Moana: Um Mar de Aventuras (2016)

Miguel Serpa
37 min readMar 2, 2019

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Em 2016, a Disney lançou dois filmes, sendo a primeira vez em catorze anos que isto aconteceu; o primeiro deles, Zootopia, mostrou a aptidão do estúdio em sair de sua zona de conforto e abordar temas sérios e políticos como o racismo e as diferentes maneiras com que ele se manifesta no mundo atual, enquanto o outro, Moana, seguia mais ou menos pelos caminhos típicos associados à Disney, sendo mais um conto de fadas musical que acompanha uma jovem adolescente querendo descobrir o seu lugar no mundo, desta vez adicionando estes elementos à estrutura narrativa da jornada do herói, resultando em um produto final um tanto quanto genérico, e bastante formulaico. Um desses filmes (mais uma vez, Zootopia), também foi recebido com ampla aclamação crítica e amplo apelo popular, arrecadando mais de um bilhão de dólares ao redor do mundo e sendo o recipiente do Oscar de Melhor Animação na cerimônia de 2017, enquanto que Moana, ainda que também bem recebido pela crítica mesmo sendo mais lugar comum que seu antecessor, não pareceu gerar a mesma agitação que a maior maturidade e instigação política de Zootopia geraram alguns meses antes, e se fechou com uma arrecadação total de apenas (sic.) 600 milhões, também perdendo o Oscar para o qual estava concorrendo para o seu companheiro de estúdio (e outro para La La Land). Com todos estes fatos sobrepostos um aos outros, fica notável a aparente superioridade de um dos filmes da Disney lançados em 2016 sobre o outro, e esta percepção estaria correta. Um dos filmes que o Walt Disney Animation Studios lançou naquele ano é claramente superior ao outro em todos os aspectos, e este filme seria Moana.

Eu já cobri meus próprios (admitidamente controversos) sentimentos em relação a Zootopia em outro texto, mas basta dizer aqui que, enquanto que as tentativas do filme de abordar pautas sociopolíticas extremamente relevantes em si, de maneira que as mesmas fossem acessíveis ao público infantil, são uma atitude louvável, o próprio acaba fundamentalmente sofrendo quando a Disney não consegue se levar a abraçar o tópico racial em toda a sua seriedade por medo de criar um produto polêmico e que manchasse a sua imagem como uma companhia familiar, então o resultado final é uma obra que não verdadeiramente se compromete à fazer qualquer tipo de colocação mais incisiva, ao invés apenas vagamente brincando com o assunto sobre o qual se propôs a tratar de forma rasa e banalizada, que não se comprometesse com nenhum ponto de vista e se fecha de forma fácil para o consumo. Moana, por outro lado, é um filme sem grandes pretensões, sendo sua única grande ambição a vontade de recriar a fórmula dos musicais lúdicos da Disney com a qual o público está familiarizado com uma roupagem mais contemporânea, seguindo os passos de seus antecessores, Enrolados e Frozen. Em minha opinião, Moana é um filme que cumpre o que se propõe a fazer de forma magistral; não, ele não inventa a roda e nem tem pretensões para tal, mas ao invés apenas comprova mais uma vez o talento da Disney no que tange a confecção de narrativas sensíveis e que, ainda em sua simplicidade, dialoguem com as emoções do público. O fato de a Disney retornar para sua zona de conforto, com Moana, após tomar certos riscos, com Zootopia, prova que, às vezes, menos pode sim ser mais, com um filme mais confiante em si mesmo e no que estava fazendo, executando suas já familiares batidas narrativas de forma com que elas ressoem com o público como se este estivesse as acompanhando pela primeira vez, e se mantendo mais próximo aos elementos que fizeram o mesmo se encantar com os filmes do estúdio em primeiro lugar.

Moana é, pura e simplesmente, o filme em CGI da Disney que, para mim, mais consegue se manter fiel ao espírito e charme das obras românticas e lúdicas que esta casa de animação realizou em animação tradicional, conseguindo mesclar estes elementos antigos com sensibilidades mais atuais sem que as coisas soem discrepantes ou que o desespero do estúdio para se modernizar a qualquer custo transpareça, como foi o caso dos outros contos de fadas feitos em animação computadorizada pela Disney na década de dez. Muito disso provavelmente deve ser atribuído as habilidades dos dois animadores que praticamente iniciaram o modelo dos contos de fadas da Disney da década de noventa, John Musker e Ron Clements, os diretores de A Pequena Sereia, Aladdin, e do meu filme favorito deste revival da Disney nesta década, A Princesa e o Sapo, que eu gosto justamente porque ele também soa mais como uma homenagem aos antigos contos de fadas da Disney mais do que uma tentativa desesperada de desconstruí-los. Sim, eles estão de volta, desta vez para realizar o seu primeiro filme em CGI; mais um musical fantasioso e folclórico sobre uma adolescente com sede por aventuras que eles iniciaram em A Pequena Sereia, desta vez baseado na cultura polinésia.

A história segue a titular Moana, a filha do chefe de uma fictícia ilha no pacífico chamada de Motunui, que precisa se preparar para seguir os passos de seu pai e se tornar uma líder. O problema se encontra no fato de que a protagonista se sente atraída pelo oceano e pelo universo de aventuras que a esperam fora dali, quando as regras de sua comunidade são bastante claras na proibição da navegação, não permitindo que nenhum dos habitantes da ilha parta dali, o que gera atrito entre Moana e seu pai, justamente o chefe que precisa impor as leis aos demais habitantes do local.

No entanto, as coisas mudam quando os recursos de Motunui começam a ficar escassos graças a uma espécie de mudança climática; os cocos que eles colhiam estão apodrecendo e os peixes que eles pescavam na margem da ilha desapareceram. O filme, então, nos explica que existe um motivo mitológico para tal ocorrência; a desintegração da deusa Te Fiti, quem o povo de Moana identifica como a responsável por trazer vida ao universo. Te Fiti desintegrou a um milênio atrás, quando seu coração fora roubado por um semideus chamado Maui. Sem a presença cuidadora de Te Fiti, o mundo perdeu o equilíbrio e diversos monstros começaram a surgir para disputar seu espaço, com o mais notório dentre eles sendo Te Ka, um demônio do formato de um vulcão, sendo este o principal responsável por estar “envenenando” a natureza e a ilha de Motunui. Moana logo descobre que ela foi a escolhida pelo próprio oceano para levar o coração de Te Fiti de volta para a deusa e restaurar o equilíbrio do mundo, mas para tal ela precisará se aliar à Maui, encontrando-o e o levando junto em sua jornada até Te Fiti.

