O Cão e a Raposa (1981)

Miguel Serpa
40 min readJun 27, 2018

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A década de 1980 não foi gentil com os estúdios Disney. Para um período de sua história conhecido como A Era das Trevas, os anos setenta não foram tão perniciosos quanto esse título dá a entender. Claro que foi uma década marcada pela perda de Walt Disney, que refletiu diretamente na qualidade de seus filmes, pouco inovadores, mas ao menos seus números continuavam sólidos, mesmo que pouco impressionantes (ou, em alguns casos, muito impressionantes, basta olhar para Bernardo e Bianca). Isso é porque os problemas iriam começar a se fortalecer de verdade na década seguinte, quando tudo começaria a desmoronar por entre as paredes da casa do Mickey. E o filme a abrir essa década marcada, no mundo real, pela crise da AIDS e Ronald Reagan, é nenhum outro que O Cão e a Raposa.

Agora, é importante delimitar que O Cão e a Raposa não foi um grande fracasso. Muito como os filmes que o precederam, ele teve resultados mornos, porém positivos, tanto financeira quanto criticamente. E muito como os filmes da época, a Disney atual não parece estar tão confortável com o filme, preferindo deixá-lo na geladeira a promovê-lo e lembrar o público de sua existência. Mas muito como nos anos setenta, os problemas com O Cão e a Raposa são muito mais fortes e presentes nos bastidores e em sua produção do que na maneira com que ele foi recebido, e muito disso está diretamente ligado a todas as mudanças e inovações que os anos oitenta trouxeram para a Disney. É muito fácil simplesmente olhar para a década e decretá-la como o período mais pobre e infeliz da história da Disney, outrora um pilar cinematográfico, mas também é importante porque isso se deu, e ao fazê-lo percebemos que o que resultou o fracasso da Disney foram motivos até que respeitáveis, e nobres, inclusive, que foram as suas tentativas de tentar coisas novas, e sair do engessamento onde o estúdio se encontrava desde a morte de Walt Disney. Eu consigo respeitar isso.

Os anos oitenta foram uma década transitória para a Disney, e tudo o que se desenrola aqui está intrinsecamente ligado ao sucesso que ela encontraria dez anos depois. Para começo de conversa, a década começa com o estúdio sob a liderança de Ron Miller, genro de Disney, que muitos lembram como sendo a pessoa responsável por afundar o estúdio, e, sim, seus anos no comando da companhia de seu sogro não foram exatamente positivos, mas ao menos ele estava tentando algo. Miller assumiu a posição de presidente da Disney em 1978, ou seja, exatamente após Bernardo e Bianca, e se consolidou como um inovador, tentando, assim como o próprio Disney, coisas novas que tirassem o estúdio de sua zona de conforto. Miller se livrou da máxima que guiava o estúdio na época, “O que Walt faria?”, e, ao invés, tentou olhar para o presente e sair das sombras de Walt Disney. O problema, no caso, foi que suas inovações, ao contrário das de seu sogro, se provaram equivocadas, e não trouxeram retornos. Essa maior inovação de Miller também gerou atrito direto com os animadores.

E isso me leva para a segunda peça chave durante esse período da história da Disney; os animadores. Eu disse anteriormente que Bernardo e Bianca foi o último trabalho de muitos dos animadores antigos da Disney, incluindo os Nove Anciões, e isso é verdade; Bernardo e Bianca foi o último filme do estúdio em que esses animadores trabalharam até o fim. Mas muitos deles ainda estavam presentes durante os primórdios da produção de O Cão e a Raposa, sendo este o filme para o qual podemos apontar como o passar do bastão definitivo entre a antiga e a nova geração de animadores da Disney, onde os animadores que estavam presentes desde Branca de Neve finalmente fecham as portas, e dão espaço para os mais jovens e ambiciosos, que continuariam seus passos até a Renascença, dez anos depois.

O Cão e a Raposa viu muito mais animadores principiantes trabalhando em si do que seu antecessor, Bernardo e Bianca, sendo este o primeiro momento em muitos anos em que novos animadores ingressavam o estúdio, que havia completamente se fechado para novos talentos após o fracasso de A Bela Adormecida, em 1959, quando ele se viu tendo que demitir boa parte de seus trabalhadores para arcar com os custos e manteve apenas a mão de obra estritamente necessária para animar seus filmes, de preferência os animadores de longa data e que eram íntimos de Walt Disney. Acontece que esses animadores aos poucos foram se aposentando, ou falecendo, e a Disney começou a precisar urgentemente de novo sangue em suas veias. Assim, ela se voltou para a CalArts (California Institute of the Arts), co-fundada por Walt Disney em 1961 como a primeira instituição americana de ensino superior voltada totalmente para animadores. Assim, a partir do final dos anos setenta, quando a necessidade por mão de obra começou a ser um problema para a Disney, muitos recém-formados saíam da CalArts diretamente para a Disney, e quando a produção de O Cão e a Raposa começou no estúdio na virada dos anos setenta para os oitenta, a quantidade de animadores jovens era tão grande, senão maior do que a dos antigos. Entre eles, são notáveis os nomes: Glen Keane, Don Bluth, Tim Burton, John Musker, Ron Clements, John Lasseter, Henry Sellick e Brad Bird, todos eles nomes que contribuíram e contribuem para a indústria da animação até os dias de hoje. Enquanto isso, apenas três dos outrora Nove Anciões restavam no estúdio; Ollie Johnston, Frank Thomas e Wolfgang Reitherman. Milt Khal, Marc Davis e Ward Kimball haviam se aposentado e/ou saído da animação, Eric Larson parou de se envolver com filmes e se focou em treinar animadores mais jovens e John Lounsbery e Les Clark haviam falecido. Então, como podemos perceber, este era um período de significativa mudança para a Disney, com um novo líder e um novo corpo de trabalhadores lentamente substituindo seus mentores, e não é difícil de imaginar que esta transição não foi facilmente encarada por todos, especialmente pelos antigos animadores, que estavam sendo, supostamente, “substituídos” por trabalhadores mais jovens.

