureiro e épico — sendo este o filme da Disney com o maior número de mortes (mesmo que a imensa maioria delas seja de figurantes), e o que mais fez uso da animação computadorizada até então. Atlantis também foi o primeiro filme desde O Caldeirão Mágico a ser distribuído em widescreen, com imagens mais largas e espaçadas, que capitalizavam em fazer com que o filme realmente parecesse mais épico do que o típico filme da Disney. Para estabelecer um estilo artístico que condissesse com esta pegada mais tensa e épica de Atlantis, a Disney chamou o quadrinistas Mike Mignola (mais famoso por ser o criador de Hellboy) para ser o designer de produção do filme, não querendo que o mesmo seguisse o estilo polido e delicado dos outros filmes do estúdio, priorizando por um estilo mais brusco, parecido com o de histórias em quadrinhos, que casassem com a estética steampunk e agitada do filme.

A letra “A” do idioma de Atlantis representa também o mapa da cidade

As esperanças para com Atlantis eram altas dentro da Disney. A produção logo se tornou uma das mais caras do estúdio, com o orçamento de 120 milhões, à medida que não iam sendo poupados esforços para transformar a obra em um grande épico, ousado e diferente de qualquer filme que o antecedera. Acreditando que o público responderia à altura para este grande blockbuster animado, os executivos da Disney planejavam fazer de Atlantis uma franquia, com planos para o desenvolvimento de uma atração nos parques temáticos baseada no filme, e uma série animada do mesmo já em processo de pré-produção. Os animadores também pareciam extremamente entusiasmados com a nova direção pela qual o filme estava indo, com a produção da obra utilizando camisas que diziam; “ATLANTIS — Menos canções, mais explosões”. E, de fato, Atlantis era uma obra promissora; não apenas o filme sairia da bolha lúdica dos musicais da Disney, como também era extremamente criativo por conta própria — quantos filmes da Disney podem dizer que inspiraram uma cultura totalmente única, com até sua própria língua?

Com todas essas promessas, portanto, não deixa de ser uma pena o fato de Atlantis pegar todo o seu potencial e jogá-lo no lixo, naufragando tal qual a sua cidade título.

No fim das contas, os problemas com Atlantis podem ser traçados de volta ao mesmo fator que se impôs como obstáculo a muitas das animações da Disney já nos anos noventa; intromissões executivas que podaram a autonomia criativa dos animadores e impediram que ela florescesse, não deixando que as grandes e ousadas ideias que ditam a obra se completassem, e o filme acabasse morrendo na praia. Mas comecemos pelo começo;

Atlantis: O Reino Perdido se passa em 1914, e conta a história de Milo, um linguista que acredita piamente na existência da cidade perdida de Atlantis, tal qual seu avô antes dele, sonhando em encontrá-la para assim realizar não apenas o seu objetivo, mas o de seu avô também. Certo dia ele é convocado por um magnata a ir até sua mansão, que revela ao protagonista estar planejando fazer uma expedição a Atlantis, com sua equipe já completa, convidando Milo para se juntar à mesma. O que se segue é Milo e o restante da equipe embarcando em uma aventura para finalmente desvendar a grande cidade perdida. Ao finalmente chegar lá, eles conhecem a princesa Kida, filha do rei de Atlantis, e também descobrem que a civilização pode estar em perigo, cabendo à Milo e seus amigos salvarem-na.

