O Galinho Chicken Little (2005)

Miguel Serpa
34 min readJan 15, 2019

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Em 1943, durante o período em que a Disney havia sido cooptada pelo governo americano para realizar curtas animados propagandistas, tendo em vista a Segunda Guerra Mundial, o estúdio decidiu por adaptar a fábula Chicken Little, um conto folclórico europeu de séculos que conta a história de um galinho que acredita que o céu está caindo após uma avelã cair em sua cabeça, e com sua história, contagia todos os outros animais que encontra a entrarem em um desespero histérico. Em sua versão da história, Walt Disney decidiu por criar uma parábola que espelhasse a maneira com que tendências fascistas penetram uma sociedade aparentemente perfeita e a levam para sua ruína. Então, Chicken Little é um galinho ingênuo e jovem que vive em uma fazenda, uma sociedade perfeitamente funcional, ainda que datada e conservadora; temos os galos burgueses da alta sociedade, as galinhas donas de casa, os patos vagabundos que passam seus dias enchendo a cara no bar, e etc.. Tudo está como deve estar, até que uma raposa, que vê a fazenda por um buraco da cerca que a protege, com fome, decide tentar comer estes animais, mas sabe que ela não pode simplesmente invadir o lugar, com medo da represália da espingarda do fazendeiro, então decide ir pelo caminho mais seguro, ainda que mais difícil; manipular estes animais e fazê-los vir até a ela. Ela lê um livro cujo título é simplesmente ‘Psicologia’ (originalmente, seria Mein Kampf, de Hitler, mas os animadores mudaram, não querendo datar o curta para além do contexto da guerra) e descobre que a melhor maneira de fazer isso é manipular o ser mais ingênuo e tolo daquela sociedade, e usá-lo como marionete para espalhar seus objetivos pela mesma. A raposa convence Chicken Little de que o céu está caindo, ele espalha a informação para os demais animais da fazenda, assim criando uma histeria coletiva que faz com que os animais passem a questionar-se sobre sua própria segurança e sobre a funcionalidade de sua outrora tão funcional comunidade, e utiliza deste desespero para atraí-los para sua armadilha, os convencendo de que estarão seguros em sua caverna, onde devora a todos.

Então, no final, nós não ficamos com um felizes para sempre e sim com a raposa limpando seus dentes com os ossos restantes de suas presas, um encerramento extremamente desconfortável e macabro para um filme da Disney, assim como com uma perfeitamente exposta mensagem sobre os males que aguardam quem quer que acredite piamente em qualquer boato que ouvir, pintando uma aterradora imagem de como ninguém está acima de ser impermeado pela ideologia fascista, e como a mesma acha o mais pequeno buraco e insegurança para penetrar-se em qualquer ecossistema, e destruí-lo no processo (uma mensagem dolorosamente atual para o contexto em que estamos vivendo) — tudo isso de forma bastante lúdica, prática e acessível, com um linguajar típico de desenho animado,e em apenas oito minutos. O Chicken Little de 1943 é um perfeito retrato das crenças de Walt Disney de que animações poderiam, e deveriam, ser mais do que meros produtos inconsequentes e superficiais feitos apenas para ocupar a atenção de crianças por poucos minutos, e eram sobretudo uma forma de arte legítima, capaz de dialogar com qualquer tipo de público.

Cortamos para sessenta e dois anos depois, e vemos a Disney, agora sob o comando de Michael Eisner, testar suas habilidades de adaptação e contação de histórias em cima da fábula de Chicken Little novamente, desta vez como um longa-metragem cinematográfico, que viria para marcar uma nova era dentro do departamento animado da Disney, sendo este o primeiro filme do estúdio a ser inteiramente realizado em CGI, após a animação tradicional ser inteiramente descartada graças a uma série de fracassos financeiros e um entendimento geral de que o público simplesmente não estava mais respondendo para animações em 2D, e a animação computadorizada veio para ficar. Como o estúdio seguiu seu curta-metragem extremamente eficiente em sua mensagem e surpreendentemente maduro em sua narrativa, você me pergunta? Bem… com um filme completamente bagunçado e sem foco nenhum, que troca uma narrativa coerente e personagens gostáveis por piadas preguiçosas e sufocantes de referências à cultura pop, em um desespero para copiar o estilo modernoso e autorreferencial das animações que a DreamWorks fazia na época, em que Chicken Little não mais acredita que o céu está caindo graças a um mal entendido, ajudando a espalhar o desespero pelo restante da população, em uma narrativa cuja mensagem deveria passar o malefício de boatos infundados, e sim tem suas crenças validadas, quando se é descoberto que o céu está realmente caindo, graças à uma invasão alienígena (?).

Pois é, desnecessário dizer que a tão sonhada oportunidade de Eisner de passar a faca definitivamente na animação tradicional e migrar o estúdio animado da companhia para o CGI não trouxe os louros esperados. Quer dizer, o filme foi um sucesso moderado de bilheteria, trazendo de volta 314 milhões, para o seu orçamento de 150 milhões, mas eu tenho minhas dúvidas se mesmo para uma mente tão corporativa e capitalista quanto a de Michael Eisner isto tenha valido a pena, quando o filme foi totalmente desprezado pela crítica, sendo até hoje a animação da Disney mais mal avaliada, servindo apenas para afundar a reputação do estúdio ainda mais fundo na lama em que se encontrava — ainda mais considerando que este filme foi o sucessor direto de Nem que a Vaca Tussa, dois dos filmes mais popularmente considerados como sendo os piores que a casa do Mickey Mouse já ofereceu em seus noventa anos de história. Assim como o filme das vacas, este é um filme que a Disney desesperadamente tenta apagar da mente do público, tendo varrido sua existência para debaixo do tapete e não promovendo sua imagem em nenhum lugar, e não sem motivo.

