Paprika (2006)

Miguel Serpa
11 min readMar 4, 2018

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Paprika, de 2006, é o último filme do diretor Satoshi Kon, o aclamado diretor de animações para o público adulto, e um de seus filmes mais complexos, sendo baseado no livro homônimo de 1993, do autor Yasutaka Tsutsui.

A história tem como elemento principal um aparelho chamado DC Mini, criado por um visionário inventor, e usado por psiquiatras. O aparelho permite que eles tenham acesso aos sonhos de seus pacientes, podendo assisti-los e analisá-los. O problema é que alguns desses aparelhos foram roubados por terroristas, que pretendem usá-los para causar o caos. Invadindo a mente de diversas pessoas, eles começam a manipular seus sonhos, fazendo com que elas não tenham mais discernimento para diferir entre o que é real e o que é fruto de suas imaginações, e os resultados se tornam catastróficos. Cabe, então, ao policial Toshimi, à psiquiatra Atsuko e ao inventor, responsável pelos DC Minis, Kosaku encontrarem as pessoas responsáveis e darem um fim nisso. Além desses personagens, ainda aparece no filme a titular Paprika, uma mulher misteriosa, que, em um primeiro momento, não entendemos muito bem quem ela é e sua função narrativa dentro da história, mas, com o tempo, as coisas vão se explicando e compreendemos quem é aquela figura.

Antes de eu assistir o filme, tudo o que eu sabia sobre ele era baseado nas imagens do mesmo. Só que elas só me deixavam mais confuso ainda quanto a esta obra. Todas muito coloridas e com uma série de elementos bizarros, parecia não haver nenhuma conexão entre elas, além da confusão surrealista que as permeavam, e eu realmente não sabia o que me esperava.

O filme capta bem o espírito dessas imagens soltas, com sequências extremamente psicodélicas e coloridas. As cenas no mundo dos sonhos são todas cercadas de elementos, como objetos, brinquedos e animais, que ganham vida própria. A experiência de assistir ao filme é exatamente como se estivéssemos sonhando, nos deixando levar pelas particularidades daquele mundo, onde nem tudo aparenta fazer sentido ou ter uma função, além de nos transportar e nos hipnotizar com toda essa singularidade. A animação em outros momentos faz bem o seu trabalho, mas são nesses momentos, onde se permite voar, que ela realmente brilha, e faz de Paprika um trabalho extremamente único e original, que não poderia ser realizado por nenhum outro meio que não fosse a animação.

Mas não é apenas na arte que Paprika acerta. Como de costume, Kon gosta de pintar seus personagens com diversas camadas, e trazer em seus trabalhos uma dose de críticas sociais. Esses dois elementos estão presentes aqui. Os personagens são, provavelmente, o trunfo da obra (fora a primorosa animação), todos muito bem trabalhados. Na psiquiatra vemos uma mulher reservada e séria, mas que tem uma outra personalidade que se revela aos poucos. O inventor, apesar de ser um gênio, se comporta de maneira extremamente infantil, agindo como uma criança no corpo de um adulto. Mas é a figura do detetive que é mais bem trabalhada e desenvolvida ao longo do filme, que explora sua personalidade e seus problemas à medida que a história cresce, e vamos compreendendo aquela figura aos poucos.

A maior crítica de Paprika é em relação à tecnologia, e aos limites que devemos aplicar a ela para que ela não consuma nossas vidas por completo. Similar à famosa série Black Mirror, o filme pondera, através de alguns personagens que são contrários ao DC Mini, que os sonhos são lugares sagrados, e, em um mundo que cresce cada vez mais tecnológico e conectado, um dos únicos locais onde podemos ficar apenas conosco, sem dividi-los com ninguém, e que utilizar da tecnologia para infiltrar os sonhos de outras pessoas, não só configura uma invasão de privacidade, mas deturpa o que os sonhos deveriam ser; uma viagem extremamente pessoal, um santuário que revela muito sobre a personalidade do indivíduo, e que só ele deveria ter acesso. No entanto, o filme não se coloca totalmente contra a tecnologia, ponderando que ela pode ser, e é, muito benéfica, contando que seja usada com moderação, e que não deixemos que ela controle todos os âmbitos da nossa existência.