Antes de começarmos a enumerar os inúmeros erros cometidos por Atlantis, comecemos por reconhecendo alguns dos acertos da obra. O filme possui uma abertura particularmente forte, com o seu primeiro quadro sendo uma citação de Platão a respeito da cidade perdida, já estabelecendo a obra como sendo algo mais sério, diferente dos dóceis musicais da década anterior. O que se segue é a mostra de como Atlantis foi engolida pelos oceanos, uma cena envolvente e impactante, que, ainda que o público não tenha conhecimento de quem são exatamente essas pessoas e a cultura em que eles estão inseridos neste ponto do filme, consegue nos entregar todo o alto capital criativo com o qual tal filme foi concebido, mostrando a cultura e o design extremamente único deste povo para nós, em uma cena tensa e épica, que realmente entrega na pretensão do filme de ser um grande filme de ação e ficção científica. E os melhores momentos de Atlantis são realmente aqueles onde o filme consegue se vender como um grande épico de ficção científica, se mantendo firme à visão que os criadores do filme tinham para a obra. O mundo que Wise e Trousdale conceberam para seu filme é tão rico e vasto, que os momentos onde a obra consegue parar para apenas deixar que o público experiencie este universo, seja as belíssimas e únicas paisagens de Atlantis, ou a maquinaria peculiar deste povo, são bastante positivas, tal qual as cenas mais agitadas de ação, que, quando executadas da dose certa, conseguem relembrar grandes épicos do gênero, como filmes do Indiana Jones, ou até obras de fantasia de Hayao Miyazaki, mais particularmente Laputa: O Castelo no Céu. Há também alguns momentos reminiscentes de histórias em quadrinho aqui; basicamente, os momentos onde Atlantis se deixa levar e se permite apenas se divertir consigo mesmo, se mantendo fiel à visão de seus criadores de ser um grande épico da ficção científica e da aventura, permitindo que o público possa experienciar o momento com os personagens, à medida que eles desbravam este mundo novo, são bastante positivos, e eu gostaria que tivessem mais momentos do tipo ao longo do filme.

A parte visual da obra também é magnificamente deslumbrante — o que não deveria vir como uma surpresa. Apesar de boa parte da animação computadorizada utilizada no filme já estar datada, a obra mais do que compensa por isso com seus designs e paisagens extremamente únicas. Tudo o que Mike Mignola visionou para Atlantis é extremamente lindo, seja a grande influência steampunk deste universo, que mistura alta tecnologia com maquinaria e instrumentos do início do século XX, dando à Atlantis um ar mais brusco e empoeirado, seja pela imensa criatividade que ele aderiu à civilização de Atlantis propriamente dita, com sua arquitetura extremamente única e original, mesclada com a natureza — o nível de detalhamento para a construção da cidade aqui é exasperante, e, mais uma vez, eu gostaria que a obra desse tempo ao público para apenas experienciar todo esse novo mundo que a mesma criou, que mistura tecnologia com arquitetura clássica. O design dos personagens também é bastante único, abrindo mão dos traços mais suaves e polidos que ditavam as figuras que estrelavam os filmes anteriores da Disney, e apostando em traços mais bruscos e grosseiros, provindos de histórias em quadrinho, de onde Mignola vem, que capitaliza ainda mais em cima do senso de aventura e de ação bombástica de Atlantis — o design da princesa Kida, sobretudo, é incrível de se ver. Apenas de olharmos para quadros isolados de Atlantis, teremos a sensação de que estamos sendo emersos em uma cultura extremamente única e original, e é em seus visuais que toda a parte criativa e todo o esforço dos animadores em fazer do filme algo único, com um universo próprio, chega mais facilmente para o público.

O único problema com a parte visual de Atlantis, e que acomete muitos filmes de ação no geral, é que as cenas mais movimentadas, as sequências de ação propriamente ditas, acabam ficando um tanto quanto confusas e convolutas, muito poluídas visualmente, tentando fazer muita coisa ao mesmo tempo, e não permitindo que o público consiga seguir a sequência de eventos de forma linear, terminando apenas como uma série de explosões e perseguições desconexas, que os olhos não conseguem acompanhar, com a quantidade gigantesca de informação visual fazendo da obra muito lotada em alguns momentos, às vezes até em momentos chave, como parte do clímax final, que é, também, bastante convoluto — não ajuda o fato de boa parte dessas cenas se ambientarem em cavernas, no fundo dos oceanos, e em outros ambientes escuros, fazendo de tudo ainda mais difícil de acompanhar. E, pensando bem, este é o problema com Atlantis no geral: a lotação de informação e a sensação de que a obra quer fazer muita coisa ao mesmo tempo.