O maior detrimento de Moana, mais uma vez, pode ser considerado sua característica formulaica, que não apenas segue as cartilhas típicas de um filme da Disney desde a Renascença (adaptação de uma história folclórica, musical, um protagonista jovem e rebelde que quer mais da vida e descobrir seu lugar no mundo, alívios cômicos fofinhos, e etc.) mas mescla estes elementos com o arquétipo narrativo da jornada do herói, o monomito, popularizado por Joseph Campbell, o que, por mais que não seja o primeiro filme da Disney a abertamente seguir este arquétipo à risca (houveram outros, como O Rei Leão, Hércules e Mulan) e muitos outros filmes do estúdio se utilizam de ao menos partes desta estrutura já que ela é extremamente comum e de fácil manipulação, tornando fácil se construir uma história mais original ao redor deste modelo, é perceptível a aptidão de Moana de especificamente seguir tal modelo à risca, como mais uma maneira de subverter os filmes da Disney que vieram antes dele e modernizá-los (marca registrada de toda esta era em CGI da Disney que nós estamos testemunhando). Ao fazer um filme de “princesa” da Disney que especificamente se propõe a ser uma releitura da jornada do herói, transformando a princesa no titular e estereotipado herói, o filme não apenas subverte, mais uma vez, o arquétipo de princesa delicada e submissa, que era a norma nos primeiros contos de fadas da Disney, mas mais uma vez remodela estes filmes para que eles não sejam mais uma história de romance, e sim mais uma aventura bombástica entre dois personagens, Moana e Maui, que é a norma entre os filmes de animação hoje em dia, cuja qual até os contos de fadas mais recentes da Disney se adequaram. Mas eu acho que este modelo funciona muito melhor em Moana do que em Enrolados ou Frozen, porque, com estes dois filmes, ficava perceptível que suas sequências mais movimentadas de ação e aventura estavam ali apenas para se adequar ao desejo do público por animações desse tipo em detrimento de contos de fadas românticos, o que era a verdadeira identidade destes filmes — com Moana, a identidade do filme está intrinsecamente ligada ao elemento da jornada do herói e à jornada de Moana indo em aventuras para conseguir cumprir com seu destino, o que abre caminho para que este elemento de ação e aventura seja integrado à história de forma orgânica.

Mas, de qualquer forma, como eu estava dizendo, eu entenderia se algumas pessoas não se sentissem compelidas por Moana por sua essência mais arquetípica, o que se traduz em uma narrativa previsível e lugar comum. Assim como uma jornada do herói típica, Moana, a protagonista, começa seu filme em um mundo mundano e seguro (a ilha de Motunui), recebe uma chamada para aventura (sendo a escolhida pelo oceano para restaurar o coração de Te Fiti), viaja pelo desconhecido para completar sua missão (saindo da ilha para encontrar Maui e então restaurar o dito coração), encontra um mentor que irá lhe ajudar (neste caso, Maui), e assim ela cruza com diversos desafios ao longo de sua jornada, passando pelo momento mais baixo de sua aventura, onde se sente derrotada e começa a duvidar de suas capacidades, mas logo transita para o momento de reenergização, onde se reenergiza e está pronta para enfrentar qualquer coisa jogada em seu caminho, o que leva ao clímax final, a grande batalha na qual ela colocará à prova tudo o que aprendeu, e enfim concluir sua busca (restaurando o coração de Te Fiti). No fim, Moana retorna para o universo mundano de onde saiu inicialmente, trazendo com ela seus conhecimentos e aprendizados para instaurar uma nova ordem no local (com sua aventura, Moana consegue convencer seu povo a não mais temer o mar, e voltar a navegar novamente). É um arquétipo um tanto quanto clichê e reciclado, feito ainda mais clichê e reciclado quando se é adicionado a ele o elemento do “escolhido”, com uma espécie de profecia que escolheu o protagonista como a única pessoa capaz de realizar sua missão, como se este fosse seu destino; no caso, o oceano escolhe Moana como a pessoa destinada a restaurar o coração de Te Fiti e restaurar o universo ao seu estado natural. Tudo isso e mais a adição daquele elemento onipresente nas animações ocidentais atualmente, e sobre o qual eu reclamei extensamente em meu texto sobre Zootopia; a presença de uma dinâmica entre dois personagens que inicialmente não se gostam mas que são forçados a irem em uma aventura juntos, onde aprenderam a conviver com suas diferenças e se respeitar até formarem um laço genuíno de amizade.

Então, sim, Moana, como eu falei lá em cima, claramente não quer reinventar a roda e nem remodelar os caminhos pelos quais as típicas animações hollywoodianas caminham, o que pode irritar e se tornar uma experiência consideravelmente menos interessante de se assistir do que uma história totalmente original. Mas, a razão pela previsibilidade e fator de familiaridade de Zootopia ter me incomodado tanto, enquanto com Moana não (além do fato de todo mundo parabenizar o filme por sua pseudo “originalidade) é, como eu também citei na minha resenha de Zootopia, o que estas histórias adicionam a sua fórmula para diferenciá-la e torná-la mais autêntica mesmo com os clichês. Com Zootopia, eu apenas via o filme seguindo as batidas narrativas pré-determinadas e impostas à ele sem nunca desenvolver uma identidade própria — o desenvolvimento dado ao laço entre Nick e Judy seguia exatamente o mesmo modelo do desenvolvimento dado à amizades de outros personagens que começam não se gostando para depois se gostarem, e eu não conseguia desassociar o que eu estava acompanhando de milhões de outros filmes onde eu vi exatamente a mesma coisa ocorrer. Enquanto isso Moana possui elementos que enriquecem e diferenciam sua história; o principal deles sendo o fator cultural e mitológico do universo do filme, que absorve totalmente não só a narrativa, mas o arco individual de seus personagens, lhes dando uma identidade própria e independente.