Acontece que os animadores mais jovens estavam muito mais dispostos em seguir a visão mais inovadora de Ron Miller para o projeto do que os mais velhos, que ainda preferiam se manter fiéis a o que eles acreditavam ser a visão de Walt Disney. Em nenhum lugar esse embate das gerações é mais notável do que na direção da obra. Wolfgang Reitherman, incialmente, decidiu adaptar o livro O Cão e a Raposa, escrito em 1967 por Daniel P. Mannix, que havia ganhado o prêmio Dutton Animal Book Award, uma premiação voltada para obras literárias focadas no reino animal. A Disney havia comprado os direitos da obra desde sua vitória, ainda em 1967, mas demorou uma década inteira para começar seus trabalhos na adaptação. Reitherman se voltou para o livro porque seu próprio filho havia possuído uma raposa de estimação durante um período, e ele se sentiu motivado a adaptar a obra de Mannix, mesmo que ela fosse consideravelmente mais pesada e madura do que um típico filme da Disney. Os problemas de Reitherman começaram quando Ron Miller apontou um codiretor para a obra, Art Stevens, que compartilhava das visões de Miller. Apesar de Stevens trabalhar há bastante tempo na Disney, muitos dos animadores mais jovens também apoiavam mais sua visão, que parecia ser mais madura, enquanto que Reitherman queria deixar o filme o mais dócil possível, diferentemente do material original. Algo que simboliza as diferentes visões entre os diretores é uma ideia que Reitherman teve, de colocar uma cena cômica e musical no terceiro ato, para deixa-lo mais leve e palatável, ideia esta que tanto seu codiretor quanto seu corpo de animadores foram unanimemente contra. Neste período, Reitherman já era o último dos Nove Anciões na Disney, com Frank Thomas e Ollie Johnston, que haviam iniciado o projeto como os animadores chefe, se aposentando em 1978, e deixando O Cão e a Raposa totalmente a cargo dos animadores jovens. Eventualmente, Reitherman, que havia tomado as rédeas do estúdio desde a morte de Walt Disney e dirigido todos os filmes do mesmo até então, entregou os pontos e decidiu se aposentar. Segundo consta, Reitherman chegou a comentar com um amigo; “Eu não sei… Talvez esse seja mesmo um mercado dos jovens”, o que é um pouco triste se pararmos para pensar, ainda mais se considerarmos esse final infeliz de sua carreira em contexto com toda a sua significância para a história da Disney e, consequentemente, para a história da animação.

Após a saída de Reitherman e com O Cão e a Raposa ficando totalmente a cargo dos animadores jovens, os problemas não terminaram. Pelo contrário, um dos maiores golpes que a Disney sofreu em toda a sua história ocorreu nesse período, na forma de Don Bluth. Eu já falei sobre isso anteriormente, mas Don Bluth era um dos novos animadores que começou a trabalhar no estúdio nesta época, e um dos mais proeminentes entre eles, assumindo meio que a posição de líder do grupo. Esse maior entrosamento dos animadores com Bluth levou Ron Miller a considerar apontar Bluth como o novo diretor de O Cão e a Raposa, no lugar de Wolfgang Reitherman, mas o que Miller não contava era que o corpo de animadores gostava tanto de Bluth que quando ele resolveu se demitir para ir fundar seu próprio estúdio, motivado pelo o que ele via como um engessamento criativo da companhia, ele levaria onze animadores consigo, dando um verdadeiro golpe na Disney e a deixando a ver navios. Bluth iria seguir para dominar o mercado dos filmes animados durante toda a década de oitenta com seus filmes, sendo esta a primeira vez em sua história onde a Disney enfrentou uma concorrente de peso, ao menos no que tangia os longas-metragens. A situação com Bluth foi tão traumática para a Disney que O Cão e a Raposa teve sua estreia atrasada em um ano, sendo puxada do inverno de 1980 para o versão de 1981, quando, finalmente, após um processo de produção infernal, a obra chegou aos cinemas.

Logo de cara se prova fútil comparar o filme O Cão e a Raposa com o livro de onde pega seu título. Tirando alguns elementos chaves, as histórias não poderiam ser mais diferentes. O filme da Disney conta a história de Tod, uma raposa que é adotada por uma senhora após a morte de sua mãe, que faz amizade com Toby, um cão de caça que mora na casa ao lado. Quando eles crescem, no entanto, ambos percebem que seus mundos são extremamente diferentes e que suas posições na sociedade se antagonizam. Ambos acabam virando inimigos e se veem no meio de um dilema; ir contra as normas sociais ou aceitar seus respectivos lugares no mundo.

No livro, o foco não está na amizade deles e nem na questão do inato VS adquirido. O cão e a raposa do livro, que possuem os mesmos nomes de suas versões cinematográficas, não são amigos em nenhum momento e já se posicionam em posições antagônicas desde o princípio. Dodó é inicialmente adotado por um caçador, mas ele mesmo é guiado por seus próprios instintos biológicos e volta para a natureza, não há um grande embate entre os dois campos (a biologia e a antropologia) como no filme. Os dois protagonistas titulares só se conhecem já adultos quando outro cão de caça do dono de Toby persegue Dodó e sofre um grande acidente durante a caçada, que acarreta em sua morte. A partir daí, o caçador fica determinado a caçar Dodó e se vingar, e o livro passa a narrar a perseguição que se estende por anos, enquanto vemos o percorrer da vida de ambos animais. O fim do livro é extremamente deprimente e cínico, com todos os personagens principais morrendo. Toby consegue realizar o sonho de seu dono e matar Dodó (de cansaço após uma longa perseguição), mas com a urbanização que a área florestal onde a história se ambienta vai sofrendo com o passar dos anos durante a obra, o caçador passa a ser o último fazendeiro no local. Uma construtora o pressiona a ir para um asilo para que um prédio possa ser construído no lugar de sua fazenda, mas, por cachorros não serem permitidos, ele mata Toby com um tiro na cabeça. A obra de Mannix é bem mais gráfica do que o filme da Disney, não se acanhando em narrar em minuciosos detalhes cenas de morte, caça e tortura. Ela também é muito mais realista, tentando ao máximo não antropomorfizar os animais, tentando deixar seus instintos naturais intactos, ao mesmo tempo em que conta tudo pelo olhar dos mesmos, e nos passa a forma como esses animais veem o mundo. O maior realismo da história, no entanto, afeta a leitura da mesma, com quase nenhum diálogo e longas passagens descritivas que se estendem em demasia, se tornando cansativas e alienando a leitura.

O filme da Disney já é mais fantasioso, e apesar de possuir elementos bastante realistas em si (sobretudo a moral da história), ela suaviza consideravelmente a narrativa, e antropomorfiza os dois protagonistas mais do que o livro de origem, enquanto que a obra de Mannix, como citado, tenta ao máximo deixar esses animais em seu estado natural, algo com o que a própria Disney já havia trabalhado em Bambi e A Dama e o Vagabundo.

E falando em Bambi, O Cão e a Raposa possui algumas semelhanças com este outro filme, sobretudo em seus visuais. Não apenas ambas as obras se ambientam em uma locação florestal, mas a maneira com que os animadores escolheram retratar o ambiente parece pegar diretamente de Bambi — no caso, deixar os planos de fundo mais abstratos e inacabados, para que o foco fique praticamente todo nos personagens e nos objetos cênicos mais diretamente próximos a eles, com a ambientação mais afastada servindo mais para reafirmar as emoções que guiam a cena em questão, com as cores utilizadas para pintar os planos de fundo sendo escolhidas a dedo de acordo com qual delas evocaria melhor o sentimento que a cena quer passar ao público. Para os que não se lembram, Bambi teve o envolvimento de um pintor impressionista trabalhando nos planos de fundo, e o animador chefe responsável pelo projeto decidiu deixar os planos de fundo mais inacabados para que os quadros não ficassem muito bagunçados e cheios de informação visual — lembrando que a floresta daquele filme era perfeitamente detalhada pelos animadores e esse detalhamento maior no centro dos quadros contrastava diretamente com o impressionismo do fundo. Conhecendo a história da Disney nessa época, e apenas de olhar para a animação de O Cão e a Raposa, em contraste com a de Bambi, não é um exagero acreditar que dessa vez os animadores decidiram recriar a técnica de Bambi não graças a uma decisão estilística, mas guiados por preocupações financeiras, mesmo que O Cão e a Raposa, tendo um orçamento de doze milhões de dólares, tenha sido o filme mais caro da Disney já produzido até então.