E com isso eu quero dizer que, com todas as suas grandes ideias e ousadias, Atlantis acaba possuindo um peso enorme em suas mãos, que ele não consegue carregar, acabando tendo que fazer coisas demais ao mesmo tempo; não só mostrar o mundo único e a cultura que foi criada especialmente para Atlantis, mas também precisando andar com seu enredo e seu direcionamento narrativo, com a obra obtendo resultados mistos ao tentar casar os dois campos, com muito acabando sendo engolido na tentativa da obra de equilibrar tudo isso em apenas uma hora e trinta minutos de duração. As maiores vítimas acometidas pela falta de foco de Atlantis são os personagens, que acabam sendo pouco desenvolvidos pelo filme, quando não totalmente esquecidos. Atlantis possui um elenco extremamente numeroso, talvez o maior de qualquer filme do estúdio, com, além do protagonista, Milo, e seu par romântico, Kida, um grande número de coadjuvantes, na tripulação da expedição à Atlantis. Por a quantidade de personagens de o filme ser maior do que o normal, e a obra já ter bastante em suas mãos ao tentar balancear toda a parte mitológica e aventureira de sua história com o arquétipo narrativo disneyano mais convencional, com um par romântico, um vilão e um grande conflito a ser resolvido no final, todos esses coadjuvantes acabam esquecidos após determinado tempo, o que é uma pena, pois quando a obra nos dá tempo para conhecê-los minimamente, essas figuras se mostram interessantes, e eu gostaria de ter visto mais das mesmas. Cada um desses personagens é bastante único e possuem uma caracterização marcante — neste sentido, eles até que lembram personagens de desenhos animados, com essas figuras sendo mais exageradas e escrachadas do que personagens de filmes, cada um deles tendo um arquétipo de personalidade mais cômico, que os define e os ajuda a se destacar (assim, faz sentido que os planos para Atlantis envolviam seguir o filme com uma série em desenho animado, onde, com mais episódios, nós teríamos mais tempo para seguir esses inúmeros personagens, e seus estilos, mais cartunescos, casariam bem com o formato). Nós temos Vinny, um demolidor italiano cínico que adora demolir as coisas, Joshua, um médico de bom coração que é o mais amável do grupo, Audrey, a mecânica rebelde e espevitada, Cookey, um cozinheiro caipira, Mole, um geólogo francês que age como a toupeira, a não-vilã Helga, uma femme fatale misteriosa, e, a melhor de todos, Srta. Packard, a operadora de rádio idosa, rabugenta e sarcástica. Apesar de alguns deles chegaram ao ponto de perigosamente cruzar a linha entre o divertido e o irritante, a maioria dessas figuras são interessantes e divertidas, roubando a cena para si sempre que lhes são dada a oportunidade, e eu realmente compro que exista uma camaradagem entre eles, que lhes faça um grupo, mesmo que o filme raramente denote a ligação entre essas figuras, e é tudo graças à química sem esforços que surge entre as mesmas.

Por um momento, parece que o filme dará espaço para desenvolver a relação entre os personagens. Quando eles são introduzidos inicialmente, quando Milo embarca no submarino da expedição e vai conhecendo estas figuras, o filme parece que se encaminhará mostrando as diferentes aventuras que este corpo de personagens enfrentará ao longo da narrativa, com os mesmos discutindo os muitos perigos que os esperam em sua jornada até Atlantis, e o filme parece promissor desta forma, apenas embarcando o público junto com seus personagens para uma grande e inesperada aventura, fazendo jus aos filmes do gênero de ação, aventura, fantasia e ficção científica que Atlantis espelha. Mas não é isso o que acontece; o grupo apenas cruza com um perigo em sua jornada até Atlantis, um monstro marítimo/máquina, que logo é superado, e, logo mais, a equipe já chega a Atlantis, não fazendo jus à promessa de que nós os acompanharíamos em uma jornada aventuresca e perigosa até que os mesmos atingissem seu objetivo. Isso é fruto direto das imposições executivas em cima do filme que eu citei: inicialmente, o plano era realmente mostrar este grupo de personagens embarcando em aventuras ao longo do filme, dando a chance do público de explorar com eles este universo e dos animadores de aderirem toda a sua criatividade à história, cimentando o universo de Atlantis como um universo fantástico e criativo ao extremo, auxiliados pelos ousados designs de Mike Mignola. Mas, logo os executivos resolveram se envolver e cortaram muitos dos planos mais ousados de Wise e Trousdale, em partes para cortar gastos, com o filme já excedendo qualquer limite imaginável neste departamento, e também para fazer da história mais sucinta, com as primeiras versões de Atlantis sendo muito mais longas do que a duração de filmes da Disney, mas em parte também para que o filme não diferisse muito da imagem lúdica da Disney, cortando as ideias mais ousadas e fora da caixa de Atlantis, o que é uma pena, pois o mais chamativo em Atlantis é justamente a maneira com que ele difere dos musicais lúdicos que o antecederam, possuindo uma pegada de ação e de ficção científica, que acaba por não se concretizar por completo.