Ao menos, a existência de Chicken Little serviu para ensinar Michael Eisner de uma vez por todas que os problemas com as animações atuais da Disney não eram a técnica utilizada para realizá-las, ou ao menos não totalmente, e sim suas qualidades cada vez mais precárias e duvidosas, vítimas de um regime que cada vez mais alienava e sugava a criatividade e a energia dos animadores, com uma interferência executiva que crescia cada vez mais à medida que Eisner tentava manipular estes novos filmes para que eles se fechassem da maneira mais comercial possível, ao invés de dar liberdade aos animadores e roteiristas para criar suas histórias de forma orgânica e de maneira que refletisse o que de fato eles queriam contar, e não o que Eisner acreditava que as crianças queriam ver. Eisner poderia mudar a técnica empregada nas animações da Disney o quanto ele quisesse, mas nada de qualidade conseguiria florescer em cima daquele ecossistema tóxico e anti-criativo que o mesmo havia construído ao redor da companhia, e sobretudo do departamento animado, e Chicken Little prova isso, sendo possivelmente o filme do estúdio mais abertamente engessado em sua tentativa de recriar uma fórmula, a fórmula das animações descoladas da DreamWorks, que eram o que atraíam as crianças para os cinemas da época, ao invés de ter sido feito visando de fato contar uma história digna e que se sustente por conta própria ao público.

Não importa o quanto Eisner tentasse reverter a situação indigna em que as animações da Disney se encontravam, nada iria mudar a não ser que ele passasse a respeitar as animações como uma forma de arte digna, mais do que como uma máquina de fazer dinheiro, ou ao menos colocasse o departamento nas mãos de pessoas que valorizassem o caráter criativo do mesmo — mas isto não iria acontecer. A principal representação do descaso com que Eisner via as animações dentro da Disney estava em sua nomeação de David Stainton como o chefe do departamento animado, em 2003. Stainton era o chefe do departamento televisivo da Disney, e era ele o responsável por chefiar todas as sequências diretas para DVD que o estúdio cuspia diariamente no começo dos anos 2000. Tais sequências são possivelmente a faceta mais corporativa, caça-níquel e puramente capitalista que a Disney já possuiu (e olha que a competição é extensa); sem nenhum tipo de integridade artística ou respeito pelos filmes originais, tais obras eram realizadas de forma rápida e com baixíssimo orçamento, quase que no piloto automático, e cuspidas para as prateleiras das lojas, torcendo para que as crianças vissem seus personagens favoritos nas capas e comprassem, independente da qualidade. Além de serem a definição de “cinema fast-food”, as sequências também simbolizavam perfeitamente o descaso com que Eisner via essas animações; sem nenhum respeito pelo caráter artístico das mesmas, e até pelo peso histórico que o estúdio animado da Disney simbolizava, para a companhia e para a indústria animada no geral. Vendo que esses filmes preguiçosos e genéricos eram a única vertente animada da Disney fazendo dinheiro, Eisner chamou Stainton para chefiar o departamento animado geral da Disney, e o mesmo deu o mesmo tratamento à tal que dava para as sequências — sem nenhum respeito pelo caráter artístico e histórico do estúdio mais antigo e de maior renome de toda a companhia, e o vendo apenas como uma máquina de vendas automáticas, onde, no apertar de um botão, um produto estaria pronto para ser consumido. Não é à toa que filmes como Nem que a Vaca Tussa e Chicken Little são muito mais parecidos em qualidade com essas sequências preguiçosas para DVD do que para filmes como O Rei Leão e A Bela e a Fera. Foi também durante a regência de Stainton que o departamento animado começou a se desintegrar, com diversas demissões e o fechamento dos estúdios satélites em Paris e em Orlando, enquanto Eisner preparava o terreno para se desfazer de todos os resquícios da animação tradicional que estava sendo feita pela Disney desde a concepção do Mickey, e instaurar o CGI sem nenhum apreço ou remorso.

Com tudo isso, não me admira que muitos dos animadores se voltaram contra Eisner quando Roy E. Disney deixou a companhia para lançar uma petição que pedia que Michael fosse exonerado de seu cargo, alegando a posição anti-criativa que ele tomava para com o departamento. Muitos animadores também se demitiram durante este período, graças as políticas controladoras e puramente executivas com que Eisner e Stainton regiam as animações dentro da Disney, sobretudo Mark Dindal, o diretor deste filme, que saiu da companhia um ano depois de seu lançamento.

E, já que chegamos neste ponto; Mark Dindal, eu sinto muito por você. Dindal, até este ponto, era um animador que possuía alguns sucessos moderados sob sua direção; Gatos Não Sabem Dançar, da Warner Bros., e A Nova Onda do Imperador, da própria Disney, ambos filmes que bem-sucedidamente rejeitavam a roupagem mais sofisticada dos musicais que a Disney era conhecida por fazer na época e abraçavam um maior senso de exagero e de ridículo, típicos dos desenhos animados. Mas Chicken Little completamente manchou a reputação do mesmo, de forma que desde que saiu da Disney em 2006, Dindal não realizou mais nenhum trabalho de grande porte, e meio que sumiu do mapa, o que é uma pena, especialmente considerando que Chicken Little foi uma ideia que partiu do mesmo, ainda que bastante diferente da bagunça que acabou se tornando; em sua versão, o galinho protagonista seria fêmea, e ela seria uma personagem nervosa que sofreria de ansiedade e teria problemas em seu relacionamento com seu pai, com a história seguindo a mesma tentando se adaptar à uma colônia de férias. Mas então, Eisner e Stainton se envolveram, e decidiram que o filme não era engraçado o suficiente, assim mudando o gênero do personagem principal para o masculino e a narrativa para uma envolvendo invasões alienígenas — e o resultado todos nós sabemos muito bem qual foi.

