A Viagem de Chihiro (2001)

Miguel Serpa
28 min readFeb 15, 2018

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Antes de A Viagem de Chihiro, Hayao Miyazaki e seu estúdio de animação, apesar de serem universalmente conhecidos e celebrados em solo japonês, ainda não haviam conquistado o mercado e público ocidental. Seu legado foi semeado por aqui com seu trabalho anterior, Princesa Mononoke, mas foi com este filme, de 2001, que ele não apenas floresceu, mas gerou uma floresta inteira mundo a fora, criando uma legião de fãs de seu trabalho, que passaram a acompanhá-lo de perto e voltaram no tempo, visitando obras anteriores. Miyazaki virou um ícone universal entre os fãs de cinema, e foi tudo graças a este filme.

A Viagem de Chihiro, como o nome já diz, conta a história de Chihiro, uma menina de dez anos. No começo do filme, ela está se mudando com seus pais, triste no banco de trás do carro por ter que deixar seus amigos e sua antiga casa para trás. No meio do caminho, no entanto, seus pais se perdem, e acabam indo parar em um parque de diversões abandonado. Eles decidem explorar o local, enquanto sua filha é mais acanhada, com medo do que possa acontecer caso entrem ali.

Não querendo ficar sozinha, no entanto, ela segue os dois adultos, que encontram um restaurante, com comida em cima do balcão, mas sem ninguém para atendê-los. Ignorando tal fato, os dois sentam e comem aquela comida, ignorando os avisos da garota, que acha melhor eles não o fazerem. Enquanto seus pais comem, Chihiro decide explorar aquele local deserto, com a sensação de que ele não é o que aparenta ser.

Quando a noite chega, suas suspeitas se provam verdadeiras. Todas as luzes se acendem, e espíritos começam a aparecer por todas as partes. Apavorada, a menina corre para os seus pais, apenas para descobrir que eles viraram porcos, grandes e gordos, ainda devorando a comida em sua frente, como dois animais irracionais. Chihiro, então, se descobre sozinha em meio à um mundo totalmente novo; o mundo dos espíritos. Para salvar seus pais e poder voltar para casa, ela tem que trabalhar para Yubaba, a dona de uma casa de banho, onde todos os espíritos também trabalham, ou frequentam, como hóspedes. Em sua jornada, Chihiro tem que aprender a amadurecer e arranjar um jeito de resolver seus problemas por ela mesma, enquanto vai descobrindo as particularidades daquele novo universo, e fazendo amigos ali.

Aqui, de novo, venho colocar um aviso de spoilers. Por ser um filme rico em críticas e simbolismos, e por eu querer citá-las e analisá-las neste texto, vou ter que relevar alguns pontos de roteiro. Assim como Princesa Mononoke, acredito que A Viagem de Chihiro deva ser assistido sem o mínimo de conhecimento prévio da história, então, se você ainda não o assistiu, sugiro que o faça antes de continuar.

Na década de oitenta, o Japão crescia mais e mais como a potência econômica que se tornou durante o pós-guerra. Uma bolha se formou naquela nação, que prosperava mais a cada dia, se tornando uma sociedade extremamente consumista e capitalista, bem como a ideia que temos dela, ainda hoje em dia. Como todas as bolhas, no entanto, a que pairava sobre o Japão estava fadada a explodir, levando consigo todos os louros que ele estava colhendo naquele período de glória. Foi exatamente o que aconteceu, nos anos noventa, quando o mercado de ações japonês quebrou, e o crescimento constante e ininterrupto do país não só estagnou, como decaiu. O motivo de eu estar falando sobre isso é que Miyazaki, em Chihiro, faz duras críticas ao consumismo, e ao sistema capitalista no geral, motivado, em partes, por esta crise da década de noventa, a qual foi dada o nome de “Década Perdida” pelos japoneses e economistas do mundo todo.

Uma das cenas mais memoráveis e impactantes do filme é justamente a que os pais da protagonista se transformam em porcos, seres gordos e afobados, que comem tudo o que veem pela frente, insaciavelmente. Quando questionados, certa vez, sobre a significância desta transformação por uma fã, os animadores do Studio Ghibli responderam que esta decisão narrativa era, de fato, uma referência à crise financeira que assolava o país durante os anos noventa. No ápice da bolha econômica japonesa, na década anterior, as pessoas estavam se entregando ao ato do consumo conspícuo e ao hedonismo que todos aqueles luxos acessíveis traziam consigo.