No entanto, antes de eu começar a elogiar o fator cultural em Moana, eu preciso reconhecer que este é mais outro caso de uma grande corporação se apropriando de identidades culturais de grupos étnicos e geográficos minoritários, que historicamente sofreram com o colonialismo e a exploração de grupos dominantes sobre suas próprias terras e culturas, e as transformando em algo pasteurizado feito para o consumo em massa, o que pode ser tido como ofensivo para alguns, e este filme não evitou a sua porção de polêmicas — o design de Maui, por exemplo, um homem negro, grande e gordo, foi visto por muitos como um fenótipo racista polinésio, o que eu não posso contestar, considerando que eu não sei nada sobre, e tampouco estou inserido em tal cultura para fazer um juízo de valor se as pessoas que fazem parte da cultura que o filme visa representar devem ou não se sentirem ofendidas pela forma com que ele as representa. Mas, de qualquer forma, foi bastante noticiado durante o período de divulgação da obra a quantidade extensiva de pesquisas e estudos que a equipe da Disney aderiu ao projeto, inclusive com uma espécie de conselho com ativistas, experts e representantes de diversas ilhas do pacífico para ajudar os diretores, Musker e Clements, a se manter culturalmente preciso e não ofensivo (como muitos filmes da Disney do passado, inclusive bons filmes, foram culpados de fazer). O resultado ainda é misto e ainda é culpado de não ser uma representação totalmente positiva porque 1) no fim das contas, Moana ainda é um filme de uma companhia multimilionária como a Disney se baseando em uma cultura marginalizada para lucrar em cima da mesma, e com a imensa maioria, se não toda a equipe de produção não sendo de fato representantes desta cultura e 2) o simples fato de que não existe uma “cultura polinésia” de maneira geral, sendo a própria Polinésia ocupada por diversas ilhas, que por sua vez são ocupadas por diversos povos diferentes, que possuem culturas diferentes, então ao tentar realizar um filme que se mantivesse fiel à realidade cultural “polinésia”, o filme acaba misturando diversos elementos culturais de diferentes povos, e se torna em meio que uma amálgama.

Mas, com isto dito e os inerentes problemas da parte representativa de Moana reconhecidos (e isto porque eu sequer citei toda a discussão entre representatividade e lucro), o filme consegue reter elementos genuínos da cultura polinésia em si. Toda a trama do filme, aliás, é baseada em um período real da história da Polinésia conhecido como ‘a longa pausa’; os polinésios adquiriram o hábito e o conhecimento necessário para navegar uns mil anos antes dos europeus, e a migração destes povos e colonização das ilhas da Polinésia ocidental (as mais próximas da Austrália e Nova Guiné) remetem a 3,500 anos atrás — ou seja, ainda com tecnologia da Idade da Pedra, os polinésios conseguiram navegar milhares de quilômetros para encontrar ilhas perdidas no meio do oceano, e depois continuaram fazendo estas viagens migratórias, indo e vindo, até conquistarem tais ilhas — mas estudos indicam que, por algum motivo, estas viagens pararam repentinamente por um período de tempo. Após a colonização da área ocidental, as ilhas polinésias a oriente, como o Havaí, parecem não terem sido colonizadas até 1,500 a 500 anos atrás, o que significa uma pausa nas navegações deste povo por 2.000 anos, e, apesar de este período (‘a longa pausa’) gerar debates e teorias entre acadêmicos, ninguém sabe ao certo o que os levou a parar com suas expedições, e a eventualmente retornar com as mesmas — entra Moana, que nos mostra uma explicação mitificada para este período histórico; o roubo do coração de Te Fiti criou um mundo instável para navegações, sendo a missão de Moana inteiramente voltada para restaurá-lo. Falando em Te Fiti, nem ela e nem o monstro de lava, Te Ka, existem na mitologia polinésia, mas ambos são baseados na deusa Maori Hine-nui-te-po, que inicialmente era a deusa da vida, mas após descobrir que seu marido era também seu pai, a mesma comete suicídio e vira a deusa da morte (spoilers!). O semideus Maui, no entanto, existe de fato na mitologia polinésia, ainda que de forma diferente de sua versão disneyana; ele na realidade é um adolescente ao invés de um adulto, e ao contrário de sua versão arrogante e marrenta do filme, o personagem possui uma índole mais sorrateira e ardilosa, similar ao Deus da trapaça da cultura nórdica, Loki, e apesar de ele ter feito muitos dos feitos que o filme credita a ele, como roubar o fogo dos deuses para dar aos humanos e pescar as ilhas dos fundos do mar para a superfície, outros tantos foram feitos realizados por outros deuses e criaturas mitológicas — ele também não é um órfão adotado pelos deuses, como no filme, mas fruto da relação entre um deus e uma mortal. Tirando estas maiores participações da mitologia polinésia dentro da história em si, há diversos pequenos detalhes aludindo à cultura e costumes polinésios dentro do filme, como o fato de o nome ‘Moana’ literalmente significar ‘oceano’ em havaiano e maori, o que é uma perfeita representação da personagem.

Ilustração de Maui da mitologia polinésia

Mas, voltando para o ponto do texto antes de eu começar a discutir o uso de real mitologia polinésia dentro do filme, eu realmente gosto bastante do mundo próprio e da cultura de Moana, mesmo que se esta cultura é uma representação precisa da cultura real em que foi baseada seja outra discussão completamente diferente, que eu não me sinto nem um pouco preparado para debater sobre. Eu gosto quando filmes da Disney brincam com mitologia, pois isso sempre faz de seus filmes mais criativos e lhe dão um diferencial, e o mundo de Moana, e a cultura na qual o filme está inserida, é cheia de vida e de personalidade, o que adere um diferencial ao filme e o faz se sobressair em meio ao seu arquétipo narrativo reciclado, pois este arquétipo está inserido sobre um contexto único. Eu realmente gosto do pano de fundo para o filme, envolvendo Maui, Te Fiti e Te Ka, da justificativa que o filme dá não só para o porquê de o povo de Moana ter parado de velejar, mas também para o porquê de eles precisarem voltar; porque Te Ka está destruindo o meio ambiente, e portanto fazendo impossível que os habitantes da ilha possam suprir suas necessidades apenas se alimentando de cocos e peixes do ambiente, e as demais maneiras com que o filme vai dando camadas para este universo ao longo de sua duração — por exemplo, existe toda uma sequência em que Maui e Moana precisam entrar num mundo subterrâneo habitado por grandes monstros. Eu acredito que o filme é bastante criativo neste departamento, e isto o diferencia das demais obras que também seguem a jornada do herói. Mas mais do que o universo de Moana e a sua cultura, no entanto, o que eu realmente amo aqui é como a cultura está intrinsecamente ligada aos personagens e aos seus respectivos arcos, os fazendo únicos, e causando a sensação de que, mesmo que o básico de o que eles estejam atravessando nós já tenhamos vistos em outros lugares, ainda assim suas jornadas sejam específicas a estas figuras e soe próprio a eles.