Com o filme sendo uma comédia, faria ainda mais sentido manter Dindal na direção, certo? Já que seus dois outros filmes também eram comédias assumidas, ele seria o nome ideal para tirar isso de letra. E, bem, eu consigo ver a lógica por trás disso, mas ainda assim, Chicken Little é suficientemente afastado dos outros dois trabalhos do animador para as coisas saírem de seu controle, e, de fato, elas saíram. Primeiro comecemos pela diferença óbvia: o CGI. Chicken Little foi o primeiro filme da Disney a ser inteiramente realizado em CGI, e isto é perceptível por toda a sua estética, que está anos luz atrás do que a Pixar já conseguia realizar no mesmo período com a mesma técnica, e grita ter sido feita por pessoas não tão confortáveis assim com a mesma (o que faz sentido, considerando que a imensa maioria dos animadores da Disney eram animadores tradicionais que foram quase que forçados pela parte executiva da companhia a se adaptar à nova tecnologia). Mas o problema não chega nem a ser apenas a falta de familiaridade e de técnica dos animadores com o que eles estavam trabalhando, como também o fato de os dois primeiros filmes de Dindal estarem intrinsecamente atrelados ao 2D, de forma que eles não poderiam ter sido feitos de nenhuma outra forma. Tanto A Nova Onda do Imperador, quanto, especialmente, Gatos Não Sabem Dançar prestam homenagem e pegam diversas deixas aos desenhos clássicos dos anos quarenta, como os do Coiote com o Papa-Léguas, com seu senso de humor escrachado, exagerado e hiperativo, lotado de piadas físicas dinâmicas e jocosas feitas para serem realizadas com a animação tradicional, então, imediatamente, já existe um maior afastamento do repertório de Dindal, que respiravam e cresciam em cima da animação tradicional, com o projeto com o qual estava encarregado, que, não importa o quanto tentasse, seria extremamente difícil de recriar todo o exagero e fluidez de movimentos do 2D, especialmente com uma equipe ainda incerta que não havia totalmente dominado a nova técnica ainda.

Além da técnica no entanto, nem a maior aptidão de Dindal para a comédia conseguiria salvar o material tão sem graça, pouco imaginativo e imediatamente datado que lhe deram para trabalhar. Mais uma vez, que nem eu fiz com Nem que a Vaca Tussa, eu me vejo na posição de comparar a comédia em Chicken Little com a de um dos filmes mais engraçados que a Disney já realizou, A Nova Onda do Imperador, já que ambos os filmes queriam ser comédias, e até tentaram seguir os passos de Imperador, com este segundo filme até possuindo o mesmo diretor daquela obra, mas sem o entendimento do que fez tal filme funcionar; não apenas falta em Chicken Little a essência mais cartunesca e caricata dos desenhos animados clássicos que este outro filme possuía, o que já cobri no parágrafo anterior, mas a ideia do que se passa por comedia em ambos os filmes não poderiam ser mais distintas. Imperador era engraçado porque o texto era afiado, possuindo sacadas criativas e bem boladas que eram cuspidas ao público minuto após minuto, e a dinâmica dos personagens era bem construída, dando a liberdade para que suas diferentes personalidades se chocassem, dando liberdade para mais momentos cômicos, que, assim como o filme, eram sempre lotados de personalidade e refrescantes, sendo o filme uma abordagem mais solta e desapegada do que os musicais da Renascença disneyana dos quais o público estava saturado na época, portanto mais livre e original, não estando desesperadamente copiar uma fórmula de outros filmes de sucesso para cativar a audiência. Diferente de Imperador, que realmente passou pelo esforço de construir situações e personagens engraçados para contar suas piadas de forma satisfatória, Chicken Little é extremamente preguiçoso com sua comédia; a ideia de o que passa por humor neste filme é só cuspir o máximo de referências a outros filmes e elementos da cultura popular para o público, esperando que ele compreenda o que está sendo referenciado e solte um sorriso, ao invés de construir uma identidade própria para o filme (como uma cena de mais de minuto em que dois personagens cantam uma música das Spice Girls em um karaokê). O filme não tenta nem um pouco se esforçar para conseguir arrancar risadas do público, e ao invés só vai tacando milhões de referências a outros produtos da cultura popular, tentando espelhar as animações que estavam populares na época, sendo todo o filme uma experiência bastante humilhante uma vez que você reflete sobre o mesmo — Chicken Little é a Disney completamente despida de qualquer credibilidade, implorando por relevância ao tentar copiar a sua maior rival dentro da indústria animada; a DreamWorks, fundada por ninguém menos que o ex-chefe dos estúdios Disney, Jeffrey Katzenberg, que saiu da companhia de forma não amigável, e fundou seu próprio estúdio de animação em partes para se vingar da Disney.