Logo, os personagens são apressados para Atlantis, e toda a promessa do primeiro ato, de que veríamos esse grupo de personagens embarcando em aventuras juntos, é quebrada, com a trupe, que estava totalmente em foco até então, com o filme construindo sua dinâmica, uns com os outros, e com Milo, passam a ocupar o cargo de figurantes de luxo, aparecendo apenas no fundo das cenas estrelando Milo e Kida. Mas, certamente, mesmo que o filme não vá mais mostrar esses personagens entrando juntos em aventuras, ele compensará por isso ao nos mostrar o mundo fantástico de Atlantis, certo? Bem… não exatamente. O problema com Atlantis acaba sendo que a obra se movimenta rápido demais, não tendo nem tempo para desenvolver seus personagens, e tampouco para explorar seu universo único e vasto. Apesar de todas as falas dos envolvidos no projeto de que eles queriam fazer de Atlantis um universo único, criando toda uma cultura do zero e desenvolvendo um mundo próprio, o filme em si não demonstra nenhum esforço em querer de fato mostrar ao público este universo e esta cultura, ao invés se movimentando de forma alucinada, indo de ponto de roteiro a ponto de roteiro, como se estivesse batendo continência, não se permitindo divertir ao explorar este mundo que foi criado especialmente para a história. No fim, todas as promessas de que Atlantis seria um grande épico da ficção científica, com uma construção de mundo única e original, acabam não sendo cumpridas, e nós ficamos apenas com a ponta minúscula do iceberg de o que poderia ter sido algo extremamente criativo. Os momentos onde Atlantis revela e explora sua mitologia acabam sendo todos totalmente expositivos, e raramente orgânicos, com personagens possuindo falas extremamente didáticas e poucos naturais sobre como determinado aspecto da sociedade e mitologia de Atlantis funciona, apenas porque este entendimento seria necessário para o enredo, sem nunca deixar que o público ou os personagens possam apenas experienciar este universo. Eu sei que eu disse que os melhores momentos de Atlantis são quando a obra se deixa levar e embarca junto com o público em uma jornada de se autodescobrir, se permitir, e nos mostrar o que os animadores criaram especificamente para a obra, mas esses momentos são raros, e, após o primeiro ato, são praticamente nulos, e este é um dos principais problemas com Atlantis; apesar de se gabar de ser extremamente diferente dos outros filmes da Disney, a obra não consegue se livrar dos clichês que permeiam o restante das animações do estúdio, não possuindo todo o senso de aventura e de descoberta necessárias para uma obra de fantasia e ficção científica do escopo de Atlantis, se fechando em um limbo, não sendo nem um típico filme nos moldes dos grandes musicais do estúdio, e nem a obra ousada e altamente criativa que prometeu ser, sendo apenas uma decepção.

Eu digo que o filme acaba cercado por clichês porque o mesmo troca a aventura e o desbravamento de seu universo por elementos típicos de filmes da Disney; um romance, entre Milo e Kida, e a revelação de um vilão maniqueísta que precisa ser derrotado pelo herói, no caso, o líder da expedição, capitão Rourke, junto de sua fiel escudeira Helga (eu não vou me dar ao trabalho de esconder a “surpresa” aqui já que o filme também não o faz), que planejam saquear os tesouros de Atlantis e deixar a cidade à deriva, o que engessa o filme, fazendo com o que poderia ter sido um filme de fantasia bastante criativo, em sua reta final, se limite a ser mais uma história sobre um vilão ganancioso que precisa ser derrotado pelo herói, algo clichê e cansativo, e que desperdiça todas as possibilidades de inovação que a mitologia e elementos fantásticos que Atlantis possuía dava de bandeja aos roteiristas, com estes ao invés preferindo seguir as cartilhas típicas da Disney. E tais cartilhas tampouco são executadas de maneira particularmente bem-feitas, devido a, mais uma vez, o fato de a obra estar tentando fazer muita coisa ao mesmo tempo, querendo construir um épico ao mesmo tempo em que tenta seguir um modelo narrativo básico, não permitir que ela consiga se focar, desenvolvendo tudo de forma rápida e brusca, não dando oportunidade ao público de comprar os dramas dos personagens e de desenvolver qualquer laço com eles. O romance entre Milo e Kida é um exemplo; ambos possuem apenas duas cenas juntos e a obra já quer empurrar o romance deles goela abaixo do público, e tal romance continua tendo que dividir espaço com as tentativas pífias do filme de explorar seu universo, mas o mesmo pode ser dito da revelação de que Rourke é um vilão; o filme nos vende tal momento como sendo impactante, com Milo se sentindo traído por seus amigos, mas tal momento não vinga porque o filme não cimentou este laço de amizade de Milo com o restante da trupe, para que tal revelação tenha qualquer tipo de ressonância emocional com o público.

