O Homem das Cavernas (2018)

Miguel Serpa
13 min readJul 14, 2018

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De todos os estúdios de maior porte de animação, o Aardman é um dos quais eu mais simpatizo. Seja por suas animações em massinha, seu estilo estético bastante característico, ou suas histórias sempre guiadas pelo humor acima de tudo, há um lugar especial em meu coração para esta casa que teve seu começo com curtas do Wallace e Gromit. Por isso, eu estava feliz em vir acompanhando o seu ressurgimento nos últimos anos. Após um período escasso e infeliz de sua história, o Aardman parecia ter acertado o passo novamente, com Os Piratas Pirados sendo o que eu considero uma das animações mais hilárias desta década, e Shaun, O Carneiro sendo não só igualmente engraçado, como bastante criativo e até um pouco tocante. Assim, eu estava animado para assistir O Homem das Cavernas, a mais nova obra a ser lançada por esta casa de animação inglesa, no minuto em que eu soube de seu lançamento. Minha animação aumentou quando soube que o diretor desta obra seria ninguém menos do que Nick Park, o mesmo dos curtas e do longa de Wallace e Gromit (este segundo que ganhou o Oscar), e de Fuga das Galinhas também. Pois bem, eu finalmente consegui assisti-lo e o resultado foi… Ok.

O Homem das Cavernas (tradução um tanto quanto literal demais de Early Man) conta a história de um povo das cavernas que tem suas terras invadidas por um povo da Idade do Bronze, naturalmente mais “civilizado”, com seus exércitos, suas armaduras de metal e mamutes adestrados para o transporte. Doug, um dos membros dessa tribo invadida, consegue negociar com Lorde Nufi, chefe de estado da outra sociedade, que o futuro das terras recém-invadidas seriam determinados a partir de um jogo de futebol, esporte muito popular entre o Povo do Bronze. Caso os homens da caverna vencessem, a terra seria devolvida a eles, e caso eles perdessem, não só teriam suas terras expropriadas, mas seriam mandados para as minas pelos colonizadores, para fazer trabalho braçal. Só há um problema neste plano: a clara desvantagem dos homens das cavernas, que sequer conhecem o futebol, ao passo que para o Povo do Bronze o esporte está enraizado em sua cultura — cabe a eles terem que aprender a jogar o esporte em tempo recorde para não só salvar seu lar, mas também o resto de suas vidas.

Agora, quando eu digo que eu achei o filme “ok”, eu quero dizer exatamente isso. Não há nada de particularmente errado com esse filme, mas também não há nada de particularmente certo que se destaque. Assim, O Homem das Cavernas acaba sendo o exemplo de mediano, algo que não deixa de ser decepcionante, levando em conta minhas expectativas altas para com a obra. Mas mesmo se deixarmos as minhas expectativas de lado, este filme está longe de ser uma obra perfeita. O principal problema com ele é o quão genérico e sem imaginação tudo aqui soa, e a impressão de que já vimos tudo isso antes se mantém conosco do início ao fim da obra. Eu digo isso porque é um fato: tudo o que aparece em Homem das Cavernas, seja sua premissa básica ou os arquétipos de seus personagens, já foi trabalhado a exaustão em outros lugares antes. E isso é uma pena, sobretudo quando levamos em conta o histórico do Aardman. Suas histórias são regadas com bastante criatividade e situações absurdas, que fazem com que elas se destaquem, mesmo quando a execução dessas ideias acaba por ser falha. Mas aqui, nós temos do início ao fim uma história engessada da qual nós podemos prever cada curva narrativa.

Se nos atentarmos minimamente à premissa do filme, logo suas semelhanças a outros projetos começarão a aparecer. O filme é um típico filme de temática esportiva: temos um time de amadores e desajustados que precisa derrotar um outro time extremamente talentoso e invicto para atingir seu objetivo. Ao longo da história nós vemos o time de desajustados treinando e melhorando, até que — spoiler para qualquer um que jamais tenha visto um filme na vida — eles vencem a batalha final, indo contra tudo e contra todos. Acontece que Homem das Cavernas não adere em nada a essa narrativa, não a modifica em nenhum ponto e nem faz nada com ela digna de destaque, que transformasse o filme em um único, terminando como apenas um mais do mesmo e, como citado, extremamente previsível. É difícil se sentir investido em uma história que nós parecemos conhecer tudo o que irá acontecer a partir da marca de vinte minutos.