O orçamento alto fica evidente se olharmos para este filme e o compararmos com Bernardo e Bianca, com a animação aqui estando a quilômetros de distância desta outra obra, mesmo que algumas falhas, que também apareceram no filme dos ratos, apareçam aqui. Ainda assim, fica evidente que a tecnologia da xerografia colorida, iniciada por Bernardo e Bianca, foi mais desenvolvida e trabalhada até chegar aqui, sem tantos defeitos e falhas, e sem parecer tão pobre. Assim, os visuais de O Cão e a Raposa não são nada de outro mundo e nem deixam o público de boca aberta, mas cumprem a sua função de forma satisfatória, sendo bem-feitos, mesmo que não se destaquem. Aqui, eu acredito, é a primeira vez desde a adoção da xerografia pelos animadores, vinte anos antes, que a sensação de falta de acabamento, como se estivéssemos vendo rascunhos em movimento, tenha sido deixada de lado, possivelmente pela xerografia colorida, que agora permitia que outras cores de contorno que não só o preto pudessem ser passadas para a tela quando copiadas pelo xerox. Ainda assim, sobretudo o design dos personagens são bem básicos e parecem vir de um desenho animado televisivo mais do que de uma animação cinematográfica. As cenas que mais se destacam, sobretudo pela similaridade com Bambi, são as que dão mais enfoque na natureza e na ambientação, como a sequência de abertura, que, mesmo não sendo tão polidas como as do filme de 1942, possuem seus momentos de brilho.

O Cão e a Raposa é um dos pouquíssimos filmes da Disney que eu nunca assisti durante a infância. Eu sabia da existência do filme, mas nunca tinha parado para assisti-lo até três anos atrás, quando eu decidi assistir todos os filmes do estúdio em ordem cronológica pela primeira vez. E o meu parecer, mesmo depois de crescido e não afetado pela nostalgia, foi bastante positivo. Eu gostei bastante do que eu havia assistido, o que foi surpreendente para mim, porque o filme não só é um dos mais esnobados dentre toda a biblioteca da Disney, mas ele também não parece ser visto com bons olhos pelos críticos em geral. Mas eu gostei do filme; ele é surpreendentemente denso para um filme da Disney, especialmente em sua temática, mas também na maneira com que ele aborda essa temática, não tentando maquiá-la ou suavizá-la em prol de um final feliz. Ele também não subestima o espectador, confiando que ele conseguirá digerir a narrativa de difícil digestão, em alguns momentos, sem precisar condescender ou falar de maneira paternalista com o mesmo. De certo modo, mesmo que as narrativas sigam por caminhos totalmente diferentes, o filme da Disney conseguindo ao menos se manter fiel em espírito ao livro de Daniel P. Mannix, por ter um senso maior de realismo em pontos — mesmo cortando muito da violência gráfica da obra — na maneira com que aborda a realidade dura de sua mensagem e tema. Deste modo, eu realmente acredito que O Cão e a Raposa seja um filme que possa ter mais coisas a entregar para os mais velhos do que para as crianças.

A cena de abertura é uma das que mais capta essa essência mais dura e mórbida que ditará parte do filme, já estabelecendo o tom e mostrando ao público que a obra em questão não será o seu típico filme da Disney. E falando nisso, eu acho que agora é um bom momento para falar sobre o estado das animações em geral durante os anos oitenta. O fim dos anos setenta e praticamente toda a década de oitenta foram uma fase peculiar para os filmes animados. Eu já falei anteriormente sobre como a indústria animada meio que caiu no ostracismo durante esse momento, parcialmente graças ao surgimento da televisão, que acarretou em desenhos animados sendo produzidos apenas como uma forma de fazer dinheiro facilmente, mas também pelo estado com que a própria Disney se encontrava, sendo ela o principal nome que produzia animações para o cinema nos Estados Unidos na época, então com seus filmes decaindo em qualidade e sendo lançados irregularmente, a indústria animada sofreu ainda mais. Isso viu um crescimento de filmes animados independentes ganhando espaço, e como as animações praticamente não possuíam mais público, essas obras não viam tanta necessidade de se censurarem, e uma onda de filmes animados mais mórbidos e pesados passaram a pipocar durante esse período. Isso impactaria mais a Disney no seu próximo filme, mas não é difícil perceber que esse estilo mais denso de se fazer animações já possuía algumas influências em O Cão e a Raposa.

Mas enfim, voltando para a cena de abertura. Diferentemente de muitos filmes da Disney, o início de O Cão e a Raposa é estranhamente tenso e um pouco mórbido, já pavimentando o caminho e informando o público sobre o filme que eles estão prestes a assistir se desenrolar. Em mais um paralelo com Bambi, a história se abre na floresta, mas não é uma floresta pacífica e bucólica, e sim assustadora e um pouco desconcertante. A câmera adentra por entre as árvores, enquanto uma iluminação escura mostra o pouco que conseguimos ver. Isso, juntamente com o silêncio que dita a cena, com apenas barulhos de fundo, como grilos e latidos de cachorro, dá ao público a sensação de incerteza, como se a qualquer momento algo pudesse sair da espreita e atacar. Isso é exatamente o que acontece, eventualmente, quando encontramos a mãe de Tod, com seu filhote na boca, fugindo desesperadamente de algo. Nesse momento, o silêncio vai embora, e começamos a ouvir violinos tocando rapidamente, o que aumenta a sensação de desespero da personagem. Os latidos de antes ficam cada vez mais presentes enquanto vemos a raposa correr. Ela finalmente sai da penumbra da floresta e chega a um campo ensolarado, mas a tensão não diminui. A raposa deixa seu filhote em uma cerca e se despede, voltando a correr. Finalmente, nós ouvimos dois tiros fora de cena, e a introdução se encerra. Essa cena é magistral, conseguindo não só impactar o público logo nos primeiros minutos, mas, como citado, deixá-lo antenado em o que esperar das coisas que se seguirão. É uma cena que nos passa todas as qualidades de O Cão e a Raposa sem nenhum de seus defeitos.

O que se seguirá, infelizmente, não conseguirá recriar todo o impacto deste breve momento. E eu sei que isso soa como uma contradição, devido ao fato de parecer que eu estava elogiando o filme até alguns parágrafos atrás, então deixe que eu reformule; (…) infelizmente o filme não conseguirá recriar todo o impacto breve momento, ao menos temporariamente. Porque O Cão e a Raposa pode ser dividido em duas partes; um primeiro momento com Dodó e Toby ainda filhotes e o outro com eles já adultos. É neste segundo momento que residem todas as qualidades do filme; o tom mais melancólico, a temática interessante e bem executada, a dinâmica bem trabalhada entre os dois protagonistas, cenas de ação eletrizantes. Enquanto isso, a primeira etapa parece mais uma preparação de terreno para o que virá depois, e há uma clara impressão de que os animadores não sabiam muito bem como executar esse momento da história, ao invés apenas enchendo linguiça para que os momentos mais interessantes cheguem logo.