Apesar da maravilhosa animação, ótimos personagens, e uma mensagem interessante e relevante, Paprika encontra um grande problema através de sua narrativa, que se perde em meio a tantos elementos diferentes sendo inseridos a cada segundo, e deixa o público confuso em relação a o que, de fato está acontecendo. Kon, querendo dar mais nuances a seus filmes, coloca uma série de referências no mesmo, incluindo termos da psicologia e elementos da religião xintoísta, que escapam de seu público, e ajudam a deixar a história abstrata demais e a incorporar a difícil compreensão da mesma (eu mesmo não percebi a inserção desses elementos, só sabendo que eles estavam lá após ler sobre o filme). O problema é que, querendo deixar o filme mais denso, muitas dessas camadas se tornam superficiais e gratuitas, como se Kon quisesse fazer de seu filme complicado apenas para que fosse complicado, e parecesse mais profundo e denso do que realmente é.

Muitas vezes, filmes, e outras formas de arte em geral, na pretensão de serem mais complexas do que deveriam ser, utilizam de simbolismos e subtextos em abundância em suas histórias, muitas vezes sem necessidade, apenas para que elas fiquem mais complicadas. Eu acho essa atitude muito negativa, pois tira o brilho e a diversão de acompanhar uma boa história. Ao invés de servirem como entretenimento ou encantarem seu público, muitas formas de arte, querendo serem maiores e mais rebuscadas do que precisam ser, lotam seu conteúdo com elementos complexos demais sem necessidade, o que afasta, justamente, a maior parte de seu público. Assim, a adição de simbolismos, por exemplo, na arte se tornou desenfreada, tirando o foco de sua função, dialogar com seu público e encantá-los, se tornando mais sobre uma batalha de egos entre quem tem a capacidade intelectual de decifrar o que aqueles códigos significam.

Assim, esses simbolismos raramente estão ali para incrementar a arte, e engrandecê-la, mas sim para revelar a capacidade do público de entender seu significado. Essa é uma ação masturbatória não só para o público, que cai na pretensão de se mostrar intelectual e esbanjar sua capacidade de entender o que aqueles símbolos querem dizer, mas também para o criador da obra, que faz um trabalho pretensioso de difícil acesso sem necessidade, apenas para se mostrar, também, um grande e prolixo intelectual.

Paprika cai, em alguns momentos, nessa pretensão, colocando uma série de elementos em sua narrativa, aumentando cada vez mais a sua escala, e, assim, causando cada vez mais no público um senso de confusão, e uma dificuldade de acompanhar o que está acontecendo. Essa crítica também é feita ao filme americano A Origem, que muitos dizem ter se inspirado imensamente em Paprika (se essa crítica, ou essa inspiração, são realmente verdadeiras, eu não sei dizer, pois não assisti ao filme).

Quando Paprika se importa mais em explorar aquele mundo próprio que nos entregou, deixando que o senso de aventura e descoberta fale mais alto que os elementos mais abstratos e esotéricos, ele se prova um filme muito bom, pois consegue, ao mesmo tempo, casar o surrealismo e o psicodelismo com uma história de fácil diálogo com o espectador, não precisando quebrar a relação do filme com o público para engrandecê-lo, ou fazê-lo mais complicado, sem necessidade. O filme anterior de Kon, Tokyo Godfathers, provou que um filme pode se aventurar por temas mais complexos e engrandecer a obra de forma que ela ainda possa ser compreendida e apreciada por quem está a assistindo.