A narrativa extremamente simplória e maniqueísta de Atlantis também estão em constante contradição com as tentativas do filme de tentar ser sério, em sua construção de mundo e mitologia, tratando toda a questão política da cidade de Atlantis com o tato e os olhares de uma criança sobre como realmente funciona a gestão de um governo ou qualquer coisa envolvendo geopolítica. Por exemplo, quando Kida leva a recém chegada trupe de expedição em Atlantis para conhecer seu pai, o rei, e o mesmo lhe reprime dizendo coisas como “você sabe que qualquer intruso em Atlantis é condenado à morte” no tom mais calmo e monótono do mundo — oi? Você tem certeza que este é o tipo de coisa que se trata com este nível de desinteresse e irrelevância? Se a entrada de turistas ou qualquer pessoa de fora em Atlantis é estritamente proibida, você não deveria estar fazendo alguma coisa a respeito, ao invés de apenas reclamar com sua filha como se ela apenas tivesse se recusado a comer as verduras no jantar, após ela ter desobedecido a ordens de estado, ainda mais na frente desses “intrusos”, que tecnicamente você deveria condenar à morte? Ou então quando Rourke e Helga sequestram Kida, a princesa real, e praticamente matam o rei, e todo o povo de Atlantis não move um dedo para consertar a situação, não se rebela, não parte para o ataque, cabendo à Milo e ao restante da tripulação ir ao resgate da princesa, enquanto a população de Atlantis propriamente dita apenas torce para eles à distância? Como assim uma civilização tão avançada e vasta como esta sofre um golpe desta magnitude e não se defende? No fim, toda a construção de mundo de Atlantis acaba sendo extremamente rasa e risonhamente simplória, como se uma criança quisesse brincar com seus irmãos mais velhos, no caso, outras obras de fantasia com uma construção de mundo ampla e vasta, como Senhor dos Anéis, por exemplo, sem saber como, e fazendo tudo da forma mais básica e simplória possível.

No entanto, mesmo que eu não possa parabenizar a história em si por ser particularmente bem contada (porque ela não foi), eu me sinto na obrigação de reconhecer a mensagem por trás desta história; pegando um tema surpreendentemente maduro para a Disney, Atlantis pode ser lido como uma crítica ao imperialismo, e sobre como civilizações, ocidentais, muitas vezes, invadem outras que as próprias veem como inferiores e saqueiam sua cultura e suas riquezas, sendo isto o que Capitão Rourke planejava fazer com Atlantis, não possuindo nenhum respeito pela história e pelo legado de seus habitantes, e vendo naquela civilização antiga apenas um amontoado de pertences raros dos quais ele poderia se apossar e revender, assim enriquecendo às custas de outros, sem peso na consciência sobre o rastro de sangue que o mesmo deixaria em Atlantis, em sua sede por roubar seus pertences e desrespeitar sua cultura, não apenas matando o monarca da civilização, mas raptando sua princesa. Milo, por outro lado, apresenta um contraponto à Rourke, sendo ele alguém que compreende Atlantis como uma comunidade viva e igualitária à ele e aos seus camaradas de expedição, não querendo descobri-la motivado por dinheiro e no que ele poderia tirar da mesma, mas do que tal civilização poderia oferecer a ele, todo o conhecimento e toda a cultura que a cidade perdida cultivava em si, sendo ela um ecossistema único e respirante, cuja cultura e tesouros merecem ser respeitados.