Olhemos para Moana por exemplo; seu arco narrativo, ao contrário da imensa maioria dos protagonistas da Disney, não está apenas relacionado a sua vontade de embarcar em aventuras e descobrir quem ela realmente é — apesar de isto ser uma parte importante da jornada da personagem — mas também possui grandes influências de sua própria cultura. A parte cultural em Moana não está aqui apenas para servir de contragosto para a trama do filme e o arco da protagonista, mas ao invés está intrinsecamente ligada a protagonista e ao seu papel na história. Ao longo do filme nós descobrimos que a vontade de Moana de sair de sua ilha e explorar o mar não é apenas um desejo individualista motivado pela sua vontade de se autodescobrir, mas está, na realidade, amarrado à história de sua cultura; nos é revelado ainda no primeiro filme que, antigamente, o povo de Moana era formado por viajantes e exploradores, que abandonaram a prática quando o coração de Te Fiti foi roubado, o que desbalanceou o ecossistema e desencadeou uma série de monstros a habitarem os oceanos, tornando muito perigoso para as pessoas viajarem, o que os levou a abandonar a prática. Agora, o desejo de Moana de viajar não está apenas ligado a uma vontade individual, mas também ao legado de seu povo e a sua vontade de fazer jus aos seus antepassados e a sua cultura — como eu disse, a cultura é um dos principais motivadores do arco de Moana. Mas, ainda assim, mesmo quando a protagonista finalmente realiza seu sonho de viajar e embarcar na aventura pela qual estava sonhando a tanto tempo, ela não faz isto em um ato de rebeldia e liberdade, mas ela vai porque o seu povo precisa que ela vá. Mesmo tendo sonhado tanto tempo em ir explorar os oceanos, Moana ainda se mantinha em sua ilha porque ela ama seu povo, e sempre está inteiramente devota a eles, ela nunca os ressente por impedi-la de navegar, e ela nunca também coloca seus sonhos acima de sua lealdade e amor pelo mesmo. A mesma só finalmente adentra os mares porque ela sabe que se não restaurar o coração de Te Fiti, o meio ambiente continuará a ruir e sua ilha não terá meios para conseguir se sustentar. Isto faz da personagem alguém muito mais interessante de se acompanhar do que um típico personagem de ação que faz tudo o que faz por glória e para se provar, porque suas motivações não dizem respeito apenas a ela, e nós podemos ver que há muito mais para o personagem do que apenas a típica heroína durona de ação que embarca em uma jornada grandiosa; suas motivações para fazer o que faz vem de um lugar de amor pelo seu povo e por sua cultura, e há diversos momentos do filme em que nós podemos ver a personagem perturbada pelo fato de que, se ela falhar, isto poderá ser o fim de todas as pessoas que ama e tudo o que ela conhece, o que, mais uma vez, faz da mesma interessante e menos genérica do que um típico herói do monomito, lhe dando motivações e caracterizações próprias.

Também é um mérito do filme o fato de ele conseguir pintar Moana com tons diferentes das princesas típicas, e que subvertem o arquétipo passivo e delicado dessas personagens, sem que a mesma imediatamente caia em outro arquétipo, ou que suas atitudes soem inorgânicas e os roteiristas estejam desesperados em mostrar para o público o quão proativa ela é. Isto era um problema que eu sinto com muitas das protagonistas femininas da Disney nesta sua era em CGI; por um tempo, parecia que a única forma que a Disney sabia escrever uma personagem feminina que não fosse uma princesa estereotipada, era fazendo da mesma extremamente hiperativa e excêntrica, constantemente animada e entusiasmada com tudo e nunca deixando que nada abalasse seu espírito, como se tivessem comido um saco de açúcar, em uma clara tentativa de fazer personagens que servissem como “exemplo” e não fossem tidas como “problemáticas”, e que também fossem mais “gente como a gente”, claramente tentando o máximo que pudessem para fazer dessas novas personagens excêntricas relacionáveis com o público, sobretudo com as crianças (Rapunzel, Anna e até Judy Hopps, de Zootopia, se encaixam neste modelo), e por um momento parecia que a Disney havia se esquivado de um arquétipo para cair diretamente em outro. Mas Moana não é assim. Claro que Moana não é a típica princesa dos primeiros filmes da Disney, e possui mais características de personagens proativas de filmes de ação, mas o filme, muito como Mulan antes dele, não faz um grande espetáculo a respeito disso, e não parece querer provar a cada curva o quão moderna Moana é. Assim, a personagem possui a liberdade para agir de forma orgânica e não soa tanto como se estivesse seguindo um modelo em suas ações e atitudes; ela comete erros ao longo de sua jornada, ela possui momentos onde duvida de si mesma e de suas capacidades, ela não se comporta de forma perfeita o tempo todo e nem precisa ter a resposta para tudo, e isto faz dela única, e, acima de tudo, autêntica.