O ato de simbolizar a ganância humana e a busca pelo prazer acima de todas as coisas através de porcos já tinha sido trabalhado por Miyazaki em Porco Rosso. Aqui, ele vai além. Lendo a carta que os animadores enviaram à fã, retiramos o trecho “Quando alguém vira um porco, ele vai gradualmente adquirindo o corpo e a alma de um porco”, o que, segundo eles, “não se aplica somente ao mundo da fantasia”. Nas cenas iniciais, onde os pais de Chihiro aparecem, fica claro como eles, também, estão imersos naquele ambiente consumista. Enquanto dirigem um carro importado, sua mãe se queixa de que não há lojas perto do lugar onde eles estão indo, e que eles provavelmente terão que parar para fazer compras, sendo que, no banco de trás, junto de Chihiro, já podemos ver diversas sacolas de compras. Quando o pai e a mãe da menina decidem sentar para comer, ela diz que não acha que seja uma boa ideia, levando em conta que não há ninguém ali para atendê-los e que a comida, provavelmente, não é para eles. Seu pai indaga que ele tem dinheiro e cartões de crédito na carteira, o suficiente para pagar a quem quer que tenha preparado aqueles alimentos.

A questão do “corpo e alma de um porco”, que estava presente na carta, se faz presente, no filme, quando as atitudes gananciosas dos dois adultos se viram contra eles. Acontece que, de fato, a comida não era para eles, e sim para os espíritos, e a transformação dos dois em porcos é a maneira de Yubaba de se vingar e ensiná-los uma lição. A própria maneira de os pais de Chihiro se alimentarem, antes da transformação, lembra dois animais famintos se agarrando àquelas comidas, enchendo a boca com tudo o que viam pela frente, sempre querendo mais, simboliza a insaciabilidade da sociedade japonesa em meio aquele mundo onde todos os bens materiais estavam ao seu alcance. A gula deles é a responsável por sua transformação, e eles são levados aos estábulos do mundo espiritual, para servirem de comida aos espíritos. A crítica de Miyazaki vai ganhando camadas, e agora ele nos diz que a crise que assolava o Japão era fruto das atitudes cobiçosas dos próprios japoneses, que agiram como meros animais gulosos, querendo tudo o que viam pela frente, e agora se tornaram escravos do sistema capitalista, que antes parecia ser seu maior aliado.

O mundo espiritual, então, representa o velho Japão, com a arquitetura típica de seu povo, e com a cultura nipônica muito presente naquele mundo. A questão da antiguidade se dá até no quesito geográfico mesmo. Quando Chihiro e seus pais descobrem aquele parque de diversões abandonado, o pai da garota diz que “eles fizeram muitos desses nos anos oitenta”, e que antes daquela construção, um rio passava por ali. Quando Chihiro é transportada para o mundo espiritual, ela descobre que o rio, que tinha sido coberto, estava presente ali de novo. A própria presença dos espíritos é significativa. Ainda no carro, no início do filme, a protagonista pergunta o que são as estátuas que se encontram na beira da estrada, para o qual a sua mãe responde que são espíritos. A atitude de Chihiro, de desconhecer parte da cultura de seu país, representa que os costumes japoneses vinham se perdendo para as novas gerações, levando em conta que a sua sociedade os trocou pelo mundo do consumo, esquecendo de sua identidade.

Em troca, os espíritos parecem não gostar dos humanos, os considerando preguiçosos e meros animais. Diversos personagens reclamam do cheiro de Chihiro, dizendo que ela “fede como uma humana”. Haku, o primeiro amigo que a protagonista faz naquele meio, um garoto aproximadamente da sua idade, e que ajuda a menina a se adaptar ao local, a aconselha a trabalhar duro, ou se não Yubaba também a transformará em um animal. Ele diz que a mulher tentará a enganar com suas palavras, mas ela tem que insistir e continuar pedindo um emprego na casa de banho, para provar seu valor. Ao contrário dos humanos, que, no filme, são mostrados levando uma vida guiada pelo hedonismo, os espíritos dão duro em seus trabalhos, e Chihiro tem que estar disposta a fazer o mesmo, não só para mesclar entre eles, mas para quebrar o estereótipo de que os humanos são preguiçosos e conseguir ser bem aceita ali.

No entanto, o mundo espiritual não é pintado como um ambiente ótimo e superior ao mundo real. O diretor critica a sociedade dos espíritos no que tange sua relação com o trabalho. Enquanto os louros do sistema capitalista faziam os humanos se desprender de suas relações, vivendo totalmente para o consumo, os espíritos eram escravos deste mesmo sistema, acreditando no mito da meritocracia, e que, se derem duro em seus trabalhos, conseguiram sair daquele meio e realizar seus sonhos, sem perceber que Yubaba não tinha a menor intenção de deixá-los sair dali, e os manteria trabalhando e a servindo eternamente. Esta esperança está presente em Haku, que faz trabalhos sujos para a dona da casa de banho, viajando em missões a mando da mesma, e em Lin, outra amiga que Chihiro faz, uma faxineira a quem ela é designada como aprendiz. Lin conta a Chihiro o seu sonho de um dia deixar a casa de banhos e viajar.