Outro problema que eu tive com Paprika, foi em seu terceiro ato. Após o problema principal do filme estar, aparentemente, resolvido, nós somos informados de que não, e que ainda haviam coisas para serem solucionadas pelos protagonistas. É nesse ponto que a história aumenta ainda mais sua escala, tomando proporções épicas, se assemelhando, inclusive dos clássicos animes de batalha. Eu entendo que Kon queria referenciar essas obras em seu filme, mas achei a inserção dessa parte final do filme desnecessária, como se o diretor quisesse aumentar ainda mais a escala da obra, sem necessidade, apenas para fazê-la parecer maior nos olhos de quem a está assistindo, sendo que ela já era extremamente épica e absurda, sem ter que apelar desta forma. Senti, também, que esta parte final não dialoga muito bem com o resto do filme, parecendo deslocada, e o final é muito brusco e abrupto.

O filme todo, aliás, me dá a sensação de que Satoshi foi enfiando todas as ideias dele em um mesmo saco, adicionando toda a sua imaginação na história, sem saber se elas dialogariam entre si, o que fez desta obra um pouco sem forma (crítica que eu fiz a alguns filmes de Miyazaki, que trabalha sem roteiros, o que faz com que seus filmes possam, possivelmente, parecerem um pouco inacabados). No entanto, eu acho que esse aspecto meio abstrato do filme até mesmo em sua narrativa, sem uma linha concreta de acontecimentos, faz sentido dentro do mesmo. O filme se inspira muito no mundo dos sonhos, com o qual trabalha. Nos sonhos nós também não seguimos uma linha narrativa definitiva, e as coisas vão acontecendo de forma conturbada e, muitas vezes, confusas. Se vermos por esse ângulo, acho mais fácil de apreciar Paprika, mesmo com seus elementos mais confusos e complexos. Assim, a confusão de cores e elementos presentes na arte, também se traduz na narrativa.

Kon disse uma vez que Paprika, aliás, não é sobre sonhos, e sim sobre pesadelos. Segundo ele, os animes, que, na sociedade japonesa, servem como uma forma de escape da realidade, mas vem se tornando cada vez mais violentos e com elementos adultos, como o sexo. Assim, podemos perceber os valores que o Japão vem adquirindo se olharmos para estas obras, que se voltaram para esse campo mais violento apenas em meados dos anos oitenta, antes sendo mais como os desenhos animados ocidentais, quase totalmente voltado para as crianças, com uma atmosfera mais simples e inocentes. Da mesma maneira, os sonhos dos personagens dizem muito sobre eles e o meio em que estavam inseridos, sendo permeados de muita fartura e festança, além da violência, mostrando meio que um hedonismo da parte dessas pessoas, como se elas vivessem apenas para o prazer, crítica que já foi adicionada por outro diretor de animações japonesas muito famoso, Hayao Miyazaki, em seus trabalhos.

Paprika representa todos os elementos que permearam a filmografia de Kon em sua forma bruta, sem ser lapidada. É como se o diretor tivesse vomitado toda a sua criatividade no papel e entregado ele assim mesmo, sem trabalhá-la melhor. Tudo o que fez dele querido entre seu público está lá; seus personagens complexos, seu apreço por mesclar elementos fantásticos com a realidade, críticas sociais, e, sobretudo, sua fama de ser um diretor que elevou a animação a um outro patamar, provando que essa técnica pode ser usada para contar qualquer tipo de história, não se prendendo ao espectro infantil. Kon é muito famoso por fazer animações adultas, e Paprika não é diferente, com cenas extremamente gráficas e pesadas, que não devem ser mostradas para os pequenos.

A diferença aqui é que Paprika joga todos elementos em si, mas não os filtra, que nem os outros trabalhos do diretor. É, literalmente, toda a sua criatividade e particularidade em sua forma viva e crua. Acho que se é possível gostar de Paprika mesmo com todos os seus problemas, pois ele consegue contar sua história e prender o espectador com toda a sua criatividade e com a singularidade de sua arte, que, mesmo sem entender todos os elementos por trás da histórias, se sentirão emergidos naquele mundo colorido e psicodélico e abraçarão os elementos positivos da história, comprando-a o suficiente para ignorar os elementos negativos do mesmo.