E, bem, funcionou. Pulamos para dez anos depois de Katzenberg deixar a casa do Mickey Mouse e nós temos a outrora onipotente Disney, com suas animações que cresciam mais e mais populares durante a década de noventa, com seu nome na lama, lutando para se manter um nome a ser levado a sério, e precisando copiar a estratégia que Katzenberg empregava em seus filmes para prender a atenção do público; isto é, uma fórmula cínica e irônica, com o emprego de piadas escatológicas e um humor mais autorreferencial e que se recusa a se levar a sério, vestindo uma roupagem descolada e modernosa, diferente dos filmes mais formais e lúdicos que a própria Disney fazia. Este modelo de se fazer animação se popularizou com Shrek, que agradou ambas crianças e adultos em sua abordagem mais irônica do que a dos contos de fadas disneyanos, mas já estava se mostrando engessado quando Chicken Little chegou nos cinemas — quer dizer, esta abordagem de animações modernosas que tentam se manter descoladas e relevantes ao referenciarem o máximo de elementos da cultura popular possível e que se utilizam de uma pegada mais irônica de se fazer humor ainda existe até hoje em Hollywood, mas quando 2005 chegou, ela já não era mais vista como uma forma ousada e inovadora de se fazer cinema animado, como era quando Shrek chegou aos cinemas, e já estava em um processo de engessamento, passando a ser vista como previsível e preguiçosa (O Espanta Tubarões, por exemplo, filme de 2004 lançado pela DreamWorks também na veia de Shrek, nem de longe encontrou o mesmo sucesso que os dois primeiros filmes do ogro, com o público e a crítica sendo mais frios em relação a ele, mostrando que essa abordagem do mundo animado pós-contos de fadas já haviam perdido seu impacto). Eu gosto de acreditar que foi Chicken Little que matou de vez a credibilidade desta forma de se fazer cinema animado — precisou da Disney, o maior alvo dos filmes modernosos e irônicos da DreamWorks, tentar desesperadamente recriar o estilo dos próprios filmes que a criticavam em uma tentativa cínica de manter a atenção do público independente de qualquer qualidade, para o público ver o quão preguiçoso e desesperado era esta tentativa de alheiamente cuspir referências da cultura popular apenas para se manter atual. E Chicken Little, sob muitos aspectos, é um dos filmes mais desesperados e preguiçosos que a Disney já vez, chegando ao ponto de até ser triste de se acompanhar; nós vemos a Disney, outrora um titã dentro da indústria animada, cujo qual todos s outros nomes dentro do meio da animação aspiravam para poder alcançar, despida de qualquer tipo de dignidade, com suas fragilidades expostas para qualquer um ver, enquanto ela tenta de todas as maneiras continuar relevante em um mercado que mudou drasticamente desde seu período no topo do mesmo. Mas é ainda mais frustrante o fato de a Disney, ao decidir copiar a fórmula de algum estúdio que estava lhe vencendo em popularidade na época, escolher justamente a DreamWorks, sua rival, ao invés da Pixar, estúdio cujo os filmes era a própria casa do Mickey Mouse que distribuía, e que encantava tanto os adultos quanto as crianças com suas histórias emocionalmente maduras e mais rebuscadas. Mas claro que desenvolver uma narrativa envolvente com personagens humanizados cujos dramas são tangíveis e demandam a empatia e o investimento do público e muito difícil — não, vamos apenas colocar uma cena aleatória em que os personagens cantam uma música pop e acabar logo com isso, as crianças vão adorar! É bastante notável, no entanto, que os dois únicos momentos em que eu cheguei a esboçar um mínimo sorriso assistindo a este filme foram com piadas que não desavergonhadamente tentavam referenciar elementos da cultura popular, e sim que surgiram da interação entre os personagens.

Mas, mesmo assim, eu não sei se o filme poderia ser salvo se as piadas autorreferenciais e de quebra de quarta parede fossem substituídas por momentos cômicos que surgissem da interação entre os personagens, porque isto nos leva a outro grande problema do filme; os personagens são detestáveis. Eu não acho que há outro filme da Disney com um elenco de personagens mais abominável e intragável do que este (sim, nem mesmo Nem que a Vaca Tussa). Aliás, permitam-me corrigir o que eu disse anteriormente; há piadas e momentos cômicos em Chicken Little que não surgem de referências preguiçosas à cultura popular e sim de interações entre os personagens, mas a imensa maioria deles não funciona porque são apenas uma maneira para que estes personagens apenas ilustrem o quão perversos e mesquinhos eles podem ser, sobretudo com o protagonista, Chicken Little. Chicken Little, vocês devem lembrar, é o nosso protagonista, e o filme se abre com ele alertando toda a cidade de que o céu está caindo, criando caos e confusão, apenas para depois ser descoberto que o garoto provavelmente se confundiu quando uma avelã caiu em sua cabeça, gerando estresse e destruição desnecessária. Um ano se passa, e Chicken Little ainda é a piada da cidade graças àquela ocasião, e todos os outros personagens, com a exceção de seu grupo de amigos da escola, existe apenas para fazer chacota do mesmo e transformar de sua vida um inferno na Terra — não são apenas as crianças da escola que implicam com o galinho, no entanto, mas todas as pessoas da cidade, as crianças, os adultos, os professores, até o prefeito da cidade, todos tratam Chicken Little como um pedaço de lixo, e o filme vai cuspindo o personagem de situação indigna para situação indigna, nunca lhe dando um descanso, criando uma atmosfera não só cansativa, mas bastante tóxica e cruel para um filme infantil.

Chicken Little não é o primeiro filme da Disney que coloca seu protagonista em uma posição de adversidade apenas para mostrá-lo superando ao longo da história; Dumbo, Cinderela, O Corcunda de Notre Dame, todos estes filmes seguem mais ou menos este mesmo arquétipo narrativo. Mas O Galinho Chicken Little é o único desses filmes que pinta a maneira injusta com que o personagem é tratado pelas outras figuras da história, e todas as adversidades e situações indignas que ele enfrenta, como piada — ao invés de tentar construir a empatia do público em cima de seu protagonista e mostrar as coisas que acontecem com Chicken Little como situações injustas e descabidas, o filme espera que nós ríamos da maneira grosseira e humilhante com que os outros personagens tratam o galinho. A cidade inteira, incluindo os adultos, tratam essa criança com total desprezo e sem qualquer resquício de humanidade, e o filme pinta isso como uma grande piada. Me desculpem vocês, mas eu não consigo me sentir confortável com isso, ainda mais levando em conta que o público alvo deste filme é o infantil — o que as crianças vão tirar de um filme tão perverso assim? Tomemos Dumbo como um exemplo; este era outro filme em que o protagonista tem que enfrentar todo o tipo de humilhação e indignidade ao longo da história, mas o filme deixava claro que a maneira com que os outros personagens tratavam o elefante era errada, assim construindo a mensagem de empatia e respeito as diferenças que a obra quer passar. Não apenas todos os personagens que maltratam Dumbo ao longo da história são claramente os antagonistas, ao contrário de Chicken Little, onde toda a cidade é cruel com ele, mas apenas a Raposa Rosa, a raposa da história original que agora é uma colega de turma do galinho, que faz bullying com ele, é claramente pintada como vilã, apesar de todo o resto do elenco ser malvado e perverso, mas o filme também trata as adversidades de Dumbo com bastante tato e humanidade, fazendo certeza que nós sintamos na pele pelo o que ele está passando e compreendamos a sua dor, enquanto que em Chicken Little tudo não passa de uma grande piada. Não importa o quanto o filme jogue em direção ao galinho, o quanto ele faça o personagem sofrer, e tudo em nome do humor. Além disso, Dumbo também sabia dosar seus momentos mais indignos e tristes com pequenas vitórias para o seu personagem principal, ele tinha amigos que o ajudavam em sua jornada, ele tinha momentos para respirar de toda a indignidade que enfrenta, mas Chicken Little simplesmente não para; ele sufoca o público com a quantidade de cenas em que o protagonista é tratado de forma humilhante, ficando extremamente repetitivo e cansativo de se acompanhar.