Similarmente, a obra também consegue evitar que Maui se transforme em um clichê irritante e genérico. Sob muitos aspectos, Maui é o Flynn Ryder de Moana; o personagem masculino adicionado dentro de um filme que inicialmente poderia parecer muito “feminino”, para atrair garotos para o cinema. Ele poderia facilmente se fechar como um personagem de uma nota só, com seu senso de humor mais cínico e frases de efeito “descoladas” para contrastar com a maior sensibilidade e honestidade dos contos de fadas da Disney e dar ao filme um ar mais modernoso, fazendo mais o estilo das animações pós-Shrek (como Flynn Ryder acaba sendo sob muitos aspectos), e apesar de o personagem servir exatamente esta função, o filme consegue humanizá-lo. O filme consegue maneirar com o senso de humor sarcástico de Maui ao lhe dar atributos mais redimíveis que fazem do personagem mais acessível e menos uma caricatura (tal qual faz com Moana). Ao longo do tempo, nós vamos penetrando a armadura cínica e arrogante de Maui, e descobrindo que muito de seu comportamento vem de uma certa insegurança; ao ser abandonado por seus pais e adotado pelos deuses, Maui decidiu se utilizar do gancho todo-poderoso dado pelos seus pais adotivos para agradar os humanos e conquistar o amor e validação dos mesmos, que o mesmo sentia haver perdido graças ao abandono de seus pais biológicos, ao fazer coisas como lhes dar fogo e ilhas. Ao roubar o coração de Te Fiti, ele não pretendia agir de má fé, mas apenas dar o poder de Te Fiti (o de dar vida) para os humanos — ou seja, Maui, no fundo, não passa de um menino inseguro que só queria ser aceito pelos seus, e o filme faz um ótimo trabalho dosando seus momentos mais marrentos e egocêntricos com momentos que o humanizam e evitam o transformar em um arquétipo que nunca evolui. Ele consegue seu desenvolvimento através de suas interações com Moana, onde ele ganha mais confiança em si mesmo e desenvolve um maior nível de compaixão — falando nisso, o laço de amizade entre ele e Moana é muito mais bem trabalhado e soa muito genuíno do que o da dupla protagonista em Zootopia, em minha opinião, porque o processo de eles deixarem de serem pessoas conflitantes e começarem a confiar mais um no outro, até desenvolverem uma amizade, é mais uma vez pautado em cima de sua cultura compartilhada; Maui ensina Moana como aprender a navegar tal qual seus ancestrais antes dela, e é a partir daí que o filme começa a trabalhar o relacionamento entre os dois.

Então, Moana já imediatamente se prova como um exemplo de que se é possível salvar um filme de narrativa clichê e batida com uma boa execução; personagens bem construídos, motivações bem delimitadas, um universo próprio onde a história se passa, e etc. Mas algo que realmente triunfa em Moana no final das contas é a maneira com que o filme sutilmente acaba desconstruindo e subvertendo certas convenções de estruturas narrativas como a jornada do herói e, sobretudo, a d’o “escolhido”. Pense comigo por um instante; quais são as típicas qualidades as quais nós associamos a um “herói” de uma típica história de ação e aventura? São personagens propensos à violência, personagens que se utilizam da força física, destemidos, imprudentes, arrogantes, personagens como… Maui. Se esta fosse uma jornada do herói típica, que refletisse a maneira com que o imaginário popular normalmente olha para estas histórias, provavelmente Maui seria o protagonista, mas esta não é a história de Maui, esta é a história de Moana, e é aí que o filme começa a andar por caminhos um pouco diferentes do que os por quais narrativas deste tipo costumam andar. Porque histórias que seguem o monomito normalmente acompanham protagonistas masculinos, nós temos a tendência de vermos características estereotipicamente associadas ao gênero masculino como sendo os atributos válidos para se determinar o que é um herói, e como um personagem deste tipo deve agir; ele precisa ser forte fisicamente, exaustivamente determinado, não ter medo de qualquer batalha, e etc. E é exatamente esta a ideia que a própria Moana compra sobre si mesma; a personagem passa boa parte do filme acreditando que o oceano lhe escolheu para restaurar o equilíbrio do universo por algum motivo extra-especial que tenha a ver com sua força física e atitude destemida, então ela tenta emular estas qualidades, mais alinhadas ao seu companheiro de viagem, Maui, acreditando que deva existir algum tipo de divindade nela tal qual existe nele. Mas ela está errada.

Porque o motivo pelo qual Moana foi a escolhida para ser a restauradora do coração de Te Fiti e do equilíbrio do universo não está minimamente ligado às suas habilidades físicas e capacidades de combate — apesar de o filme nos deixar claro que ela possui estas habilidades — mas sim à sua compaixão. São a compaixão, bondade e generosidade de Moana — características tipicamente tidas como femininas, e, portanto, mais fracas e menos importantes e virtuosas do que a violência e a força bruta — que a fazem especial, e são estes os motivos pelos quais o oceano lhe escolheu como a recipiente do coração de Te Fiti. Isso fica explícito em uma das primeiras cenas do filme, que é justamente em que o oceano escolhe a protagonista em primeiro lugar; Moana, ainda bebê, na beira da praia, vê um filhote de tartaruga sendo atacado por pássaros, e protege seu corpo com uma folha de planta para que o mesmo possa rastejar até o mar são e salvo — esta é Moana sendo generosa e compassiva, e é neste momento que o oceano efetivamente nota a presença de Moana pela primeira vez e lhe encarrega de restaurar o coração da deusa da vida. Infelizmente, a própria Moana acaba comprando a narrativa que defende a valorização de atributos violentos e “masculinos” como sendo inerentemente superiores à atributos sensíveis e “femininos”, ela acredita que deva existir algo que ela deva alcançar, algo que ela deva se tornar, para finalmente assumir seu posto como “a escolhida” e cumprir sua missão, se projetando em cima da imagem bruta e violenta de Maui e acreditando que é esta a resposta. Mas este acaba sendo a sua grande perdição; em seu desespero para se provar como sendo uma heroína digna e proativa a todo custo, Moana perde a sua essência e perde o contato com o que realmente fez dela especial este tempo todo. Ela tenta resolver o conflito através da violência, ao lutar contra Te Ka, o monstro de lava, e falha.

E isto nos leva ao grande momento emocional de Moana, e um dos momentos mais emocionalmente ressoantes de toda a filmografia da Disney; depois da grande derrota de Moana nas mãos de Te Ka, a protagonista se sente derrotada e atinge seu ponto mais baixo de todo o filme, ela está sozinha após Maui se irritar com sua imprudência e lhe abandonar, acredita que não é capaz e pensa seriamente em desistir. É aí que o espírito de sua avó aparece para ela, e em um momento genuinamente tocante e sutil que foi apontado para mim por terceiros, a avó não tenta encorajá-la a seguir com sua missão, ou lhe pressiona para sair de seu estado de espírito derrotista para cumprir seu dever, como em muitos outros filmes ocorre quando um personagem passa por um momento melancólico, ela simplesmente… deixa que Moana experiencie como ela estava se sentindo. Ela valida os sentimentos da neta, reconhecendo que a mesma é ainda muito nova para carregar o peso de salvar toda a sua ilha nas costas e que não é justo colocar tamanha responsabilidade em cima de alguém, e diz que não haverá nada de errado se Moana quiser desistir e retornar para casa, ela não julga Moana por seus erros e nem a cobra, ao invés, ela demonstra compaixão para com Moana. E é esta compaixão que permite a Moana o tempo necessário para se curar do baque, e relembrar dos motivos que fazem dela especial; a sua própria compaixão.