Criaturas de poeira.

Uma das cenas onde esta ideia está mais presente, no entanto, é logo quando a protagonista é transportada para o mundo espiritual. Haku a aconselha a se esconder na caldeira, onde trabalha Kamaji, um homem que tem vários pares de braços, semelhando uma aranha. Seguindo o conselho de Haku, Chihiro pede trabalho a ele. O homem, no entanto, responde que “já tem toda a ajuda que precisa” e que “nunca o faltarão trabalhadores”. Surgem, então, pequenas bolinhas de poeira, com olhos, braços e pernas (bem semelhantes, se não idênticas, a criaturas que Miyazaki já havia usado em Meu Amigo Totoro), que carregam o carvão até a caldeira e jogam-nos na máquina que Kamaji maneja.

Uma dessas bolinhas, acidentalmente, derruba a pedra de carvão que carregava, muito mais pesada do que ela própria, em cima de si, se auto esmagando. A menina vê aquela cena, enquanto as poeiras seguem seu caminho, passando pelo seu colega esmagado como se não fosse nada. Sentindo pena, a garota retira a pedra pesada de cima daquele ser, e resolve carregar o carvão até a caldeira ela própria. Vendo aquela cena, e desacostumadas com alguém que sinta empatia por elas e as ajude em seus trabalhos, as poeiras jogam, propositalmente, as pedras em cima de si, querendo que Chihiro as carregue. Logo, Kamaji as repreende, ameaçando transformar as criaturas de volta a meros grãos de poeira se elas não voltassem ao trabalho, e briga também com Chihiro, dizendo que uma pessoa não pode tomar o trabalho de outra.

Nesta cena, fica claro que, naquele mundo espiritual, uma pessoa é tão valiosa quanto o seu trabalho, e, quando alguém não pode mais trabalhar, ela se torna dispensável. Em um mundo industrial e capitalista, Miyazaki nos diz, as pessoas não têm identidade própria, e são consideradas meras peças de uma máquina, destinadas a cumprir um serviço. Nada mais importa a não ser suas funções para fazer aquele sistema funcionar, e, quando elas são incapazes de provir, são trocadas. Por isso os espíritos da casa de banho são tão protetores do próprio trabalho, pois é o único motivo pelos quais são permitidos viver ali.

Yubaba, então, representa a chefe daquele sistema, e o ser que deve ter certeza de que todos ali estão fazendo o que devem fazer. Sua recusa em contratar Chihiro se dava justamente por acreditar que humanos são desprovidos de valor, sendo preguiçosos e não gostando de trabalhar, o que formaria um buraco em seu perfeito e funcional sistema. Cabe notar, também, que os cômodos de Yubaba, ao contrário do resto da casa de banho, onde a arquitetura é tipicamente japonesa, sua mobília e decoração tem um estilo mais europeu, apesar de alguns detalhes japoneses ainda se fazerem presentes ali. Ela também veste um longo vestido, típico da elite europeia do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Esse contraste estético não é por acaso, representando o controle e influência do capitalismo ocidental sobre o Japão pós-guerra.

A maneira que Yubaba tem de exercer controle sobre seus empregados é roubando seus nomes. Quando Chihiro assina seu contrato, uma vez que convence a mulher a deixá-la trabalhar, ela tira dois caracteres de seu nome, o transformando em Sen. Chihiro significa “mil” e “perguntando” ou “pesquisando”. Com a nova mudança, o nome da garota passa a significar apenas “mil”. É desprovendo da identidade daquelas pessoas, tirando suas individualidades e a transformando simplesmente em força braçal, que Yubaba consegue controlá-las. Essa situação é similar ao que ocorria com o Japão enquanto sua economia crescia, esquecendo sua história e identidade cultural, se vendendo totalmente para o sistema capitalista. Chihiro vai aos poucos esquecendo seu próprio nome e a pessoa que ela realmente é, assumindo a persona de Sen, e assim dando controle a Yubaba. Haku, que já havia esquecido seu nome original, estando totalmente nas mãos de Yubaba, não quer ver sua amiga ter o mesmo fim, e é ele quem a lembra seu nome durante o filme.