O único ponto positivo que eu daria a Chicken Little é que, assim como em Dumbo, ao menos ele tem um pouco de suporte emocional na forma de seu grupo de amigos (Hebe Marreca, Raspa do Tacho e Peixe Fora D’água), e alguém durante o filme que não o trate feito lixo e lhe dê a oportunidade de respirar em meio às indignações que sofre. É interessante ver esse grupo de amigos se apoiando e estando lá um para o outro independente de qualquer coisa, sendo as cenas em que eles ajudam Chicken Little a enfrentar seus problemas as únicas do filme que não são cercadas pela atmosfera mesquinha e perversa que consome todo o restante da obra, e, portanto, é uma pena que o filme trate estes personagens de maneira tão indigna quanto ele trata o próprio Chicken Little, e utiliza de todos eles como uma piada ambulante das quais o espectador deve rir. É difícil se importar com o laço de amizade destes personagens e se sentir investidos pelos mesmos quando o próprio filme não lhes trata com um pingo de humanidade. Por exemplo, Hebe Marreca, a pata amiga de Chicken Little; ela poderia ser uma personagem interessante — não apenas ela é a personagem mais gentil e amigável para com o protagonista, se sensibilizando com seus problemas e tentando ajudá-lo a superá-los, como ela é a voz da sensatez durante a maior parte do filme, sendo o único personagem que age de maneira racional, e como uma pessoa de fato agiria na vida real, ao invés de ser um arquétipo de uma nota só que vira uma piada ambulante no decorrer da história. Mas, infelizmente, ainda assim o filme a trata como uma piada, nunca lhe dando a chance de ser humanizada, mesmo que seu papel na história seja o mais digno — o filme ainda assim sente a necessidade de constantemente voltar para piadas sobre o quão feia ela é. Sim, este é o único material que os roteiristas ou os animadores ou quem quer que tenha sido responsável por esta bagunça em formato de filme parecem ter para a personagem; piadas sobre sua feiura, e a obra se recusa a deixar essa piada morrer, mesmo em momentos que deveriam ser sérios — eu entendo que é uma referência a O Patinho Feio, mas mesmo assim não deixa de ser uma piada de muito mal gosto, e extremamente básica e pouco criativa. para se fazer, e o filme simplesmente não a deixa morrer (Ha, ha, a personagem é feia — você entendeu?! É engraçado porque ela é feia!!!). No fim, o personagem simplesmente retira o resquício de dignidade que Hebe tinha, sendo ela a voz da razão dentro da história mesmo com a obra fazendo o possível para diminuí-la com cada cena, ao transformá-la no mero par romântico de Chicken Little, mesmo tal relacionamento nunca tendo sido sequer ensaiado tal relacionamento antes de seus dez minutos finais, mas claro que como ela era a única personagem feminina da história, ela tinha que ser o par romântico do protagonista, eles não podiam simplesmente se manter amigos, isto não faria nenhum sentido! A partir de então, a personagem abandona toda a sua caracterização como sendo a única pessoa racional dentro da história para virar uma menininha idiota apaixonada que passa o resto do filme suspirando de forma tola.

Seja lá as maneiras que o filme encontre para diminuir a personagem de Hebe, no entanto, elas não são tão ruins quanto as que ele usa para pintar Raspa do Tacho, o porco obeso amigo de Chicken Little. Se com Hebe a piada era que ela era feia, e isto era engraçado, Raspa do Tacho vira o personagem gordo cujo toda cena em que aparece é para ilustrar o quão idiota e afobado ele é, por ser gordo. Esta é a única piada que o filme tem para o mesmo, o quão fora de forma ele é, estando constantemente entrando em trapalhadas e em situações indignas graças a seu peso. Aliás não, esqueçam o que eu falei, Raspa do Tacho não é apenas um estereótipo gordo; o filme também consegue fazer dele um estereótipo gay. Pois é, Chicken Little não tão sutilmente assim adere ao personagem trejeitos e estereótipos típicos de homossexuais, com ele sendo uma figura afeminada, estando constantemente entrando em ataques de pânico e com medo de qualquer coisa que apareça em seu caminho, além de constantemente cantar músicas pop como Stayin’ Alive e I Will Survive e fazer referências à Barbra Streissand. Eu ouvi pessoas dizerem que isto é algo positivo, pois significa que ele é o primeiro personagem de uma animação infantil a ser abertamente homossexual, mas aí é que está; primeiramente que ele não é ‘abertamente’ nada, o filme apenas adere ao personagem diversos estereótipos que fariam o público associá-lo como gay, e o faz apenas como piada. A possível sexualidade de Raspa do Tacho, assim como os seus amigos, nunca é tratada com o mínimo de dignidade, e está lá apenas para fazer do mesmo de chacota durante o filme, e aderir a ele mais motivos para que o público possa rir de seus trejeitos.

Perdido no meio de Hebe e de Raspa está Peixe Fora D’água, que, dos três, é o que é pintado com maior dignidade, possivelmente porque ele não fala, então o filme não possui tanta liberdade de fazer do mesmo um estereótipo ambulante tanto quanto os outros, mas isto não significa que ele não vá tentar. Se a pata era feia, e o porco era gordo e gay, o peixe é simplesmente um idiota, só servindo de alívio cômico, com a obra se utilizando do fato de que ele não fala e apenas gesticula para fazer graça de seus trejeitos e colocá-lo para agir de maneira estúpida e descuidada, estando ali apenas para que os outros personagens possam rir do mesmo e nunca desenvolvendo uma conexão verdadeira com nenhum deles.