Como é explicitado na própria canção que Moana e sua avó cantam nesta cena, Canção Ancestral, Moana percebe que não foi escolhida por qualquer motivo que não fosse a sua própria essência; ‘I am a girl who loves my island/I am a girl who loves the sea/It calls me’ (Eu sou a menina que ama sua ilha/Eu sou a menina que ama o mar/Ele me chama) (…) ‘And the call isn’t right there at all, it’s inside me (E o chamado não está lá for a coisa nenhuma, ele está dentro de mim) — com esta letra, fica explícita a realização de Moana de que ela não foi escolhida por alguma espécie de profecia ou por alguma característica especial que ela possui acima dos outros; ela foi simplesmente chamada por ser uma menina comum que ama o oceano, ela ama sua ilha, sua família, sua cultura — a caracterização de Moana é inteiramente marcada pelo amor e pela compaixão, e é isso que a faz de alguém digna; ela não precisa de poderes divinos nem nada do tipo para salvar o dia, apenas precisa ser ela mesma e agir da maneira compassiva característica de si, e é apenas quando ela faz isso, ao invés de tentar se provar como uma figura toda poderosa, que pode finalmente salvar o dia e completar sua jornada.

E isto me leva ao clímax do filme, que também é uma certa desconstrução dos clímaces de grandes histórias de ação por o grande conflito da narrativa que movimentou toda a trama até ali não ser resolvido com uma grande e bombástica batalha, mas, fazendo jus ao arco narrativo de Moana, é resolvido através de compaixão e compreensão. Acontece que Moana é o quarto filme seguido da Disney que nos reserva um “vilão surpresa”, mas dessa vez com uma execução um pouco diferente; no final das contas, Moana descobre que Te Ka, o monstro de lava que estava envenenando sua ilha e o resto do planeta, não é uma criatura terrível e oposta à Te Fiti e seus poderes de conceder a vida, mas sim a própria Te Fiti, que fora corrompida quando Maui roubou seu coração há mil anos, e se transformou na criatura de lava. Pela primeira vez, eu não me sinto desapontado com um vilão surpresa em um dos filmes novos da Disney, não só porque Te Ka é sua própria subversão deste modelo (não sendo um personagem aparentemente bom ou neutro que mostra sua verdadeira índole maldosa no terceiro ato, mas indo pelo caminho contrário, e sendo uma figura aparentemente antagônica que acaba não sendo do mal), mas também porque, pela primeira vez, eu sinto que esta revelação de fato foi bem integrada dentro do restante da narrativa, não soando como uma grande surpresa retirada do nada apenas porque o filme quer chocar, e também porque se amarra perfeitamente com o arco narrativo de Moana e de Maui — a compaixão de Moana era a única que poderia resolver o conflito porque o jeito abrasivo e violento de Maui já havia sido o que ocasionou o conflito em primeiro lugar, mais uma vez mostrando que a violência não era a resposta. Isto também expande para maiores interpretações filosóficas, como o fato de a vida e a morte, ou a ordem e a destruição não serem duas forças antagônicas, mas sim duas faces da mesma moeda — se nós respeitarmos a natureza ela trará virtudes para nós, mas se nós a negligenciarmos isto pode acarretar em nossa própria destruição. Isto, por sua vez, também se amarra com o próprio povo de Moana; eles estavam negligenciando suas próprias raízes culturais e sua história, ao abdicar de velejar, e tal decisão acabou também lhes prejudicando. Então, sim, eu gosto bastante do twist de Moana, eu acho que ele funciona bem e se integra bem aos temas e aos rumos do filme até então, não soa preguiçoso e nem é necessariamente previsível (o que, para um filme cuja principal crítica é a sua dependência em fórmulas narrativas já conhecidas, é um grande avanço).

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Além do que, se algum espectador estiver muito insatisfeito com a situação atual dos filmes da Disney onde todos os vilões precisam serem grandes surpresas e não tem mais a personalidade extravagante e teatral dos antigos antagonistas, Moana na realidade compensa por isso com a presença de Tamatoa; ele é um caranguejo gigante que roubou o gancho mágico de Maui e de quem Moana e Maui precisam ir pegar de volta em uma cena. Ele só aparece nesta uma cena, mas ele possui uma música onde, tal qual os vilões antigos, pode expressar toda a sua personalidade exagerada e megalomaníaca, então ele é bastante divertido e, por mais que só apareça por cinco minutos no total durante o filme, é provavelmente um agrado que foi inserido aqui aos fãs que por anos pediram para que a Disney voltasse com seus vilões clássicos (eu não realmente tenho um grande ponto que quero fazer a respeito do personagem, apenas queria reconhecer a sua existência porque eu gosto dele).