Eu falo isso porque o começo da obra parecia que poderia ir por direções interessantes. Talvez não exatamente quando o filme se abre, e nós conhecemos os personagens da aldeia do protagonista — os vemos caçando e interagindo uns com os outros, momentos inofensivos, não são hilariantes, mas são fofos. Mas o momento que eu digo que é quando o filme parece se mostrar promissor é quando o Povo do Bronze chega na aldeia de Doug. Essa ideia do chocar das civilizações é bastante interessante, e eu gostaria que o filme tivesse brincado com ela bem mais. Mostrar os personagens de diferentes mundos tendo que lidar uns com os outros, talvez colocar Doug, sozinho ou com os outros da aldeia para ir para o centro da civilização do Povo do Bronze e não sabendo como assimilar aquele universo tão distante do deles, colocar uma barreira linguística entre os povos que faz com que eles tenham que arranjar jeitos não convencionais de comunicação, havia um mundo de possibilidades com este conceito que saíssem do mais do mesmo. Mas, ao invés, o filme resolve esse primeiro encontro instantaneamente e volta de fininho para a sua zona de conforto, se limitando a seguir fórmulas maçantes e repetitivas de filmes de esporte, jogando todo o seu potencial no lixo.

E além da premissa principal, ainda há uma série de clichês para escolher de acompanhamento. A relação do velho da aldeia com Doug, que representa o confronto geracional, com o protagonista sendo mais espontâneo e tendo uma maneira diferente de levar a vida que não condiz com as ideias pré-concebidas de seu “mentor”, que é inflexível, mas acaba aprendendo com o mais novo a ser menos engessado — um elemento extremamente subdesenvolvido e que parece só estar lá para ocupar tempo de tela. O fato de que o time dos desajustados saber valorizar a amizade e o trabalho em equipe, enquanto que o time dos talentosos só joga pelos seus próprios egos e esquece que o que realmente importa é o laço do grupo. Ou, o meu favorito: a personagem feminina do Povo do Bronze que se junta com os homens das cavernas porque seu povo não deixa mulheres jogarem. Esse último também é extremamente subdesenvolvido e esquecido ao longo da história, e parece que eles só introduziram a dita personagem para que ela ensinasse os homens da caverna a jogar futebol, e a deixaram boiando em meio ao resto da história uma vez que sua função narrativa fora cumprida. Aliás, o filme até meio que desfaz todo o conflito que levou a menina a ajudar o grupo do protagonista — o fato de os vilões não deixarem garotas jogarem futebol — no terceiro ato, quando parece que a obra finalmente vai reconhecer esse elemento e trazê-lo à tona, e simplesmente o dispensa como se não fosse nada, fazendo da personagem, Guna, ainda mais inútil (aliás, o fato de eu precisar pesquisar o nome dela para saber como ela se chama é só uma comprovação de o quão dispensável é essa figura).

E isso me leva ao próximo defeito de O Homem das Cavernas: seus personagens. Eles não são memoráveis ou carismáticos, nem um pouco, aliás. Todos eles são extremamente genéricos e desprovidos de qualquer personalidade, tanto o protagonista quanto os demais secundários. Doug é o típico protagonista deslocado de seu grupo, mas que, por ser diferente, acaba sendo o único capaz de liderar o resto a sair da situação difícil em que se encontram. Não há nada nele que valha a pena destacar, ele é só gentil, e amigável, e se importa com seus amigos, atributos que não necessariamente precisam ser genéricos e sem graça, se bem trabalhados, mas não é o caso aqui. Para um protagonista, ele passa boa parte de sua história apagado — ele nem é o responsável por fazer o seu time vencer, e sim Guna, que foi quem os treinou — e isso quer dizer bastante, quando olhamos para o resto do elenco, e também encontramos personagens apagadíssimos. O chefe da aldeia, Chefe Bobnar, é o típico ancião sábio e responsável, que entra em choque com o jeito espontâneo do herói, e Guna, como já estabelecemos, não possui um pingo de personalidade em si, e só está ali para resolver um ponto narrativo. Quanto ao resto da aldeia, eu honestamente não saberia nomear um deles sequer. Eles são muitos e também são desprovidos de qualquer personalidade. O filme não dedica nenhum tempo para eles, para desenvolvê-los ou minimamente para ajudar que nós consigamos diferenciá-los. Eu sei que eles eram muitos, mas ao menos a obra poderia selecionar dois ou três para desenvolver, e assim fazer com que nós nos sintamos mais próximos desse corpo de personagens, e que conhecemos essa aldeia. Mas o filme parece quase entediado com essas pessoas, e simplesmente não faz nada com elas, as usando apenas como alívios cômicos, e as piadas para as quais eles são usados tampouco são engraçadas, e apenas servem para fazer deles personagens repetitivos e de uma nota só.