Seja lá o quão negativamente o filme pintar os amigos de Chicken Little, no entanto, nada que ele consiga fazer com os mesmos é tão terrível quanto o que ele faz com Pedro Galo, o pai de Chicken Little, e de longe o personagem mais detestável e desprezível de toda a obra — e olha que a competição é extensa. O que faz de Pedro tão ruim, no entanto, não é o fato de ele ser uma figura detestável, mas sim o fato de que ele supostamente não deveria ser. Ao invés, o filme tenta pintar Pedro como uma figura digna de empatia, em sua dificuldade de se comunicar e estabelecer uma relação carinhosa com seu filho, que fracassa tremendamente. O cerne emocional de O Galinho Chicken Little está na relação entre o pai e o filho; a mãe de Chicken Little, segundo o próprio filme dá a entender, faleceu, deixando apenas os dois para trás, e agora nenhum dos dois se sente confortável um com o outro e sabe como estabelecer uma relação — Chicken Little quer orgulhar seu pai por sentir que o mesmo sente vergonha dele após o incidente do céu estar caindo, e Pedro não sabe como se expressar para Little e fazer com que o mesmo saiba de seus verdadeiros sentimentos de apreciação por seu filho.

Mas aí é que está o problema; durante todo o filme, nunca fica claro para o público que o problema entre Chicken Little e seu pai é falta de comunicação entre as duas partes e que eles não sabem se expressar um para o outro, que é o que a história quer passar, mas sim que, de fato, Pedro morre de vergonha de seu filho, valorizando mais sua própria imagem e dignidade do que o bem estar de seu filho, e se mostrando tão hostil e maldoso para com Little quanto o restante da cidade, sempre o diminuindo e nunca o levando a sério — o que é pior ainda, considerando que é do pai de Chicken Little que estamos falando, a pessoa que deveria servir de suporte emocional para o garoto, que deveria o amar acima de tudo. E o que ele faz quando o galinho avisa a cidade de que o céu está caindo no começo do filme? Ao invés de tentar amenizar ou contornar a situação para que ela fique menos humilhante para o garoto quando ninguém acredita em seu relato, o galo simplesmente é o primeiro a desmerecer e ridicularizar o seu próprio filho, claramente preocupado com o que um “vexame” como aquele fará com sua imagem, mais do que o impacto que terá com o galinho. Quando o filme pula um ano, e nós vemos que a cidade agora trata Chicken Little de forma hostil e humilhante, o que Pedro faz? Ele tenta defender seu filho e apoiá-lo? Não, ele continua claramente o negligenciando e se mostrando envergonhado do mesmo de forma passivo agressiva. Toda esta relação tóxica que os dois possuem chega ao seu ápice quando Chicken Little, em uma tentativa de orgulhar seu pai, o informa que se inscreverá para o time de beisebol da escola, jogo que o galo mais velho jogava na juventude, e, ao invés de apoiar seu filho, Pedro ativamente tenta desmotivá-lo a jogar, praticamente dizendo ao garoto que ele não é bom o suficiente para jogar beisebol, e deveria tentar outra coisa. O único momento do filme em que Pedro demonstra qualquer espécie de sentimento positivo em relação à Chicken Little antes da reta final da história é quando o galinho vai jogar beisebol, e acaba ganhando o jogo, coincidentemente o momento eu que a cidade para de tratá-lo de maneira hostil e é gentil com ele pela primeira vez. Ou seja, o amor de Pedro por Chicken Little não é incondicional, como deveria ser, e ele não está lá para o garoto independente de qualquer coisa — ele só é gentil e amigável com seu filho até o momento em que ele lhe trás orgulho, e não mancha sua imagem. Quando Chicken Little volta a sentir o céu caindo em sua cabeça, e desta vez descobre que é o pedaço de uma nave alienígena, mais uma vez correndo para avisar a cidade apenas para que quando a mesma chegasse no local, nenhuma evidência restasse, o que Pedro faz? Aprende alguma coisa com o jogo de beisebol de cenas atrás onde pela primeira vez verdadeiramente tentou se conectar e demonstrar carinho ao seu filho? Não, ao invés, ele volta a pôr sua reputação acima do bem estar de Chicken Little, mais uma vez se mostrando abertamente envergonhado do mesmo, não lhe demonstrando apoio, e deixando que o restante da cidade hostilize seu filho livremente.

A relação de Chicken Little com seu pai é tão tóxica e desconfortável de se acompanhar, que chega ao ponto em que, ao invés de eu torcer para que os dois personagens se entendam no final da história, que é o tipo de sentimento que o filme tenta despertar no público, eu só quero que Chicken Little se liberte de qualquer desejo que tenha a respeito de orgulhar seu pai, e o mande-o para bem longe de sua vida, porque não há nenhum traço que redima Pedro. Não importa o quanto o filme tente contornar a situação, a versão final do personagem é um patife que não tem o menor respeito pelo próprio filho e que valoriza a sua própria reputação acima do bem estar e da sanidade da criança. Além disso, nós somos forçados a acompanhar Chicken Little desesperadamente tentar ganhar a aprovação e o carinho de um ser que claramente não está nem aí para ele, o que é ainda mais dolorido e de partir o coração do que ver o restante da cidade o hostilizá-lo, porque ao menos os outros personagens são abertos quanto ao seu desprezo pelo protagonista, enquanto que Pedro apenas o trata de forma passivo-agressiva e faz o menino acreditar que há uma chance de orgulhá-lo, quando, claramente, não há. Pedro é um ser tão detestável ao longo do filme que quando a obra tenta resolver o problema com ele e Chicken Little no terceiro ato, os colocando para finalmente dialogar abertamente um com o outro, eu não acredito que haja sequer a possibilidade desta mudança, porque o filme deixa bem claro para o público de que o problema do pai não era sua dificuldade de se comunicar com o filho, e sim seu total desprezo e negligência pelo garoto, e, novamente, o único final feliz que eu veria para Chicken Little nessa situação era saindo de bem longe das garras de seu pai e vivendo livre da presença tóxica do mesmo em sua vida.