Mas enfim, no final, este encerramento cuja resposta não é a violência, mas sim a compaixão, faz com que Moana consiga perfeitamente conectar a veia mais aventureira da Disney atual, com a essência mais inocente e lúdica da Disney antiga. Aliás, de todos os filmes “de princesa” da Disney feitos durante sua era em CGI, Moana é o que eu sinto mais se manter fiel à essência dos clássicos contos de fadas do estúdio e o que mais está em casa perante eles, conseguindo mesclar sem esforços características das duas épocas da companhia, como a maior singelidade e delicadeza dos filmes antigos, e o maior senso de aventura e senso de humor mais atual dos filmes novos, sem que estes dois campos soem discrepantes e que um ofusque o outro, algo que eu não posso dizer nem sobre Frozen, e nem sobre Enrolados, que são dois filmes que, apesar de eu gostar de ambos (de Frozen apenas parcialmente), soavam meios desesperados em suas tentativas de se modernizar e de subverter os arquétipos narrativos da Disney antiga, o que impedia suas histórias de se fecharem de forma mais orgânica. Com Moana, a maior subversão do filme (envolvendo o fato de o grande ato heroico da obra que resolve o conflito final vir de um lugar de sensibilidade e compreensão, ao invés de um lugar de violência) é feita de maneira sutil, sem que o filme sinta a necessidade de olhar para a câmera e apontar para nós o quão subversivo ele é (compare isso com toda a parte de “você não pode se casar com um homem que acabou de conhecer” de Frozen, por exemplo). Claro que Moana obviamente ainda tem estes momentos mais abertamente subversivos em si (como a cena em que Moana se enfurece com Maui após ele a chamar de ‘princesa’, e ela faz um grande espetáculo ao redor do fato de que ela não é uma princesa), mas a maioria destes momentos são apenas isso; momentos, pequenas cenas onde o filme faz uma piada metalinguística engraçadinha para o público soltar uma risada, e ele não de fato constrói todo o resto do filme ao redor de sua vontade de ser subversivo, como, novamente Frozen fez — e ajuda o fato de essas piadas metalinguísticas serem realmente engraçadas. Acredito que o fato de Moana parecer menos discrepante dos antigos filmes da Disney do que seus contemporâneos, e ainda manter um grau de parentesco com estas obras mais antigas mesmo com suas atualizações a fórmula podem ser, mais uma vez, atribuídas aos seus diretores, Musker e Clements; estes dois foram os responsáveis por lançar a Renascença da Disney dos anos noventa, eles mais do que ninguém sabem como um filme do estúdio funciona e como encantar o público com estas obras, então os dois conseguiram reter muito da essência de seus antigos trabalhos aqui de maneira fenomenal.

Se eu tivesse que criticar algo em Moana, no entanto, eu teria que reconhecer que seu uso excessivo de fórmulas e arquétipos narrativos pode acabar causando sua série de momentos inorgânicos, momentos que estão lá claramente porque são acontecimentos narrativos comuns dentre os tipos de história nas quais o filme se espelha, mas que não necessariamente causam algum impacto em Moana propriamente dito, e poderiam facilmente ter sido cortados ou retrabalhados. Por exemplo, toda a forma com que Moana descobre que é “a escolhida” é bastante brochante e pouco impactante. Lembram quando eu disse que Moana é escolhida pelo oceano ainda criança quando ela salva uma tartaruga de ser comida por pássaros? Pois bem, é aí que o oceano tenta entregar o coração de Te Fiti (uma pedra verde preciosa) pra ela pela primeira vez, mas sendo ela ainda praticamente um bebê, ela não entende o que está acontecendo. Daí, se é esperado que ela tenha um outro encontro com o oceano depois de crescida onde ele entregará o coração para ela mais uma vez e desta vez ela aceitará — mas não. O que acontece é que a sua avó guardou a pedra todos esses anos, e quando chega o momento ela simplesmente sussurra no ouvido de Moana “você é a escolhida”, uma maneira bastante sem graça e inconsequente de se introduzir um dos maiores pontos de roteiro de todo o filme. Também existe a tentativa da obra de dar um pouco mais de profundidade ao pai de Moana, revelando que ele é tão terminantemente contra as navegações porque um amigo seu morreu afogado durante a infância — o que vai parar em lugar nenhum. Existe também um encontro que Moana e Maui tem um encontro com um bando de cocos-pirata (os Kakamora, outras criaturas que de fato existem no folclore polinésio — ainda que eles não sejam cocos), que está lá só para ser uma cena de ação gratuita que não adere praticamente nada ao resultado final, e o grande momento em que Moana e Maui se separam após uma briga — aquele momento que existe em praticamente todo filme estrelando uma dupla de personagens que não se gostam e aprendem a se gostar que eu citei no meu texto de Zootopia; quando perto do clímax final há uma ruptura na relação entre os dois apenas para aumentar o drama e logo depois eles fazem as pazes, etc., etc., o que claramente só está aqui por causa da fórmula, já que a ausência de Maui aqui é totalmente gratuita e ele nem chega a fazer as pazes com Moana, ele só se irrita e vai embora, e depois volta já acalmado, o que não faz o menor sentido. E claro que também existem os animais fofinhos gratuitos para vender merchandising obrigatórios em todo filme da Disney, e cujo filme nem tenta esconder que é este o propósito dos personagens ao tentar lhe dar algum propósito. Aqui existe um porco e um galo; o porco aparece pelo saldo total de quarenta segundos e não realiza nada de importância narrativa, e o galo meio que funciona como alívio cômico já que ele aparece por mais tempo de tela, mas ainda assim, você poderia tirar ambos os personagens da história e ela continuaria fundamentalmente igual.

Mas, mesmo com estes pequenos problemas, é difícil se manter irritado com Moana com muito tempo, não só porque no geral o filme é bastante competente mesmo com seus errinhos, mas também porque, visualmente, ele é absurdamente lindo. Moana é, sem sombra de dúvidas, o trunfo visual em CGI da Disney até o presente momento. A ambientação praiana do filme é simplesmente belíssima de se olhar, e deixa ambas as ambientações europeias genéricas de Frozen e Enrolados no chinelo, com sua paleta de cores quentes e tropicais, desde o verde das ilhas, ao azul piscina do mar, ao amarelo do sol. A praia em Moana é muito linda e perfeitamente animada; a água cristalina dá a vontade de quem assistir ao filme de mergulhar na mesma, e a areia é assustadoramente realista — você pode notar cada grão de areia toda vez que um personagem pisa na mesma, é absurdo. Como a obra também possui elementos mitológicos e fantásticos, ela brinca muito com a iluminação para passar esta sensação de magia e de esoterismo, com luzes neon pipocando no filme toda vez em que ele parte para um momento mais imaginativo, como quando Maui e Moana vão para o mundo subterrâneo dos monstros e encontram Tamatoa, ou então quando a avó de Moana retorna como um espírito e ela é inteiramente contornada por um azul neon. Não satisfeito, o filme também brinca com outras técnicas em si, possivelmente sendo o filme em CGI da Disney que mais fez isto; a tatuagem que Maui possui no corpo, por exemplo, é um organismo vivo, que constantemente interage com os personagens, e ela foi animada tradicionalmente, pelo lendário animador Eric Goldberg (mais conhecido por, entre outros trabalhos, ter animado o Gênio do Aladdin em toda a sua megalomania e teatralidade). Algumas cenas, como o número musical de Maui, De Nada, também utiliza de colagem em si; em suma, a animação de Moana é simplesmente brilhante, misturando o maior realismo do CGI com as maiores liberdades criativas da animação em 2-D, e sendo o maior trabalho em animação computadorizada da Disney que conseguiu se aproximar de toda a estilização dos filmes animados tradicionalmente do estúdio.