Ao invés de tentar estabelecer a relação entre Toby e Dodó de maneira calculada e bem executada, o filme se ocupa mais em cenas fofas estrelando os dois filhotes fazendo coisas adoráveis para manter as crianças entretidas do que desenvolver melhor a história. Assim é até fácil se cativar vendo Dodó e Toby agindo de maneira fofa, mas há pouca substância para sustentar esses momentos. Também há a sensação de que não há tanto uma história aqui, e o filme só vai de cena em cena criando barriga para que coisas mais interessantes possam chegar, colocando uma cena de Dodó brincando na grama aqui, uma cena de Toby farejando ali, e por aí a história vai se esticando — é com isso que eu quero dizer que os animadores não pareciam estar muito certos de como executar esta primeira etapa da história, que possui um direcionamento narrativo tão nulo que soa mais como um trecho de um episódio para a televisão, com a única função de parecer fofo e ocupar alguns minutos da atenção das crianças. Isso é particularmente infeliz no que tange a relação de Dodó e Toby, com os animadores não poupando tempo para construí-la de maneira orgânica e com cuidado, ao invés pulando do momento em que eles se conhecem (uma cena genuinamente fofa e que teria seu mérito se estivesse amarrada com segmentos melhores) para ambos já se dizendo melhores amigos e fazendo juras de nunca deixarem de serem amigos. Isso não funciona e se amarra diretamente com outro problema que eu tenho com esta primeira etapa que é; ela é melosa demais.

O tempo todo o filme quer colocar cenas bonitinhas e melosas, na expectativa de encantar o espectador, mas é tudo tão rápido e inorgânico que é impossível sentir uma gota de genuinidade nessas cenas, ao invés sentindo elas como momentos manipulativos que querem arrancar emoções do público sem fazer por merecer. Esse é meio que um problema que perdura pelo filme, mas é especialmente maléfico aqui justamente pela falta de direção narrativa e de substância que justifiquem ou que ofusquem essa pieguice desnecessária. Um excelente exemplo são as músicas, que já não são muito impactantes, especialmente por parecem mais poemas cantados do que músicas propriamente ditas, mas que muitas vezes contribuem para esses momentos mais melosos e piegas, com versos clichês sobre amizade e amor, pouquíssimos inspirados, o melhor exemplo sendo a música Seu Melhor Amigo, que toca em uma montagem mostrando Toby e Dodó brincando, ainda filhotes.

Outro problema que acomete O Cão e a Raposa é a presença obrigatória de alívios cômicos e personagens secundários fofos para aliviar a tensão da trama principal, uma tecla na qual eu sinto que tenho batido muito nos meus textos, mas esse é um problema comum nos filmes da Disney, que se utilizam de personagens secundários como artifício para suavizar a história e/ou conseguir prender a atenção das crianças. Muitas vezes, como aqui, a inserção dos mesmos não é trabalhada de maneira orgânica e tampouco dialoga com a história ou com o tom da obra em questão, atrapalhando o desenrolar da mesma ao destoar completamente do resto do filme, e imediatamente quebrando o clima e tirando o público da história. Aqui, esses personagens são três: Mamãe Coruja, uma coruja, obviamente, que acolhe Dodó quando sua mãe o abandona e atrai sua futura dona, Viúva Tita, até ele, e que funciona meio que como uma narradora/conselheira para a raposa, e a dupla de pássaros Dico e Bruno, que possuem uma subtrama inteira voltada para eles, enquanto ambos passam o filme todo tentando capturar uma lagarta. Aqui temos mais um caso de os animadores não confiando totalmente em sua própria história e vendo a necessidade de enchê-la com momentos desnecessários apenas para deixá-lo mais “atrativo” e vendável, o que é uma pena. Disco e Bruno são bastante maléficos para a conjuntura final do filme, destoando completamente da história principal e aparecendo de tempos em tempos realmente apenas para que momentos cômicos pudessem ser possíveis, com cenas de perseguição típicas de desenhos animados, que veríamos em algo como Tom e Jerry, só que aqui é entre dois pássaros e uma lagarta — ou seja, além de serem momentos invasivos, também são pouco criativos (a presença deles também contribui para a sensação de pequinês e falta de foco da primeira etapa da obra). Mas eu argumentaria que a Mamãe Coruja é tão maléfica quanto, dessa vez não por ser alheia à história principal, mas justamente por estar intrinsecamente ligada à mesma, o que faz com que todo momento que ela interaja com Dodó destoe totalmente em tom dos outros momentos da história, porque Mamãe Coruja também é um arquétipo típico dos desenhos infantis, a figura “sábia” e “bondosa”, que faz tudo para ajudar a raposa, algo que difere do tom mais realista do resto da obra, sobretudo na segunda parte, quando há um direcionamento narrativo mais corpóreo e o tom muda drasticamente, ficando exponencialmente mais dramático e preso à realidade, mas as constantes inserções de Mamãe Coruja, que não condiz com o tom e soa mais como um Deus ex machina que resolve praticamente todos os problemas de Dodó, atrapalham no andamento da situação. Não é atoa que nos momentos mais tensos e impactantes, nenhum dos três personagens estão presentes, comprovando que o filme funcionaria muito melhor sem nenhum deles ali.

O único motivo que eu posso ver para que eles se façam necessários é que eles servem de amigos para Dodó e são personagens com quem ele pode interagir quando não está com Toby, que, por sua vez, possui Chefe e o caçador, Samuel Guerra, e as aves também compõem a verdadeira “família” e grupo ao qual Dodó pertence, animais livres da floresta, inimigos naturais dos cães de caça, grupo de Toby, mas ainda assim isso poderia ter sido feito de maneira menos invasiva e sem que o trio destoasse tanto em tom e não soassem como caricaturas mais do que como personagens.