As coisas em Chicken Little chegam a ser tão desconfortáveis e maléficas a medida que o filme vai colocando o protagonista em situações mais e mais humilhantes sem qualquer tipo de redenção e apoio emocional que eu chego a me questionar se ele é um filme próprio pra crianças ou não. O que uma criança tiraria de um filme tão negativo assim? Qual o impacto que um filme em que o protagonista é constantemente humilhado e hostilizado, sem receber nem sequer o apoio de seu pai para enfrentar essas situações, onde personagens adultos abertamente se sentem livres para tratar uma criança feito lixo, teria em alguém desta faixa etária? Claro que eu assisti esse filme durante a infância e, que eu saiba, ele não teve qualquer tipo de impacto mais corpóreo na minha formação, e eu normalmente não me prendo muito em se uma animação é ou não é própria para crianças e se elas poderiam causar algum tipo de malefício nas mesmas porque eu acredito que crianças são mais espertas do que nós acreditamos que elas são, e não são tão suscetivelmente manipuladas assim; mas ainda assim, este filme é tão cruel, tão perverso, tão mesquinho, que eu não sei se há algo para se tirar daqui a não ser coisas negativas. O Galinho Chicken Little, o que deveria ser uma comédia divertida e descompromissada, é possivelmente o filme da Disney que mais me chocou com o quão cruel ele poderia se tornar em certos momentos, com o quão humilhante as coisas poderiam se tornar para o protagonista, e, ao contrário de filmes como Pinóquio e O Corcunda de Notre Dame, que possuem momentos mais macabros e tensos em si, essa sensação que o filme me causou nunca era proposital. É que o filme é tão mal executado em sua mensagem e no desenvolvimento de seus momentos mais sentimentais, que o que deveria ser uma comédia sobre um garoto e sua tentativa de se reconectar com seu pai, vira uma ilustração macabra e cruel sobre negligência infantil e o quão cruéis as pessoas podem ser — e tudo sempre pintado por um viés cômico e bem humorado, como se nós devêssemos rir de tudo isso. Disney, o que aconteceu? Você era tão boa em construir os seus personagens de forma humanizada, tão boa em construir a relação dos seus personagens de forma tocante e de pintar seus filmes com toques mais emocionais e sentimentais, como você poderia falhar tão estrondosamente ao construir a base emocional deste filme?

Bom, eu não sei porque eu estou surpreso, afinal não dá para esperar muita coerência de um filme tão sem foco e incerto de si mesmo que, do meio pro final, muda completamente de direção, saindo de uma história que conta os dramas diários que Chicken Little enfrenta em seu cotidiano para se tornar em uma ficção científica com extraterrestres que simplesmente cai de paraquedas em cima do que estávamos vendo até então, sem nenhuma sensação de integração de uma história para a outra, com ambos os campos sendo violentamente remendados um no outro para formar o filme. Em um momento nós estamos acompanhando Chicken Little em sua tentativa de impressionar seu pai ao entrar no time de beisebol, e no outro alienígenas estão invadindo a cidade e destruindo tudo o que tocam tentando buscar o seu filho que esqueceram na Terra e que fora adotado por Chicken Little, sem que a palavra beisebol seja sequer citada de ali em diante, quase que como se ninguém soubesse muito bem o que fazer deste filme, e tivessem duas ideias distintas — uma envolvendo um drama familiar e outra uma invasão alienígenas — e simplesmente a equipe responsável pelo projeto colou as duas ideias juntas para apressar um filme.

O fato de o céu realmente ter caído na cabeça de Chicken Little (o céu, neste caso, sendo um pedaço da espaçonave dos ETs) levanta até questões sobre qual exatamente é a mensagem que o filme quer passar. Na história original, e no curta-metragem feito pela Disney nos anos quarenta, a coisa toda gira em torno do céu não estar caindo, e Chicken Little espalhando esta notícia para todos os outros animais, o que os leva a um estado de desespero que acaba, por sua vez, os levando para suas respectivas mortes, servindo justamente para passar a mensagem de que não se deve acreditar em tudo o que se ouve. Mas agora que o céu, de fato, caiu na cabeça de Little, a mensagem é a de que, sim, se deve acreditar em tudo o que se ouve? Mas também, se o filme se atentasse ao desfecho original, isso significaria que a cidade estaria certa ao tratar Little com tanta indignidade, afinal ele começou com boatos que quase destruíram a cidade? Eu realmente acho que deveríamos ter uma discussão profunda sobre quais exatamente eram as intenções de O Galinho Chicken Little (2005), afinal não é como se este fosse um filme completamente preguiçoso e sem qualquer tipo de planejamento, apressado pela Disney para que o estúdio pudesse lançar logo um filme modernoso e cheio de humor irônico e autorreferente nos moldes de Shrek para capitalizar em cima do que estava popular na época e finalmente trazer retornos financeiros pro estúdio, independente de qualidade. Ah, pera…

Como se não bastasse sua narrativa desestruturada, seu senso de humor preguiçoso, seus personagens estereotipados e detestáveis e sua atmosfera surpreendentemente mesquinha e cruel para um filme infantil, Chicken Little também é, possivelmente, o pior filme da Disney esteticamente falando. Isto não é exatamente culpa dos animadores; como citado, este filme foi apressado para os cinemas de forma bagunçada e abrupta graças ao desespero de Michael Eisner por lançar um filme em CGI, acreditando que, independente de qualidade, o segredo estava todo na técnica, e o público iria comer qualquer gororoba que fosse empurrado à eles contanto que esta fosse realizada com animação computadorizada, e o resultado foi que os animadores da Disney, especializados em animação tradicional, não tiveram tempo de se adaptar à nova técnica que estava sendo imposta a eles e aperfeiçoá-la, e o filme saiu da forma datada e pobre que nós conhecemos hoje. O design dos personagens varia entre genérico e feio, as texturas são todas extremamente artificiais e plastificadas, os cenários são tão sem vida e mal detalhados que parecem planos de fundo do Windows, além de a obra toda ser surpreendentemente mal iluminada e finalizada, parecendo ainda estar em processo de pós-produção, e hoje se assemelhando à gráficos de algum vídeo game de quinze anos atrás. Assim como em Nem que a Vaca Tussa, eu reconheço que, comparado com a cena animada mundial, a animação em Chicken Little ainda pode ser considerada boa, decente, passável. Mas é da Disney que estamos falando, um estúdio multimilionário que fez sua fama e seu dinheiro em cima de animações caprichadas e belíssimas — eles podem fazer melhor do que isso, como já provaram milhões de vezes, e bom o suficiente, simplesmente, não é o suficiente.