E então, vem as músicas. Como eu posso dizer isso da maneira mais clara possível? Elas são simplesmente fenomenais. Não apenas elas individualmente são incríveis, mas pela primeira vez talvez desde A Princesa e o Sapo elas também soam como um trabalho coletivo coeso, que está intrinsecamente ligado ao filme, construindo não só a atmosfera do mesmo, mas também servindo para aprofundá-lo narrativa e tematicamente, e, mais uma vez, é isto o que um musical deve ser; um musical não é um musical só porque ele possui músicas, mas as músicas precisam dialogar com a narrativa de forma corpórea, elas precisam aderir ao filme, e com filmes como Enrolados e Frozen eu sentia que as músicas estavam lá apenas por estar, só como uma desculpa para que os filmes fossem musicais assim como os antigos filmes da Disney, mas sem que as músicas aderissem algo. Frozen quase fez isso, com todo o seu primeiro ato sendo lotado de músicas que de fato ajudam a aprofundar a história, mas depois dos primeiros trinta minutos ele simplesmente larga as músicas por inteiro; este é outro grande problema de filmes como estes, eles parecem estar desesperados para se livrar de suas músicas o mais rápido possível para entrar direto na parte de ação da história. Mas em Moana, a música está inteiramente presente; aliás, o ponto emocional do filme é todo passado em uma cena musical, Moana chega na culminação de seu arco narrativo com uma música, quando foi que um musical da Disney de fato valorizou suas músicas dessa maneira, não como um adereço, mas como peças intrinsecamente ligadas à narrativa?

Grande parte desta maior sensibilidade musical de Moana pode ser atribuída a participação de Lin-Manuel Miranda na mesma, também conhecido como o homem que revolucionou a Broadway com sua peça Hamilton, um fenômeno cultural há muito não visto nos palcos. Se você está familiarizado com o trabalho de Miranda você sabe não só o excelente compositor que ele é, mas o talento dele para confeccionar narrativas inteiras através de música, através da música ele perpassa pequenas sutilezas que enriquecem a história, como temas instrumentais específicos para um personagem que se repetem toda vez que este personagem está em cena em diferentes contextos (os ditos leitmotivs, originados das óperas). Aqui em Moana ele replica este talento perfeitamente. Lembram em O Corcunda de Notre Dame quando a música não só conseguia construir perfeitamente a atmosfera da história, mas até sutilmente aderia camadas à mesma, com cantos gregorianos em latim que soltavam pequenas falas em cenas chave que quando traduzidas se encaixavam perfeitamente a o que estava acontecendo? Moana faz isto também, e decifrar estes pequenos momentos enriquecem ainda mais a história; por exemplo, na cena em que Moana salva a tartaruga ainda bebê e o oceano a escolhe para restaurar o coração de Te Fiti, esta canção, An Innocent Warrior, cantada no idioma tuvalu, é basicamente como se o oceano estivesse cantando para Moana “Seus olhos tão cheios de maravilha/Seu coração um guerreiro inocente/Existe uma tarefa para você”. Mais tarde, quando Moana completa sua tarefa ao restaurar o coração de Te Fiti e trazê-la de volta à sua forma como Te Ka, esta canção retorna novamente, intercalada com versos em inglês de Moana cantando para Te Fiti/Te Ka, representando não só o fim do ciclo de Moana, mas também ressignificando a música para que ela não esteja mais sendo direcionada à Moana e sim a Te Fiti, com agora ela possuindo a tarefa de sair de sua imagem monstruosa e retornar para sua forma normal. São pequenos momentos como esse que mostram toda a riqueza da parte musical em Moana, e realmente colocam-na lá em cima junto com o melhor que Alan Menken e Howard Ashman já compuseram para animações da Disney.

Mas, saindo da sua confecção e ligação com a narrativa, eu preciso reforçar mais uma vez o quão especiais estas músicas são individualmente. Miranda trabalhou juntamente do cantor e compositor neozelandês Opetaia Foa’i para misturar músicas da Broadway com influências tipicamente oceânicas, e funcionou perfeitamente, criando uma excelente atmosfera para a obra. Seu Lugar é a típica música que estabelece os personagens e suas vidas logo no começo da história, mostrando Moana em sua aldeia e como ela funciona, Saber Quem Sou/How Far I’ll Go é uma excelente música ‘eu quero’ (uma das melhores da Disney, aliás), na qual Moana canta sobre seu desejo de se aventurar pelos oceanos (e definitivamente merecia ter vencido o Oscar ao invés de La La Land), Para ir Além é possivelmente minha música favorita do filme inteiro, na qual nós somos expostos ao passado da aldeia de Moana, enquanto eles viajam com seus barcos, De Nada é a divertida e engraçada música de Maui na qual ele se gaba sobre seus grandes feitos, Brilhante é o momento que Tamatoa tem para brilhar e ele se aproveita de cada segundo de tela que possui, e eu já falei extensamente sobre o poder emocional e impacto narrativo sobre a música que Moana e sua avó compartilham juntas, Canção Ancestral, então não preciso adicionar mais nada.

No geral, Moana é um filme simples, mas surpreendentemente efetivo. Ele mostra perfeitamente a habilidade da Disney de tirar tanto de histórias fundamentalmente tão simples, a maneira com que ela consegue manipular e engrandecer estas histórias para fazer delas envolventes e sensíveis experimentos que conseguem facilmente atingir a veia emocional do público. Moana é um clássico instantâneo da Disney, saindo direto dos cinemas para o altar onde seus melhores e mais essenciais contos de fadas se encontram, e eu não ficaria surpreso se daqui a alguns anos a geração que cresceu com o filme olhasse para ele com tanto apreço e carinho quanto nós olhamos para os filmes da Renascença hoje em dia.

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