Mas, ao mesmo tempo, não é como se a primeira parte do filme seja totalmente dispensável, porque ela nos introduz a história e aos personagens, e pondera sobre certos aspectos temáticos que iriam ser reforçados nos momentos seguintes, eu só gostaria que eles tivessem se focado mais em estabelecer o universo da história do que perder tempo com cenas fofinhas e engraçadinhas que no fim não tem muito impacto no resultado final. Por exemplo, eu gosto como o filme utiliza dos donos de ambos os animais como uma alegoria para a sociedade. Eles vivem um do lado do outro, com uma cerca literalmente os separando, ou seja, desde o princípio o mundo de Dodó e de Toby já é completamente segregado, e os mantém separados. Eles, como crianças, alheias às regras e normas sociais, vão contra o que lhes é imposto e “atravessam” a cerca, porque eles são muito inocentes ainda para compreenderem o universo em que estão inseridos e se deixarem influenciar pelos preconceitos e pelo ódio que dita como a sociedade funciona. A sociedade, como citado, é representada pelos donos dos animais, a fazendeira, Viúva Tita, e o caçador, Samuel Guerra. Eles não gostam um do outro, e estão constantemente brigando, ou seja, representando para os animais que desde cedo eles já fazem parte de grupos antagônicos. Mas claro que eles não respeitam isso, e continuam com a sua amizade proibida, para o que a sociedade decide interferir. Samuel Guerra não gosta que Toby ande solto por aí e o acorrenta no quintal, terminando suas brincadeiras com Dodó. A raposa não se dá por satisfeita e vai visitar o seu amigo acorrentado, e aí uma perseguição acontece quando o cachorro mais velho de Samuel Guerra, Chefe, acorda e vê aquele animal imediatamente como seu inimigo. O cão começa a tentar capturar a raposa, acordando Samuel Guerra, que também vai atrás do animal com uma espingarda, acreditando que a raposa só estava ali para roubar suas galinhas, quer dizer, já o encarando com preconceito e assumindo o pior em relação à Dodó, para justificar seus atos violentos para com o mesmo. Esse é o momento em que ambos os animais começam a compreender o maior sistema cujo qual eles fazem parte, mas ainda são ingênuos demais e esperam que sua amizade seja a exceção à regra e quebre as barreiras impostas a ele. São conceitos interessantes que começam a ser semeados aqui, para germinarem na segunda parte, mas, mais uma vez, isso seria ainda melhor se os animadores tivessem um foco narrativo maior e desenvolve melhor o laço entre os dois personagens, ao invés de perderem tempo com cenas fofinhas e que pouco contribuem para a história.

Esse momento do filme também começa a questionar e por em foco a dualidade do personagem de Dodó; seria ele um animal doméstico ou selvagem? E poderia uma raposa, naturalmente selvagem, ser domesticada? A temática do inato VS adquirido que eu levantei anteriormente. Logo no início ele demonstra dificuldade em se adequar à fazenda, durante uma cena em que ele tenta comer um dos pintinhos e causa uma confusão. Também fica evidente que ele não é visto como um animal doméstico pelos caçadores, que a partir do momento em que batem seus olhos sobre ele o veem como um animal selvagem que quer comer suas galinhas, e que precisa ser caçado. Assim, ele vai entendendo seu lugar na sociedade e encontrando seu grupo, com sua afiliação com a Mamãe Coruja e com Dico e Bruno, animais selvagens como ele, assim como o grupo de Toby é formado por Samuel Guerra e Chefe, caçadores. As aves decidem doutrinar Dodó sobre as regras da sociedade e alertá-lo sobre sua amizade com Toby uma vez que o cão parte para uma viagem de caça, onde seria treinado para virar um cão de caça e não mais um filhote, ou seja, ele voltaria já uma peça do sistema e não mais um filhote inocente e puro, capaz de formar amizade com uma raposa por não a enxergar como sua inimiga. As aves tentam fazer o mesmo com Dodó, lhe cantando uma música e mostrando toda a coleção de peles de animais que Samuel Guerra possui, como uma forma de acordá-lo para a realidade. Dodó, no entanto, se mantém esperançoso de que ele e Toby serão um caso a parte e sua amizade persevera perante as convenções sociais, e, com isso, chegamos à segunda parte do filme.

É aqui que o filme realmente engata, possuindo uma visão clara e não poupando esforços para reforçar os pontos que quer fazer. O Cão e a Raposa fica muito mais denso e dramático a partir desse ponto, dando uma virada de 180º com a primeira etapa, sem um direcionamento claro e ocupando seu espaço com cenas demasiadamente piegas e melosas demais. Todas as grandes qualidades do filme se encontram aqui, inclusive a que eu mais valorizo nesta obra, que é o fato de ele possuir uma visão clara e se manter sincero e fiel a história que quer contar, que é algo que eu sentia que faltava nos últimos filmes da Disney, que vinham sem brilho e sem muita ideia de o que eles queriam ser, apenas tentando recriar filmes do passado no modo automático, se fechando como obras genéricas e sem brilho. Mas não O Cão e a Raposa, esse filme tem uma história para contar e não medirá esforços para passá-la para o público.

O filme começa com Toby voltando da viagem de caça já crescido, e não mais o filhote de outrora. Ele também está sentado na frente da caminhonete de Samuel Guerra, ao lado de seu dono, fazendo contraponto com uma cena anterior, onde Chefe o informa que aquele é o seu lugar e que o cachorro mais novo terá que se provar e fazer por merecer se um dia quiser viajar na frente — agora Chefe é quem está atrás, com uma expressão insatisfeita em seu rosto. Isso, junto com a grande quantidade de peles de animais com a qual Samuel e os cachorros voltaram de sua viagem, já nos informa que aquele filhote inocente havia partido, e agora Toby era um cão de caça modelo, e uma peça do sistema social.

Dodó também cresceu, mas, diferentemente de seu amigo, ele ainda é uma criatura inocente e alheia às normas sociais, que acredita que uma amizade entre um cão de caça e uma raposa pode muito bem ser possível. No entanto, quando ele vai visitar seu amigo à noite, Toby não parece muito entusiasmado em encontrá-lo e o informa que a partir de agora os dois não poderão mais andar juntos, já que ele agora é um cão de caça oficial, com uma posição a cumprir e um trabalho a fazer. Ele agora não está mais alheio à sociedade, e não só compreende, mas compactua com as regras impostas pela mesma, entendendo que seu grupo e o grupo de Dodó jamais poderão ser amigos, ao contrário de o que ele acreditava como criança. A inocência e a pureza do filhote haviam sido contaminadas pela sociedade. Dodó não compreende isso ainda, e insiste, perguntando se ambos ainda são amigos. Toby se esquiva da pergunta, respondendo que agora ele é um cão de caça, e pede que Dodó vá embora, antes que Chefe acorde. No entanto, é tarde demais e o cão mais velho acorda. Por sua vez, seus latidos acordam o caçador, e uma perseguição começa.

Esta cena parece recriar a primeira sequência do filme, com Dodó correndo desesperadamente pela floresta, enquanto latidos de cachorro ensurdecedores podem ser ouvidos, assim como sua mãe no começo da obra. A diferença é que, enquanto naquele primeiro momento os perseguidores não eram mostrados, aqui nós podemos ver Chefe e Toby correndo atrás de Dodó. Mas ainda assim, mesmo sem o elemento mistério, ela consegue ser bastante tensa e eletrizante, pela maneira frenética como se desenrola, a música tensa tocando no fundo e a ambientação a noite. Essa cena é um dos grandes exemplos de tudo o que O Cão e a Raposa consegue entregar quando não se limita. Dodó corre até os trilhos de um trem, e se esconde debaixo de algumas vigas, onde Toby o encontra. Honrando sua antiga amizade, o cachorro deixa a raposa e despista seu dono, dando abertura para que ela pudesse fugir pelos trilhos. Infelizmente, Chefe o encontra e corre atrás dele, bem a tempo de um trem se aproximar. Dodó consegue escapar, mas o veículo atinge o cachorro, que cai dos trilhos pro rio abaixo, sendo socorrido por Samuel Guerra e Toby. Naquele momento, Toby vê um dos membros de seu grupo, de sua família, gravemente ferido por um erro que ele mesmo cometeu. Aqui, qualquer resquício de amizade que ele ainda poderia ter com Dodó se esvai, e ele jura se vingar da raposa pelo o que ela fez, a vendo como uma arqui-inimiga.