O Galinho Chicken Little, sob muitos aspectos, já era um filme fadado ao fracasso. Claro que a megalomania e sede por retornos financeiros de Eisner iriam entrar como obstáculo no meio do primeiro filme animado em CGI da Disney, não importa este qual fosse. Eisner estava tão sedento por se livrar logo da animação tradicional e empregar de vez o CGI dentro do estúdio, sem qualquer entendimento sobre o que faz de fato uma boa animação, e vendo a situação toda por lentes binaristas e imediatistas que diziam que tradicional = fracasso e CGI = sucesso, que ele jamais daria tempo para que os animadores aperfeiçoassem suas técnicas e decidissem um rumo definido para a história, ao invés apressando a primeira coisa que saísse deles direto para os cinemas em seu desespero para confirmar de sua teoria de que CGI era o futuro, e se livrar de uma vez por todas dos fracassos impregnados na Disney graças às suas ultimas tentativas de realizar animações em 2D.

A empreitada meio que deu certo — como citado, o filme foi um sucesso moderado e fez mais dinheiro que todas as animações que a Disney vinha lançando desde Dinossauro, em 2000 — mas a que custo? O filme é até hoje considerado uma das obras mais vergonhosas e de menor qualidade que o estúdio já fez, com o mesmo o escondendo à sete chaves, simbolizando o mais fundo que a casa de animação já caiu em toda a sua história, e não ajuda o fato de ele ter sido o sucessor direto de Nem que a Vaca Tussa, o outro filme que também é visto como o pior que a Disney já ofereceu. O fato de o estúdio ter lançado seus dois piores filmes um ao lado do outro ajuda a ilustrar perfeitamente o quão infames os últimos anos de Michael Eisner no comando da companhia foram. Eu particularmente considero Galinho Chicken Little como sendo minimamente superior a Nem que a Vaca Tussa, porque ao menos eu consigo sentir um direcionamento para ele, consigo compreender o que os animadores queriam fazer com o filme; no caso, fazer um filme modernoso e descolado, com muita piada de quebra parede e um senso de humor irônico e cínico, alá as obras da DreamWorks, o que, obviamente, não foi nem de longe uma decisão acertada, mas ao menos eu compreendo o que esses animadores estavam tentando alcançar, enquanto que Nem que a Vaca Tussa é um filme completamente vazio de conteúdo, onde nós podemos sentir perfeitamente os animadores desistindo e apenas fazendo qualquer coisa para acabarem logo com aquilo (o que se torna ainda pior considerando que, por algum tempo, este seria o último filme em 2D da companhia, fechando o legado iniciado oitenta anos antes por Walt Disney).

Mas, independente de qual deles é pior, o fato de as duas obras mais enfadonhas e terríveis que a Disney já ofereceu terem sido lançadas lado a lado só ajudam a definir os anos 2000 como o pior momento da história da Disney. Ao menos nos anos setenta e oitenta havia um motivo para a qualidade de seus filmes estar tão aquém do esperado — o estúdio ainda estava se recuperando da morte de Walt Disney. Até durante os anos quarenta, quando o estúdio parou de fazer longas animados e começou a fazer coletâneas de curtas para salvar dinheiro havia um motivo (no caso, a perda de gastos que suas últimas animações sofreram graças à Segunda Guerra Mundial ter afastado o público dos cinemas). Mas nada justificativa o estado risível em que o estúdio se encontrou durante a primeira década do século XXI. Nada além de uma péssima gestão de Michael Eisner, onde uma lógica anti-criativa imperava e os executivos comandavam o departamento animado do andar de cima, tirando qualquer autonomia dos animadores, e cuspindo filmes preguiçosos e formulaicos em seu desespero por lucro acima de qualquer coisa.

Felizmente, nem os animadores, e nem o público, teriam que aturar tal sofrimento por muito tempo. Após Roy E. Disney sair da companhia de seu tio em 2003, com a gota d’água sendo o fato de Eisner ter lhe deposto de sua posição no conselho como uma forma de forçar a sua aposentadoria, e começado com seu parceiro, Stanley Gold, a campanha Save Disney, para convencer o restante do conselho a votar contra a renomeação de Michael Eisner como CEO da companhia, (a mesmíssima campanha usada pelo próprio Roy para depor Ron Miller e trazer Eisner, Wells e Katzenberg para a Disney nos anos oitenta), Eisner parecia finalmente derrotado. Perdendo grande parte de seu apoio interno, especialmente por parte dos animadores, que quase que unanimemente se aliaram à Roy, Michael anunciou no final de 2005 que não iria renovar seu contrato com a Disney, que acabaria em 2006, e que seu braço direito, Bob Iger, iria substituí-lo como CEO. Aquela foi a porta de entrada para que, enfim, o tão necessitado sangue novo entrasse na Disney para reenergizá-la e reerguê-la novamente, limpando a sujeira que Michael Eisner deixou para trás em sua saída.

Parte de mim fica até com pena do final tão inglorioso que Eisner possuiu em sua jornada com a Disney. Afinal, este foi o homem que estava comandando tudo quando A Pequena Sereia, Aladdin, A Bela e a Fera e O Rei Leão foram lançados. Mas aí eu avanço um pouco mais na lista de filmes da Disney e vejo Nem que a Vaca Tussa e O Galinho Chicken Little… e minha empatia se encerra. Ding, dong, a bruxa está morta — e eu não poderia estar mais feliz quanto a isso.

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