Aliás, o fato de esses personagens não serem desenvolvidos e nem haverem no mínimo alguns momentos do filme que ele reserva para dar a oportunidade ao público de conhecê-los minimamente não atrapalha somente os ditos cujos, mas a própria resolução da obra. Afinal, o peso emocional do filme depende inteiramente de que nós vejamos esses personagens como um time entrosado e que confia um nos outros — esse, afinal, é a justificativa que o filme dá para que um time de amadores vença os treinados e invictos, só que é difícil comprar esse pseudo-laço quando nós mal conhecemos os membros do time. Isso piora quando nós sequer vemos o time treinar, e não sentimos que a vitória deles no final foi merecida, apenas uma convenção de roteiro para que os heróis saíssem vitoriosos — tudo o que vemos é uma única montagem de Guna os treinando e a obra se dá por satisfeita, não achando necessário dar mais indícios de que houve um avanço, e assim, a vitória deles, no fim das contas, soa como gratuita. Isso é mais um indício de que Nick Patrick e Mark Burton (roteirista da obra, e creditado por outras obras de animação como Madagascar, Wallace e Gromit: A Batalha dos Vegetais e Gnomeu e Julieta) parecem estar entediados com estes personagens, e não querendo perder muito tempo com eles, apenas fazendo o mínimo. Tudo bem que essa parte de filmes de esporte sempre requer um pouco de suspensão da descrença — um time de amadores simplesmente vencer um grupo extremamente preparado e veterano apenas pela força da amizade? Ok… — mas é especialmente mal trabalhado nesse caso, não só porque nós não vemos o time melhorar no esporte propriamente dito, mas porque nós não sentimos a força da dita amizade, que é justamente o fator principal que deveria convencer o público da vitória, mas que não convence justamente porque esses personagens não são desenvolvidos, e nós não vemos a amizade entre eles florescer, e eles terminam como um grupo aleatório de pessoas. Essa questão do filme devotar praticamente nenhum tempo para desenvolver estes personagens o atrapalha de maneira geral, e enfraquece diversos elementos de roteiro, um outro exemplo sendo a relação de Doug e Guna (um outro clichê), que parece ter caído do céu e o filme não chega nem sequer a indicar que este romance está lá até colocá-los juntos no final do filme, ficando parecendo que este romance estava lá apenas por ser mandatório haver um casal romântico em toda animação (o que, de fato, é o caso, mas os animadores tampouco se esforçaram para tentar fazer parecer o contrário).

E isso me leva ao outro elemento que os personagens fracos atrapalham nesta obra: suas piadas. Isto é particularmente decepcionante quando consideramos o fato de que o diretor desta obra é ninguém menos do que o diretor dos curtas originais de Wallace e Gromit e A Fuga das Galinhas, se isso não era uma garantia de uma experiência hilária, eu não sei o que seria. Mas assim como o resto da obra, o humor está pouquíssimo inspirado. Quando eu soube que o filme se passaria na Idade da Pedra eu soube imediatamente que a maior parte do humor do filme se daria através da dicotomia entre o uso de humor contemporâneo e da ambientação antiga, mas isso aconteceu até que pouco (então, parabéns pelo filme por pelo menos uma vez não ser previsível, eu acho), mas isso não significa de nada se as piadas de fato usadas não serem engraçadas, o que foi exatamente isso aconteceu. Além do uso de gags físicas repetitivas e nem um pouco criativas, que nós já vimos diversas vezes antes em outros lugares, mas o uso excessivo de humor escatológico, de forma pouquíssimo inspirada, que nem de longe lembra as cenas hilariantes e muitíssimo criativas dos primeiros trabalhos de Nick Park. O humor nonsense, quando aparece, parece vir de lugar nenhum e destoa completamente do resto da obra, quebrando o clima do que estava acontecendo drasticamente (um excelente exemplo disso é o pato gigante carnívoro, que poderia ser utilizado de maneira divertida se os responsáveis por este filme soubessem preparar o terreno para introduzi-lo, ao invés de simplesmente jogá-lo dentro da história). Isso, em partes, também está ligado aos personagens pobres, porque todas as piadas os envolvendo já perdem significantemente a graça pelo fato de nós não sabermos nada sobre eles, sobretudo as que surgem através das interações entre essas figuras, que dependem do fato de nós entendermos quem elas são e como suas personalidades se dão e porque se chocam, mas como o filme nunca dá o tempo necessário para que esses personagens sejam apresentados e, portanto, as piadas façam sentido, elas simplesmente estão lá, ocupando o espaço de tela que poderia ser devotado a outras coisas. Isso quando uma piada que já não foi engraçada da primeira vez continua sendo mastigada e reciclada de tempos em tempos a ponto de, o que era sem graça, mas inofensivo da primeira vez, se tornar maçante e repetitivo.