Outra maneira que Yubaba tem de exercer seu controle sobre as pessoas é com uma falsa simpatia. Quando Sen vai bem no trabalho, no sentido de trazer lucro para a casa de banho, ela a parabeniza e a trata com carinho, características incomuns a personagem. A mulher faz isso para causar a falsa impressão de que seus empregados são queridos e valorizados ali dentro, quando, na verdade, ela só se interessa pelo o que eles fazem, e não pelas pessoas que são. Tanto é que, quando a menina faz alguma besteira, a sua chefe não pensa duas vezes em repreendê-la e ameaçá-la, voltando à sua personalidade habitual.

A perda da identidade não está somente presente no nome. Para trabalhar na casa de banho, Chihiro tem que descalçar seus tênis importados, levando em conta que no passado os japoneses todos andavam descalços dentro de casa, e trocar suas roupas modernas por quimonos, historicamente japoneses, para que assim possa se misturar aos demais e se tornar apenas mais uma ali dentro. No entanto, ela guarda seus sapatos e suas roupas, como uma lembrança de sua individualidade e sua vida fora dali.

O tema da despersonalização também está presente na maneira com as pessoas tratam umas as outras. Tanto Kamaji quanto Lin são grossos com Chihiro em um primeiro momento, não tendo tempo para gentilezas, e reclamando que ela está atrapalhando seus trabalhos. Isso mostra como as relações interpessoais não importam para eles, a única coisa relevante é seguir com suas tarefas. Até Haku, que antes tinha sido tão gentil, quando reencontra a protagonista em um ambiente formal de trabalho é ríspido e a repreende quando ela tenta conversar com ele; “sem conversa à toa”. Ele também a manda o chamar de Sr. Haku, deixando a menina confusa, se perguntando se existem dois Hakus diferentes. É como se aquele ambiente hostil que só valoriza o trabalho braçal e nada mais interferisse no comportamento das pessoas. No entanto a inocência e a essência humana de Chihiro fazem as pessoas mais próximas a ela se libertarem deste comportamento, e ela consegue desenvolver uma amizade tanto com Lin quanto com Kamaji, que a ajudam em sua jornada, e suas relações vão além do campo formal do trabalho.

Além disso, o excesso e ganância presente no universo de Chihiro, também se faz presente na casa de banho. Yubaba atende espíritos ricos e poderosos, pois sabem que eles pagam bem e os seus empregados parecem ser obcecados por ouro. Um exemplo disso é o personagem de Sem-Rosto na história, uma das figuras mais icônicas do filme.

Sem-Rosto, em um primeiro momento, é uma criatura tímida e acanhada, querendo fazer amigos e um lugar para pertencer. Ele fica do lado de fora da casa de banho, pois sabe que ali as pessoas são bem tratadas, mas não tem como entrar por não poder pagar. Percebendo Chihiro como uma pessoa gentil e educada, ele passa a segui-la esperando que ela deixe-o entrar dentro da casa. Em um momento, a garota esquece uma porta aberta, pelo o qual o espírito entra. Lá, vendo a ganância que move aquele lugar e as pessoas que se encontram nele, ele usa disso como uma forma para fazer as pessoas gostarem dele, dando ouro para os empregados, que os tratam com gentileza, em troca. Quanto mais tempo ele passa ali, mais ele vai comendo os alimentos que são dados a ele em troca das riquezas que ele carrega consigo, e mais ele cresce e vai engordando, simbolizando toda a fartura e falta de limites para a avareza humana, que cresce sem controle, até que explode, o que foi o que aconteceu com a bolha econômica japonesa dos anos oitenta.

A única que se recusa a pegar o dinheiro que ele oferece em troca de suas gentilezas, é Chihiro, que diz “não precisar” daquilo, ou seja, é a única pessoa daquele lugar que oferecia simpatiza e amizade a Sem-Rosto de forma genuína. Quando a situação cresce fora do controle dos empregados da casa de banho, e Sem-Rosto se torna uma criatura hostil, ficando tanto insaciável por comida e riquezas que passa a engolir aquelas pessoas, é Chihiro quem consegue acalmá-lo, enquanto os indivíduos que antes só eram amigáveis com ele por interesse, agora fugiam apavorados. A protagonista dá a ele metade de um remédio que havia consigo, e o espírito passa a vomitar tudo o que tinha comido desde que chegou ali, como se aqueles bens materiais e patrimônios fossem doenças que estivessem o envenenando e o transformando em um monstro. Quando ele finalmente vomita tudo o que havia engolido, se desintoxicando, Sem-Rosto volta a assumir uma atitude amigável e tímida, que tinha antes de entrar na casa de banho.