Agora, eu sei que eu critiquei a forma como a amizade deles foi formada na primeira etapa, mas ainda assim eu consigo comprar que existe uma grande mágoa entre eles aqui pela forma como tudo nos é mostrado. Diferentemente das cenas com os protagonistas quando filhotes, o filme consegue delimitar muito bem a relação deles quando adultos, e entregar ao público de maneira límpida a dor e o ódio que ditam suas interações, e parte disso é resultado do fato de, diferentemente do primeiro pedaço do filme, aqui os animadores não terem medo de mostrar situações desconfortáveis e dura digestão, sem sentir a necessidade de maquiar isso com cenas fofas e melosas. Também ajuda o grande contraste entre os dois momentos; enquanto a primeira parte, como citado, é extremamente melosa e fofa, aqui o filme se torna extremamente dramático e denso, e só essa curva brusca já nos ambienta e nos mostra que, realmente, as coisas mudaram, além de apenas de ver aqueles animais fofos e dóceis agindo com raiva e mágoa já impacta o público apenas pelo contraste. Eu ainda assim preferiria que o filme doasse um pouco mais de tempo à relação dos dois quando eles ainda eram filhotes ao invés de duas cenas deles sendo fofos um com o outro e jurando nunca deixarem de serem amigos como uma tentativa flácida de emocionar o público, mas a grande dissonância de tom meio que compensa por isso porque, mesmo a amizade deles sendo pouco trabalhada, a manipulação emocional da Disney funciona e nós achamos os filhotes fofos, então quando o vemos adultos e já não sendo fofos e sim odiando um ao outro, nós sentimos o impacto desta mudança. Também ajuda o fato de aqui eles soarem mais como personagens verdadeiramente, ao invés de apenas animais fofos com a única função de encantar as crianças.

Agora, um problema que eu tenho com essa parte do filme é o fato de Chefe não morrer, como era a ideia original, e como no livro também. Isso gerou discussão entre os animadores, com parte deles defendendo a morte de Chefe, pois isso impulsionaria a narrativa e deixaria as motivações de Toby daqui em diante muito mais claras e justificáveis. No entanto, outra parcela dos animadores defendia que Chefe continuasse vivo, com a justificativa de que eles jamais tinham matado um personagem principal anteriormente, e não iam começar agora (o que não é verdade, basta lembrarmos da mãe de Bambi), mas provavelmente suas motivações estavam mais relacionada com deixar a história mais leve, para evitar uma classificação acima de livre, que afastasse os pais de levar as crianças para assistir o filme. Eu realmente acho que a morte de Chefe seria mais eficaz, afinal esse é o momento dramático que finalmente coloca Toby e Totó um com o outro, e os fazem virar os inimigos que sabíamos desde o início da obra que iriam virar, então com certeza tal momento tão central para a narrativa precisava de um impacto maior e mais dramático do que apenas o quebrar de uma perna (sem falar que fisicamente não teria como Chefe sobreviver o impacto de um trem à movimento e a queda do alto dos trilhos até um riacho com apenas uma perna quebrada, mas enfim, suspenção da descrença é o mínimo para um espectador de filmes da Disney). Mas, mesmo eu acreditando que a história fluiria melhor com a morte de Chefe, o acidente dele cumpre a mesma função, e casa bem com a temática dos grupos sociais segregados com a qual o filme trabalha. O que mais ofende Toby nesta situação não é tanto o ferimento de um amigo, apesar de isso ser um fator, e sim o fato de que ele traiu os dele para ajudar um ex-amigo que, em troca, levou um membro de seu grupo para um acidente quase fatal. Ele se sente culpado e traído mais do que triste e de luto.

E o fato de Chefe continuar vivo também se amarra com outro ponto que o filme levanta a partir de então, que é a cegueira causada pelo ódio. Isso é mais representado em uma cena em que Chefe está se recuperando de seu acidente dentro da cabana de Samuel Guerra, e ele e Toby voltam para casa após um dia de caçada. O cão manca até seu dono procurando carinho, com sua perna engessada, que o trata com desdém e o manda voltar para o quarto, sem nenhuma consideração pelo próprio animal que ele diz querer vingar. Ou seja, Samuel Guerra estava tão obcecado por sua sede de vingança que já tinha inclusive perdido a noção de seus próprios princípios e de o que o levou àquela perseguição louca em primeiro lugar. Agora ele era movido apenas pelo ódio e não iria descansar enquanto não descontasse suas próprias frustrações em Dodó, deixando um rastro de destruição por onde passava.

E falando em Chefe, eu acho interessante que um filme realizado exatamente durante a etapa de passamento de bastão dos animadores veteranos para os recém-chegados fale sobre essa questão, do passar das gerações, mesmo que muito brevemente, através de Toby e Chefe e seu relacionamento. Isso também é diferente do livro, onde Toby é o mais velho e Chefe é o recém-chegado. Toby tem muitos ciúmes de Chefe, o vendo como um substituto dele aos olhos de seu dono, e passa boa parte do livro desejando que ele vá embora para que seu dono volte a lhe dar atenção absoluta, até que ele morre durante o acidente de trem e Toby se vê tendo que vingá-lo. No filme, ambos são amigos enquanto Toby é filhote, e Chefe meio que funciona como uma figura paternal para o cão mais novo. Quando ele cresce, Chefe demonstra ter um pouco de ciúmes por Toby estar “tomando seu lugar”, mas nada que seja muito ressaltado ou ocupe muito tempo de tela do filme. Assim, é interessante ressaltar que, enquanto que ambas as obras trataram do passar do bastão entre duas gerações, foi o livro que retratou uma relação tóxica e hostil entre as duas partes da equação, ditada pelos ciúmes e pelo rancor. Enquanto isso, o filme da Disney, que, em seus bastidores, enfrentava uma situação muito parecida com o que é narrado no livro, resolve maquiar a situação e mostra um passar de bastão mais amigável e não tão hostil assim, diferente do que os próprios animadores responsáveis por contar essa história enfrentavam.