O filme não abertamente trabalha com esse tema, e o mesmo vem como um subproduto de toda a situação clichê que é existir um vilão maniqueísta e ganancioso que é revelado no terceiro ato para dar tensão e conflito ao filme, mas ao menos algo de interessante conseguiu sair desses clichês, fossem eles planejados ou não. Existe uma cena, quando Milo descobre que Rourke é um vilão e os mesmos se confrontam sobre suas diferentes visões e entendimentos sobre Atlantis, onde o vilão levemente levanta um interessante debate, acusando Milo, e os acadêmicos no geral, de serem hipócritas, já que a classe acadêmica ocidental cresce e se alimenta de ações imperialistas como as de Rourke, que saqueiam outras culturas e seus artefatos, fazendo com que professores e estudiosos possam estudá-las mais de perto — em uma fala poderosa. o vilão aponta como se todos os artefatos roubados presentes nos Estados Unidos fossem devolvidos para o seu povo de direito, não existiriam mais museus no solo americano, uma discussão interessante. Infelizmente, tal fala não possui nenhum impacto em Milo e o filme praticamente abandona toda essa discussão após a cena se encerrar, se limitando, novamente, à clichês, com todo o clímax final sendo apenas uma sequência de perseguição genérica, onde os heróis lutam contra os vilões para resgatar a princesa, mas a mera existência dela nos dá pano para refletirmos em Atlantis, e camadas à narrativa. No fim, o fato de Rourke ser derrotado, e Kida ser salva (Kida, no caso, representava o próprio objeto que Rourke queria roubar, sendo ela a personificação de um cristal raro — uma crítica a como os brancos costumam ver outros povos como objetos, talvez?), cimenta Atlantis como uma crítica ao imperialismo, corrigindo a história ao expulsar os colonizadores e mantendo a integridade da cultura atlântida intacta (apesar de isso ser meio que cancelado quando se é mostrado que Kida deu de presente para os amigos de Milo uma série de tesouros como agradecimento por terem a salvado — novamente, é incerto se a mensagem anti-imperialista do filme foi proposital ou não, e o resultado é um tanto quanto arbitrário e mal construído), o que é estranho vindo da Disney, uma das maiores corporações capitalistas do mundo, mas ainda assim bem-vindo.

Ainda assim, mesmo que Atlantis tenha boas intenções e boas ideias em sua mensagem, sejam estas propositais ou não, boas ideias apenas não fazem um bom filme, e, no caso de Atlantis, elas não compensam pela forma falha e esburacada com que tais ideias foram executadas. E foi esta, também, a opinião que ambos crítica e público tiveram na época.

Atlantis, em seu lançamento, engrossou a lista de filmes da Disney dos anos 2000 que foram fracassos tanto críticos quanto financeiros. Apesar de receber elogios por seus visuais, a história do filme propriamente dita foi tida como incoerente e mal desenvolvida, mas foi na bilheteria que Atlantis recebeu seu maior golpe; com seu orçamento de 120 milhões, o filme arrecadou apenas 186 ao redor do mundo, um grande desapontamento, especialmente considerando que a companhia via Atlantis como um sucesso confirmado, acreditando que suas inovações atrairiam o público, mas todo o trabalho dos animadores de tentar fazer do filme algo único acabou não sendo recompensado, e os planos subsequentes para fazer de Atlantis uma franquia, como o desenvolvimento de uma série de TV e de uma atração nos parques da Disney, foram silenciosamente canceladas.

O que mais ofendeu a Disney, no entanto, foi para quem ela perdeu; sendo lançado no verão de 2001, Atlantis concorreria com ninguém mais, ninguém menos do que Shrek pela atenção do público, filme realizado pela DreamWorks, novo estúdio do ex-chefe do departamento animado da Disney, Jeffrey Katzenberg, que saiu da mesma extremamente rancoroso, e com sede de vingança. Shrek era a concretização dessa vingança; o filme era simplesmente uma grande paródia dos contos de fadas da Disney, pegando todas as convenções e todos os elementos que fizeram do estúdio conhecido e bem sucedido, e os jogando na lama, os fazendo de piada. Não apenas isso, mas Shrek também era uma animação computadorizada, que ainda era algo novo em Hollywood, e atraía cada vez mais olhares para si. Enquanto isso, Atlantis não apenas era uma animação tradicional, mas possuía em si todo o sentimentalismo e romantismo disneyano que seria feito de piada em Shrek; não poderiam existir filmes mais diametricamente opostos sendo lançados ao mesmo tempo — Shrek representava o novo, Atlantis o velho, caberia ao público escolher que lado ele escolheria, e quando Shrek se tornou o filme mais lucrativo do ano, em comparação ao fracasso de Atlantis, a resposta estava dada. No primeiro ano do novo milênio, já havia ficado óbvio para a Disney que ela não era mais o gigante da indústria que havia sido na década anterior.