O nome Sem-Rosto não é apenas por causa de sua forma física (onde o que aparenta ser sua cara é apenas uma máscara, e sua boca está no meio de sua barriga, sem um rosto definido). Este nome também vem da falta de personalidade própria da criatura, que era formada e influenciada pelo ambiente onde se encontrava. Em um lugar mesquinho e regido pelo excesso de bens materiais, Sem-Rosto, inevitavelmente, se tornou um monstro guloso e ganancioso. Chihiro percebe que aquele lugar não faz bem a ele, e tenta arranjá-lo um novo lar. É apenas quando eles chegam na casa de Zeniba, a irmã gêmea de Yubaba, no fim do filme, que ela o encontra.

Zeniba é o oposto de sua irmã. Enquanto esta vive como a “rainha” de um lugar farto e controlado pelo dinheiro, Zeniba mora em uma pequena casa no meio da floresta, sozinha e sem muita influência do meio exterior. Ela também se prova uma mulher gentil, tratando Chihiro e seus companheiros com delicadeza. Ali se prova um ambiente perfeito para um ser como Sem-Rosto, sem o alcance de influências ruins, que o transformariam em um monstro de novo.

Outro problema aparente da sociedade espiritual é o machismo. Enquanto as trabalhadoras da casa de banho são mulheres jovens e belas, todos os espíritos que se banham ali são grandes e gordos, assemelhando-se a homens, com toda a sua imponência e destaque na elite da sociedade. Assim, fica implícito que aquelas mulheres estão ali para servir aqueles seres. Os homens que trabalham ali, que, ao contrário das mulheres, não aparentam serem humanos (com a exceção de Haku), ao invés sendo mais parecidos com sapos humanoides, se aproveitam das mulheres, muitas vezes dando trabalhos mais pesados para elas.

Assim, Miyazaki deixa claro que, tanto o mundo dos humanos, quanto o espiritual tem falhas. Quando a crise assolou o Japão, seu povo passou a olhar para o passado com nostalgia, se arrependendo de terem trocado seus costumes e sua cultura pelas facilidades que um sistema rico lhes proporcionava. O diretor pondera, mostrando o mundo dos espíritos, que representa o antigo Japão, também como uma sociedade falha, que o passado também não era perfeito, além de que não adianta chorar pelo leite derramado. Assim como a crítica relacionada à natureza x tecnologia, em Mononoke, não é determinista, aqui ela também não o é. Hayao compreende as facilidades que a modernidade nos proporcionou e não se opõem a elas, só aconselha seu público a não se deixar levar pelo conforto que os tempos atuais nos dão e deixar que eles ditem a narrativa a partir de agora, esquecendo quem éramos antes. Assim como Chihiro deve guardas suas roupas e tênis modernos, pois eles fazem parte de quem ela é, o Japão não pode simplesmente ignorar quem ele se tornou durante a bolha econômica e voltar a ser quem era. Tanto o passado quanto o presente compõem sua personalidade. O que ele pode fazer é aprender com os dois períodos, colher os frutos que eles geraram, e caminhar em direção ao futuro, fazendo a sua parte para que a época a seguir seja melhor que a atual, e a que veio antes.

Uma teoria muito famosa entre os fãs do filme é de que A Viagem de Chihiro fala sobre prostituição. É fato que, no passado, muitas casas de banho japonesas eram fachadas para bordéis. No entanto, eu não acredito totalmente nesta teoria. Miyazaki disse uma vez, numa entrevista, que acreditava que a indústria do sexo era uma representação perfeita para a sociedade moderna japonesa, mas é exatamente isto, uma representação. Eu não duvido que a casa de banho tenha sido escolhida como base da história por sua significância histórica, mas reduzir toda a crítica de A Viagem de Chihiro a uma simples alusão à prostituição é a limitar muito. A indústria do sexo é uma das que melhor representa toda a fartura e motivações hedonistas que guiam uma sociedade guiada pelo consumo, que é a verdadeira crítica que o diretor faz neste filme, acredito eu.

Falando em Mononoke, a crítica ambientalista também se faz presente aqui, só que de forma menor, não sendo o ponto principal da história. O próprio fato de o parque de diversões abandonado onde Chihiro e seus pais entram no começo do filme estar onde anteriormente era um rio é um comentário sobre a relação da sociedade com a natureza. Como seu pai disse, era comum locais como aquele abrirem as portas durante a bolha, apenas para falirem com a crise. Com o Japão enriquecendo tanto a ponto de não saber mais fazer com o dinheiro, muito dele foi usado para construir locais supérfluos como parques de diversões, em despeito à natureza, que era engolida em meio ao mundo urbanizado que crescia cada vez mais, muitas vezes sem necessidade.