Mas deixando Chefe de lado e voltando para a história, após o acidente nos trilhos do trem, Dodó volta para a casa de sua dona, que estava preocupada procurando por ele. Samuel, então, invade a casa de Viúva Tita para tentar matar seu animal de estimação ali mesmo, mas a senhora consegue impedi-lo, para o que ele faz uma ameaça, dizendo que qualquer dia Dodó sairá para brincar no gramado, algo que é natural para ele, e o caçador o matará. O que se segue é uma cena tristíssima e emocional, que muitas pessoas listam como sendo um dos momentos mais tristes de suas respectivas infâncias, que é Viúva Tita abandonando Dodó na reserva. Parte do porque dessa cena funcionar tão bem é pelo fato de a relação da raposa com sua dona, diferentemente do cão e da raposa titulares, ser bem trabalhado e mostrado ao público, e nós podemos perceber como dói a ela ter que abrir mão de Dodó para o próprio bem do animal. Nós a vimos cuidar dele desde que a raposa era um filhote e sabemos o carinho que ambos tem um pelo outro, então o filme faz por merecer essa despedida triste dos mesmos. A cena é um pouco melosa e piegas também, especialmente pelo fato de ser acompanhada por um poema recitado em off pela Viúva, uma decisão um pouco confusa e que é um pouco intrusiva, mas nem isso consegue estragar o peso emocional da mesma. Não ajuda o fato de Dodó não saber, em um primeiro momento, o que está acontecendo e acreditar apenas dar um passeio de carro com sua dona, enquanto vemos o olhar culpado da mulher assistindo sua raposa descansar em seu colo. Esse é o tipo de cena que é difícil de assistir sem ao menos um nó na garganta.

A adaptação de Dodó a floresta é difícil em um primeiro momento, com ele tenho dificuldades em se virar por conta própria para arranjar um lugar para dormir, se alimentar e se proteger da chuva, mas logo as coisas melhoram quando ele conhece Miriam, uma raposa fêmea, por quem se apaixona. Mamãe Coruja, em mais uma participação invasiva e desnecessária, decide brincar de cupido entre os dois, e, em mais um número musical, junta ambos. Agora, com uma companheira, Dodó não se sente mais tão sozinho, e, pelo contrário, é como se ele finalmente tivesse encontrado seu grupo de pertencimento, e, consequentemente, seu lugar no mundo. Assim, o filme parece estar defendendo o lado da natureza da situação, nos dizendo que, não importa o quanto ele amasse sua dona e o fato de ele ter crescido em uma fazenda, seus instintos naturais sempre sobressairiam em relação à sua vivência, e que o seu lugar realmente era a floresta, nunca podendo estar cem por cento seguro ou completo caso vivesse em uma região minimamente urbanizada e com contato com os humanos, só estando em casa no lugar que realmente pertence, agindo como uma raposa deve agir. Este momento é para Dodó o que a viagem de caça foi para Toby, onde ele finalmente se adequa à sociedade ao seu redor e o que ela espera dele, não lutando contra a maré, e aceitando o seu lugar natural no mundo.

Mas ainda é cedo para que o filme possa terminar, e, consequentemente, para podermos dar o nosso parecer final sobre qual é a mensagem de O Cão e a Raposa. Antes disso, ainda temos o clímax final para discorrer sobre, o momento em que Samuel Guerra e Toby invadem a reserva florestal onde Viúva Tita tinha deixado Dodó (reserva essa onde a caça era proibida — mais uma vez provando o quanto o ódio foi afastando o caçador mais e mais da razão) para realizarem seu objetivo de darem um fim ao animal. Essa sequência é mais um dos momentos eletrizantes do filme e, em minha opinião, o grande trunfo da obra, comparável à cena na caverna submersa de Bernardo e Bianca. Ela vai em um crescendo, que a deixa ainda mais impactante, começando calma, com Samuel Guerra e Toby andando pelas partes escuras da floresta e colocando suas armadilhas por um percurso, enquanto alguns animais os observam com medo, tudo enquanto Dodó e Miriam caminham despreocupadamente. Assim, nós vamos ficando cada vez mais tensos esperando a ação começar, e quando ela finalmente começa, ela explode. Toda essa sequência é sem sombra de dúvidas uma das cenas mais violentas de toda a biblioteca da Disney, não se censurando em nenhum momento (com a exceção da falta de sangue mesmo com todos os ferimentos, mas isso já seria esperar demais de um filme infantil da Disney). Esta é a primeira vez que Dodó ativamente rebate os ataques que recebe, mordendo Toby mais de uma vez, e é tudo porque agora ele tem uma família para proteger, Miriam, assim como Toby só está o atacando porque ele machucou Chefe. Agora, ambos são membros declarados de grupos opostos, grupos inimigos, e não tem pudores mais em se atacar e machucar. Este é o momento que o filme todo dava a entender que iria acontecer, onde o cão e a raposa não tem mais nenhum resquício de amizade pelo outro dentro de si, e são inimigos declarados. A cena continua com uma perseguição frenética, e Samuel e Toby dão tudo de si para derrotarem Dodó, desde ataques físicos, tiros e o caçador até tenta atear fogo na raposa e em sua parceira em um determinado momento. Como citado, é uma cena bastante violenta, cimentando O Cão e a Raposa como uma anomalia dentre a filmografia da Disney, um filme lançado durante um período peculiar da história da Disney e das animações no geral, que não apenas possui uma temática muito mais adulta do que o que estamos acostumados, mas é cerceada por momentos violentos e tensos, e não é atoa que ele foi perdendo seu espaço com o tempo, justamente por destoar tanto do que viemos a esperar da casa do Mickey que quando pensamos em filmes do estúdio, dificilmente uma imagem de dois animais visceralmente se atacando é o que viria à nossa cabeça.

Mas então, as coisas ficam ainda mais tensas, quando Miriam e Dodó conseguem escapar, deixando seus perseguidores para trás. É aí que um urso entra em cena, urso esse que é tão aterrador, com sua expressão mortífera, seu poste gigantesco, seus dentes afiados e seus pelos pretos contrastando diretamente com seus olhos gritantemente vermelhos que ele só poderia ter saído dos piores pesadelos dos animadores. Ele começa a atacar Samuel e Toby, que tentam lutar contra ele, mas são facilmente derrotados, em uma cena extremamente agoniante e, mais uma vez, bastante gráfica — ela seria ainda mais, mas foi suavizada pelos animadores (e eu fico me perguntando como esta cena poderia ficar ainda mais devastadora). Com Dodó finalmente tendo escapado, e o urso atacando o cão e seu dono, podemos acreditar que ele funcione como punição divina para todas as ações negativas que o caçador tomou durante o filme, sendo este o seu fim. Assim, ganhamos ainda mais evidências de que o filme está defendendo a visão de uma sociedade dividida em grupos, e de que, de fato, não há como fugir e se rebelar contra este sistema, estando nós todos fadados a seguir o que nos é imposto independente de nossos desejos e visões individuais. Dodó é realmente inimigo de Toby, mesmo que os dois tenham sido amigos quando filhotes, e agora tudo com o que ele tem que se preocupar é com o bem estar de seu grupo e de si, assim como Toby receberá seus fins nas mãos do urso, se mantendo fiel ao seu dono até o final.