A sensação que eu tive é que Paprika é um daqueles filmes que devem ser revisitados. Com tantos elementos transbordando pela tela, quando os créditos sobem ficamos com a impressão de que não pegamos tudo o que acabamos de ver, e que é um filme para se refletir sobre. Talvez em futuras assistidas eu goste ainda mais de Paprika, no entanto, eu acredito que filmes são obras que devem se passar para seu público sem que seja necessário voltar aos mesmos, então, para mim, Paprika falha neste ponto.

Acho que, para se entregar totalmente à Paprika depende muito dos gostos pessoais de quem o está assistindo. Se você gostar de surrealismo e elementos psicodélicos e abstratos, que não se explicam por completo, e deixam parte da compreensão para a reflexão do público, o filme é um prato cheio. No entanto, se você preferir obras mais diretas e menos especulativas, talvez fique frustrado com o resultado final.

Infelizmente, este foi o último filme de Satoshi Kon. O diretor foi diagnosticado com câncer pancreático em 2010, e foi informado que teria menos de um ano para viver. Ele, então, decidiu interromper todos os seus projetos, e passar o que restava de seu tempo em casa. A morte de Kon veio como um choque, pois ele aparentava estar saudável nos últimos eventos em que atendeu. Em uma carta que foi colocada em sua página na internet após sua morte, no dia 24 de agosto de 2010, o diretor disse que não falou sobre sua doença por vergonha de quão rápido ela estava se espalhando e deteriorando seu corpo, com o câncer progredindo para seu estado terminal em apenas meses.

Sem dúvida Kon foi uma das maiores perdas do meio da animação. Mesmo tendo feito apenas quatro filmes, suas obras são umas das mais aclamadas tanto no oriente quanto em solos ocidentais, com seus trabalhos influenciando muito produtos hollywoodianos, como o já citado A Origem, e também Cisne Negro. Mesmo em sua curta jornada, Satoshi revolucionou o meio, provando de uma vez por todas que os filmes animados não precisam se limitar, e podem abraçar qualquer aspecto que quiserem, seja ele infantil ou adulto, seja a aventura, o drama ou o terror. Responsável por popularizar as animações de temática adulta, e mostrar toda a diversidade que esse meio pode alcançar, nós só podemos agradecer a Kon, e reconhecê-lo como um verdadeiro mestre do meio.

Para um último filme, apesar de não ser meu favorito, Paprika faz jus a o que Kon representou, e ao frescor que ele entregava a seu público a cada novo projeto. Também é relevante para fechar sua carreira pois era um filme que o diretor queria fazer desde seus primórdios, mas encontrou muitos obstáculos em seu caminho que atrasaram a sua realização. O fato de finalmente conseguir realizá-lo, e de ele fechar sua brilhante filmografia nos dá a sensação de fechamento de ciclo. Entregando um filme totalmente peculiar, que dificilmente poderá ser replicado em toda a sua grandeza e singularidade, a obra é o retrato perfeito de o que eram os trabalhos de Satoshi, com todos os elementos que formaram suas características próprias elevadas a máxima potência e em sua forma bruta. Paprika é um daqueles filmes que cai na categoria de obras que não poderiam ter sido feitas em nenhum outro meio que a animação, com suas imagens esotéricas e coloridas, e, mais do que isso, dificilmente poderia ser realizado em outro mercado que não o japonês, provando toda a criatividade que os animadores japoneses se dão de criar e de se permitir, não se prendendo a fórmulas ou ao mercado, se deixando voar com seus lápis e pincéis. Dificilmente encontraremos alguém que saiba manejá-los tão bem quanto Satoshi Kon.

Amanhã: A Canção do Oceano, do estúdio irlandês Cartoon Saloon, que vem crescendo cada vez mais e se tornando muito relevante no cenário das animações atual.

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