A última pá de terra neste caixão aconteceu em março de 2002, no Oscar, a primeira cerimônia da premiação a possuir a categoria de Melhor Animação, dez anos após A Bela e a Fera, da Disney, ter feito história a ser a primeira animação a ser indicada a melhor filme. Naquela época, se foi estabelecida a regra de que, se em algum ano houvesse o lançamento de apenas três animações, a categoria não ocorreria, algo que é completamente risível hoje em dia, mas sintomático de o quanto a indústria animada hollywoodiana cresceu em apenas alguns anos, e muito por causa da Disney. Na época de A Bela e a Fera, a Disney era a única casa de animação americana a lançar filmes com regularidade, e com seu sucesso nos anos noventa, a companhia não apenas fez com que a crítica fosse obrigada a voltar suas atenções para si, abrindo mão de qualquer preconceito a respeito das animações, mas também motivou outros talentos e outros estúdios a se aventurarem no meio, pluralizando e diversificando a indústria, de forma que, dez anos mais tarde, uma categoria específica no Oscar para celebrar a técnica fosse possível. Acontece que, nesta primeira edição da categoria, não apenas Shrek, o arqui-inimigo da Disney, levou a estatueta, mas Atlantis sequer foi um dos indicados. Após passar toda uma década revolucionando a indústria animada de forma que tal categoria fosse possível, e no ano em que lançou um de seus filmes mais criativa e tecnologicamente ousados, a Disney foi nada mais que esnobada pelo Oscar — como se tivesse sido a única que não fora convidada para uma festa; ainda pior, uma festa que a própria ajudou a organizar.

Mas tudo isso foram apenas adições ao péssimo ano que 2001 como um todo representou para a Disney; após gastar bilhões na aquisição da emissora de televisão ABC no final dos anos noventa, a companhia não conseguia de maneira nenhuma emplacar um sucesso televisivo, com a ABC fracassando em audiência, o filme em live-action, Pearl Harbor, que, similarmente a Atlantis, também possuiu um orçamento gigantesco e também era visto como um sucesso certo, fracassou risivelmente, e o ataque do 11 de setembro apenas culminou tudo isso, com a companhia temendo que seus parques temáticos pudessem ser um possível alvo terrorista, e logo a quantidade de visitantes aos mesmos despencou tremendamente, com o que era antes a única fonte de renda totalmente confiável para a companhia também fracassando — tudo isso levou ao despencar das ações da Disney na bolsa de valores, balançando totalmente as estruturas da mesma, e mostrando que, de fato, o sucesso dos anos noventa já não estava mais presente.

No fim das contas, Atlantis é digno de reconhecimento por sua ousadia e sua tentativa de se libertar das amarras criativas que acabaram por limitar a Disney na reta final os anos noventa, tentando remodelar a imagem do estúdio para um novo momento da história, e a maneira com que flertou com ideias e conceitos que nenhuma outra obra do estúdio havia tentado antes, como criar uma mitologia e um universo próprio, em sua sede de se fechar como um filme de fantasia e aventura à altura dos filmes do Indiana Jones e dos escritos de Júlio Verne, mas a maneira com que a obra realmente executou todas essas ideias não é nada menos do que decepcionante. O que poderia ter sido um grande épico extremamente criativo, se lhe fosse dado a oportunidade, acabou sabotado internamente, mais uma vez, e se fechou como uma grande bagunça, inseguro de si mesmo e de que direcionamento aderir à sua narrativa, não conseguindo equilibrar todas as suas inovações com todos os seus clichês, e se fechando como apenas uma das muitas decepções da Disney durante os anos 2000. Eu sei que não são todos os que possuem essa visão, com Atlantis sendo querido por muitos, e até possuindo uma grande base de fãs que se formou ao longo dos anos, e eu entendo o que levaria alguém a gostar de Atlantis, seja por seus visuais incríveis e por toda a sua ousadia, mas, quando eu olho para Milo e seus amigos, eu só consigo me sentir desapontado.

--

--