Não é atoa que os momentos mais engraçados do filme são justamente o que estrelam seus melhores personagens: o javali de Doug, Porcão (dublado, no original, pelo próprio Nick Park) e a dupla composta pelo vilão, Lorde Nufi, chefe do Povo de Bronze, e sua mãe, Rainha Oofeefa. O animal protagoniza muito mais cenas engraçadas do que seu dono ou qualquer um dos humanos que pertença ao grupo dos heróis, mas é em sua dupla de vilões que a obra realmente brilha (aliás, são nas cenas explorando os vilões que o dito uso de elementos e situações contemporâneas em contraste com a ambientação antiga é usada, e, mesmo que isso fosse o esperado, essas são as piadas mais bem sucedidas da obra). Percebemos a diferença do material dado aos protagonistas e aos antagonistas, e os responsáveis pelo filme parecem muito mais a vontade e dispostos a fazer um bom trabalho quando estes personagens estão em cena. A eles é dado muito mais personalidade, e os diálogos que eles recebem são hilariantes, e percebemos o Nick Park de Wallace e Gromit de volta. Lorde Nufi é um vilão cômico feito da maneira correta: ele é exagerado, orgulhoso, teatral e se leva a sério demais, querendo ter controle total sobre todas as situações possíveis, quando se fica claro que ele é completamente despreparado para governar. É daí que vem seus embates com sua mãe, nas hilariantes cenas envolvendo os pássaros-correio, sem sombra de dúvidas as melhores do filme todo, com a Rainha Oofeefa o afrontando e duvidando de seus julgamentos o tempo todo, e ele tendo que manter o controle, por não poder faltar ao respeito com a rainha, mas ao mesmo tempo sentindo vontade de enfrentá-la. Toda essa dinâmica entre os dois é incrível — a dublagem de Lorde Nufi no original, por Tom Hiddleston, é uma maravilha a parte — e seus momentos mostram bem o que o filme poderia ter sido caso tivesse o mesmo empenho que teve com esses personagens em específico, no resto da obra. Até mesmo o fato de o fim do filme meio que diminuir o impacto da rainha e contradizer o seu papel durante toda a história não estraga o deleite que foi acompanhá-la até aquele ponto.

A animação possui o padrão de qualidade do Aardman. É interessante ver como o estúdio vai adaptar diferentes universos e cenários considerando que ele tem uma estética muito única, então é sempre divertido ver a “versão Aardman” de diferentes mundos — nós tivemos a versão Aardman da Era Vitoriana em Piratas Pirados, e aqui nós temos a versão Aardman da Idade da Pedra. Tirando os traços estilos característicos do estúdio, não tem nada que se destaque muito aqui — não que a animação seja fraca, pelo contrário, ela é excelente, mas como nós já vimos todo o poderio do estúdio no que tange a manipulação de massinha no passado, o filme não traz nada de inovador. Ainda assim, ver filmes em stop-motion, sobretudo claymations (animação com massinha) sempre é incrível por si só. Apenas pensar que tudo o que estamos vendo foi milimetricamente construído e manipulado por mãos humanas até chegar na tela não só prende a nossa atenção, mas nos deixa cansados só de pensar a trabalheira que é isso tudo. E a atenção de detalhes também é impressionante — a maneira com que o Aardman trabalha sobretudo com diferentes materiais para nos dar a sensação de textura dos diferentes objetos é incrível. O pelo no cabelo e nas roupas dos personagens, as bolhas na banheira de Lorde Nufi, a maneira com que o filme representa o dito bronze e os diferentes materiais que são a base da sociedade do Povo do Bronze, tudo isso vale a pena ser citado. Aliás, a Cidade do Bronze é o trunfo visual de O Homem das Cavernas, pela maneira com que os animadores conseguiram dar uma identidade visual ímpar para essa sociedade, algo que fica claro apenas ao vermos os pôsteres da obra.

Mas se tirarmos a técnica da equação, há pouco que se salva aqui, o que é uma pena. O filme não é horrível, mas está longe de ser uma obra prima. O maior defeito de O Homem das Cavernas não é ser pavorosamente ruim, e sim ser extremamente esquecível, o que podemos argumentar que é um crime pior ainda. O Homem das Cavernas é um filme que eu sei que daqui a dois dias eu vou ter simplesmente esquecido que assisti e, considerando que o diretor deste ganhou inclusive o Oscar de animação por um de seus filmes, uma obra apenas passável é extremamente decepcionante.

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