Outro momento onde isso fica evidente, é quando um espírito gosmento e fedido, que deixa um rastro podre por onde passa, sendo chamado de “espírito fedorento”, vai à casa de banho. Yubaba e seu orgulho querem proibi-lo de entrar, não querendo manchar a reputação do local com um ser daqueles, colocando todos os seus empregados em frente à porta para que ele não entre. Ainda assim, o espírito passa por cima deles e entra no local. A mulher coloca Chihiro, agora Sen, para dar banho nele, enquanto ela assiste de longe, se divertindo vendo a menina se atrapalhando em sua tarefa, e torcendo para que ela falhe. Enquanto trabalha, Chihiro percebe que há algo saindo para fora do corpo da criatura. Com a ajuda de todos os outros empregados da casa, e até da própria Yubaba, eles conseguem puxar aquela coisa de dentro do monstro, que se mostra não ser um, mas diversos objetos que saem do interior da criatura. Limpo, o “espírito fedorento” na verdade é um espírito do rio, que estava tão poluído a ponto de se tornar irreconhecível. Ao sair, ele deixa muito ouro para trás. Yubaba, que antes não queria deixá-lo entrar, por puro preconceito, agradece Chihiro por ter cuidado de um hóspede que se revelou extremamente lucrativo.

A crítica também está presente no personagem de Haku. Quando está próxima do garoto, Chihiro tem visões que passam em sua cabeça, que mostram ela se afogando em um extenso corpo d’água. Mais próximo do final do filme, ela finalmente percebe o que está acontecendo; Haku é o espírito de um rio, onde ela, uma vez, se afogou quando mais nova, que, hoje em dia, foi aterrado, para que casas pudessem ser construídas ali. Assim como ele a ajudou, empurrando seu corpo para a margem, a protagonista o ajuda descobrindo seu verdadeiro nome; Kohaku, o nome do rio. Lembrando seu nome verdadeiro, o garoto não está mais sobre o controle de Yubaba, se tornando um espírito livre.

Mesmo com esse embate entre tradição x novo estando muito presente no filme, e a questão ambiental também aparecendo, talvez o ponto principal de A Viagem de Chihiro seja o amadurecimento e a passagem da infância para a maturidade.

Antes deste filme, Hayao Miyazaki se encontrava aposentado, decidindo que Princesa Mononoke seria seu último filme. Diversos motivos contribuíram para esta decisão, entre elas, a morte de Yoshifumi Kondo, o diretor de Sussurros do Coração, que acreditasse ter morrido de estresse por conta do trabalho. Kondo era a aposta tanto de Miyazaki quanto de Takahata para seguir seus passos e, um dia, se tornar o chefão do Studio Ghibli. Parando para analisar, talvez a morte dele tenha contribuído para as críticas que Hayao fez em Chihiro em relação a ambientes inóspitos de trabalho. Mas, enfim.

Em uma viagem na montanha com sua família e amigos, entre eles alguns que tinham filhas da idade aproximada a de Chihiro, o diretor percebeu que nunca havia dirigido um filme para meninas de dez anos. Esta ideia o inspirou a sair da aposentadoria e trabalhar em um novo projeto, desta vez com este público em mente. Buscando inspiração, Hayao leu diversos mangás com a temática shoujo (voltados para o público feminino; “shoujo” significa garota em japonês). Ao lê-los, no entanto, ele percebeu que a maioria das histórias tinham como temáticas namoros e romances, que não era o que meninas “guardavam em seu coração” segundo ele. Miyazaki queria fazer um filme onde jovens garotas “pudessem ser heroínas”.

Muitos dos filmes do diretor são protagonizados por personagens jovens. Podemos perceber que os protagonistas de Miyazaki tem uma visão diferente da maior parte dos personagens com quem eles compartilham suas histórias, vendo o mundo de forma diferente, seja por suas crenças ou por uma inocência, típica das cabeças das crianças, que ainda não estão poluídas por um senso de cinismo presente nos adultos, vendo o universo que as cerca de formas mais doce e menos densa e pessimista, o que trás uma sabedoria a essas pessoas, por mais que, para a maioria de nós, crianças sejam tidas como bobas e, muitas vezes, ignoramos o que elas tem a dizer.