Mas então, indo contra seus instintos, Dodó ouve os latidos de socorro de Toby e, já em seu caminho para fugir, ele decide voltar atrás, guiado não pelo o que era natural para ele, e sim pela amizade que um dia possuiu com Toby, porque mesmo que ambos sejam de mundos diferentes no final das contas, ainda existia um carinho, mesmo que muito pequeno, dentro deles um pelo outro, que não estava ligado com o que é natural ou com o que é socialmente esperado, e sim com o laço que eles fizeram juntos. Dodó ataca o urso, que corre atrás dele, enquanto a raposa vai até um tronco fazendo ponte de um lado do rio para o outro. Com o peso do urso, o tronco quebra, e ambos caem da altura da catarata em direção à água. Completamente exausto, Dodó simplesmente não consegue mais se mexer e fica imóvel, deitado na água. É aí que Samuel Guerra ressurge, com sua espingarda apontada para a raposa. Porém, com o que ele não contava é que Toby se poria em sua frente, sobre o corpo estirado de seu antigo amigo, o protegendo de seu próprio dono. Ainda assim, é exatamente isso o que acontece, com o cão fazendo o que a raposa havia feito por ele, e o defendendo, indo contra seus próprios instintos e crenças, e se posicionando contra o seu dono, literalmente, movido pelo respeito que possuía por Dodó, mesmo que ambos não fossem mais amigos. Vendo a cena é que o caçador reflete sobre tudo o que aconteceu e finalmente a razão recai sobre ele, fazendo com que ele desista de sua sede por vingança e decida ir para a casa. Antes de partir, Toby olha para trás, para Dodó, uma última vez, e ambos compartilham um último sorriso.

Assim, O Cão e a Raposa se encerra, mesmo com seus defeitos, se consagrando como uma obra diferenciada e surpreendente madura para um filme da Disney, com uma clara visão e uma clara mensagem a passar para seu público, mensagem essa que ele não poupou esforços para expressar, e que pode até ser considerada um pouco cínica para uma obra da Disney;

Cínico porque normalmente nós esperaríamos que um filme da Disney terminasse com Dodó e Toby voltando a ser melhores amigos e com ele retornando para a casa de sua dona, mas o filme se mantém fiel ao ponto que queria fazer até o final. Ao invés de ser uma história do bem contra o mal, O Cão e a Raposa é uma parábola sobre como as regras da sociedade e as expectativas que a mesma coloca sobre nós contradizem com os nossos próprios desejos, sobretudo quando ainda somos crianças e não compreendemos as complicações do mundo real. Mas o que mais me fascina em O Cão e a Raposa não é tanto a mensagem e sim a maneira com que ela é desenvolvida sendo bem sutil e não apontando dedos ou desfazendo a realidade complicada que ela estabeleceu em prol de um final feliz. Não é atoa que não tem exatamente um vilão em O Cão e a Raposa, todas as figuras que aqui aparecem apenas tem uma maneira de lidar e de ver o mundo de maneiras diferentes, de acordo com o contexto da posição que eles ocupam no mundo. A Mamãe Coruja e os animais livres da floresta viam Samuel Guerra e os caçadores como verdadeiros monstros e tentaram doutrinar Dodó a vê-los da mesma forma, porque esta era a maneira com que eles entendiam o mundo, mas o mesmo argumento pode ser feito para o outro lado da situação também. Ao invés de filmes como Bambi que assumidamente coloca os caçadores como os vilões declarados da história, O Cão e a Raposa não faz isso, até porque uma metade de seus dois protagonistas é um cão de caça. Os erros de Samuel Guerra não são porque ele é um caçador e a caça é naturalmente ruim aqui, e sim porque ele deixa o ódio tomar conta de si, mas até o mesmo ganha uma redenção no final, não sendo totalmente ruim, e, mais uma vez, apenas estar agindo da maneira que ele achava correta.

No fim o filme meio que aceita e se conforma às normas sociais, Dodó arranja uma vida na floresta com uma parceira e aceita o lugar reservado para ele na natureza, como se realmente algumas batalhas não pudessem ser vencidas, e o melhor a fazer é seguir o caminho reservado a nós pela sociedade. Mas, o filme não é tão cínico a ponto de dizer que não possa existir respeito entre os diferentes campos sociais. No fim Toby se recusa a matar Dodó, indo vai contra as ordens de seu dono, e se recusa a matar seu antigo amigo. Eles compartilham um último sorriso antes de partirem caminhos. Assim, apesar de o filme defender a ideia de que, sim, às vezes nós temos que aceitar os nossos destinos, ele ainda preza pelo respeito entre as diferentes camadas sociais. Misturando essa leitura social com a questão do inato VS adquirido, o filme parece defender a ideia de que não existe uma divisão entre os dois campos, de que nós somos tanto produtos de nossa biologia e instintos naturais, quanto produtos das nossas experiências e vivências. Assim, talvez Dodó não fosse capaz de viver uma vida domesticada com uma dona e fora da natureza, mas ele consegue atravessar a barreira imposta entre animais livres e caçadores, e defender Toby no final do filme através do laço de amizade que eles mesmos criaram, que se provou mais forte do que seus instintos ou que os grupos aos quais eles pertencem.

Então não, Dodó e Toby provavelmente não voltarão a ser amigos, eles são de mundos muito diferentes para tal, mas isso não significa que eles tenham que ser inimigos — respeito independe de amizade, algo que é reforçado na cena final entre os donos de Dodó e Toby interagindo e se ajudando após passarem o filme todo brigando e se desentendendo. O filme pode não ter um final feliz clássico, mas ainda assim se mantém esperançoso em seu desfecho, podendo ser realista sem ser, necessariamente, cínico.

E o filme consegue nos passar todas essas mensagens de maneira sutil e segura, sem sentir a necessidade de virar para a câmera e soletrar para o público o que ele estava querendo dizer, e sem temer que sua temática mais madura fosse afastar as crianças, assim, não as suavizando. Como citado, O Cão e a Raposa é um filme seguro de si, que sabe o que quer fazer, e que não tem medo de contar sua própria história. Isso é algo que eu me lembro de ter me deixado particularmente frustrado ao assistir Bernardo e Bianca, porque existia muito potencial ali, que acabou sendo desperdiçado pelo medo dos responsáveis do filme de ousarem e de se manterem focados em uma visão única, ao invés preferindo ficar em suas zonas de conforto e recriar elementos que eles sabiam que daria certo, sem se preocupar em, de fato, contar uma boa história, algo que mudou completamente em O Cão e a Raposa.

Assim, acredito que o sangue novo dentro da Disney realmente ajudou O Cão e a Raposa, mesmo com todos os problemas que essa transição causou dentro dos bastidores, porque agora ela tinha confiança em suas próprias ideias. A Disney não estava mais preocupada em seguir “o que Walt Disney faria”, e estava mais confiante em seguir suas próprias ideias. Por mais que nós amemos Walt, os Nove Anciões e tudo o que eles trouxeram para a indústria animada, em algum momento nós temos que arrancar um band-aid, respirar fundo, e seguir em frente, e foi isso o que O Cão e a Raposa fez para o estúdio. A obra está longe de ser perfeita e possui muitos problemas, mas ao menos ela traz de volta uma Disney mais ousada, uma Disney sem medo de tentar coisas novas, e uma Disney que prioriza história mais do que legado. A administração de Ron Miller pode ter sido maléfica para a Disney por diversos motivos, mas a confecção de O Cão e a Raposa, definitivamente, não foi uma delas.

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