A sabedoria presente nas vozes das crianças também está presente em Chihiro. Por ser ainda muito nova, ela não foi totalmente influenciada pela sociedade consumista, que nem seus pais, e por isso pode perceber que há algo de errado no ambiente onde eles se encontram, enquanto os adultos estão cegos pela gula, e ignoram seu conselho quando ela diz para eles não comerem aquela comida. Quando eles se transformam em porcos, aquelas palavras se provam certeiras, mas aí, já é tarde demais.

No começo do filme, Chihiro tem características típicas de uma criança. Ela chora, faz manha, e reclama atenção dos pais. Ela também é muito medrosa e dependente, o que piora a situação para a garota quando é transportada para um mundo novo e desconhecido, sem um adulto para ajudá-la.

A medida que a história passa, a protagonista vai aprendendo a amadurecer, e se desprende dessas características infantis. O fato de ela ter que trabalhar naquele mundo simboliza sua passagem para o mundo adulto, e a própria mudança em seu nome tem uma função narrativa semelhante. Ambas ações representam a adaptação de Chihiro a um mundo novo, onde terá que se virar sozinha, e deixar o passado para trás. Isso reflete o lugar que a menina estava no começo do filme, se mudando para uma nova cidade, e reclamando por ter que deixar seus amigos para trás. Neste caso, no entanto, reclamações não irão solucionar os seus problemas, e ela tem que aprender a aceitar as mudanças, e não lutar contra elas. Outro momento que simboliza isso é logo quando a protagonista se encontra transportada para o mundo espiritual. Ela percebe que aos poucos está desaparecendo. É aí que Haku aparece e a dá algo para comer, explicando que ela terá que comer algo para não desaparecer. Apesar de resistente, ela aceita o alimento. Miyazaki explicou que esta cena representa, justamente, a atitude da garota em relação à mudança, e que não podemos lutar contra elas, tendo que aceitá-las e fazermos o melhor da situação que nos encontramos.

Ao invés de seguir uma simples fórmula, onde a protagonista tem que vencer um obstáculo no seu caminho, e assim aprender uma lição no final que a muda como pessoa, o desenvolvimento de Chihiro é muito mais orgânico. Seguimos Chihiro aprendendo a se virar naquele mundo, pouco a pouco, tendo que usar sua inteligência e criatividade para resolver seus problemas. Sua mudança é gradual, e ao invés de nos sentirmos seguindo uma narrativa, nós realmente nos sentimos transportados para um mundo novo junto com Chihiro. Parte disso tem a ver com a forma com que Miyazaki cria seus roteiros. Ao invés de já ter as suas histórias prontas quando começa a desenvolver seus trabalhos, o diretor vai trabalhando em seus projetos junto com ela. “Não sou eu que crio o filme. O filme se cria sozinho e eu não tenho opção a não ser segui-lo”. Isto faz o desenvolvimento da protagonista ao longo da história muito mais natural, com toda a equipe vivendo a vida da personagem passo a passo, e o público sente o mesmo.

Com o tempo, a protagonista vai se provando a personagem mais inteligente e engenhosa naquele meio, ao contrário da menina tímida e amedrontada do começo da história, que apenas seguia os passos de seus pais, acanhada, por mais que uma voz em sua cabeça a dissesse para não o fazer. É Chihiro quem descobre a verdadeira identidade do espírito do rio, é Chihiro quem consegue acalmar Sem-Rosto e trazê-lo de volta a sua forma inicial, e, quando Haku está em apuros, Chihiro decide ajudá-lo por conta própria, e é ela quem acaba o libertando de Yubaba.

Fazendo um paralelo com a menina está Boh, um bebê gigante, filho de Yubaba. A mulher o deixa trancado em seu quarto, apenas com os seus brinquedos. Ela diz que quer o proteger, e que o mundo fora dali é sujo e ele pode pegar germes. Essa superproteção acaba sufocando o garoto, que mora em uma bolha, e não tem a menor ideia de como é o mundo real. Sendo extremamente mimado e birrento, ele representa a pessoa quem Chihiro era, antes de ter que superar os próprios problemas, sem grandes ajudas. Mais tarde, Zeniba transforma o sobrinho em um rato, ironicamente um animal conhecido por sua sujeira, que era do que sua mãe queria o proteger. Em sua forma animal, Boh acompanha Chihiro em sua aventura, e descobre o mundo fora de seu quarto, muito mais excitante do que viver trancado sobre quatro paredes.

Uma das regras do mundo espiritual era que ninguém poderia ajudar Chihiro, pois as pessoas daquele universo têm que resolver os próprios problemas. No entanto, a garota quebra essa regra, ajudando Haku a resolver os dele. Quando Haku tenta fazer o mesmo por Chihiro, Yubaba argumenta sobre aquela mesma regra. Mesmo já tendo a quebrado uma vez, e sabendo de que era possível fazê-lo, a menina aceita as condições da mulher, como a prova final de que era madura o suficiente para salvar a si mesma. E assim o faz, conseguindo resgatar seus pais e voltar para casa.

Antes de ir embora, no entanto, à Chihiro é imposta uma última regra, “não olhar para trás”. Essas palavras também simbolizam o amadurecimento. Não podemos viver de nostalgia e memórias (lição que Miyazaki também estava ensinando ao Japão, neste filme), temos que seguir em frente sempre e persistir, carregando conosco os ensinamentos que aprendemos em nossa jornada e os usando no futuro. Se a garota olhasse para trás, duvidando de seus próprios passos, ela nunca conseguiria ser totalmente livre. Para voltar ao mundo normal, teria que deixar um pedaço seu no mundo espiritual e com as pessoas que conheceu lá, assim como, na vida, e na nossa jornada para o amadurecimento, devemos deixar pedaços nossos no passado, e seguir em frente, nos reconstruindo e nos reinventando, sempre.

Em A Viagem de Chihiro, Miyazaki, mais uma vez, opta por deixar uma narrativa maniqueísta de lado. Todos os personagens têm suas falhas, e erram no decorrer da história, inclusive a própria protagonista, mas todos também possuem características que os redimem, incluindo a própria Yubaba, que, com o amor que possui por seu filho, Boh, mostra um lado mais humano, e que não é um monstro completo. Assim, ao invés de delimitar seus personagens como sendo inerentemente maus, ou inerentemente bons, o diretor mostra que há as duas coisas dentro de cada um, e cabe a nós fazer as escolhas que refletem por qual lado nós agimos. A própria escolha narrativa de Miyazaki, de não “derrotar” o mal totalmente no final do filme, solucionando todos os problemas de seu mundo, reflete a decisão do diretor de querer manter um realismo no universo que ele mesmo criou. Por mais que Chihiro consiga resgatar seus pais e voltar para casa, Yubaba continua reinando sobre a casa de banho, controlando a vida de seus empregados. Através disso, Hayao nos mostra que jamais será possível um final feliz absoluto, e que, novamente, cabe a nós fazermos as escolhas certas para afastar influências ruins, o que Chihiro, sabiamente, é capaz de fazer até os créditos subirem à tela.

Outra escolha, muito inteligente de Miyazaki, na construção de seu filme são a inclusão de momentos a qual ele chama de “ma” ou “vazio”. “As pessoas que fazem filmes têm medo do silêncio, então eles querem colocar uma explosão à cada cena” disse o diretor. “Eles têm medo de que o público se entedie. Mas só porque o filme é 80% intenso o tempo todo, não significa que as crianças os darão a benção de sua concentração. O que importa são as emoções que permeiam o filme — que você nunca abra mão delas”. Este é um dos traços mais importantes da filmografia de Miyazaki, o porquê de esses filmes dialogarem e significarem tanto para tantas pessoas, ele valoriza os sentimentos que são passados com suas histórias. Assim, as cenas “ma” são aquelas mais calmas e mais introspectivas, que dão chance de o público respirar e digerir o que está acontecendo. Em um mundo tão exagerado e inventivo quanto o de A Viagem de Chihiro, é fácil de nos perdermos no meio da história, e essas cenas mais calmas nos ajudam a acompanhá-las, pois valorizam também os seus personagens, e não apenas o que acontece com eles. Essa sabedoria faltou em Miyazaki em Nausicaä do Vale do Vento, onde a história aumentava cada vez mais e o público se perdia com tantos detalhes e coisas acontecendo ao mesmo tempo. Ironicamente, Nausicaä foi o primeiro filme de Miyazaki a começar padrões que o seguiriam por toda a sua filmografia, que agora chegaram a seu ápice com A Viagem de Chihiro, dando uma sensação de dever cumprido.

Agora, me vejo na posição de me contradizer. Anteriormente, disse que Princesa Mononoke era meu filme favorito de Hayao Miyazaki, e que todas as suas características, que davam personalidade a seus filmes estavam em seu apogeu, e que aquele era seu filme mais bem trabalhado e lapidado e que nunca conseguiria repetir seus trejeitos com tanto sucesso. Talvez eu tenha dito tudo isso por esquecer o quão mágico e lindo é A Viagem de Chihiro. Quando eu fui buscar a opinião de outras pessoas em relação à Princesa Mononoke, vi algumas pessoas se queixando, chamando o filme de confuso e superestimado. Apesar de eu não me arrepender de todos os elogios que fiz à Mononoke (ainda acho um filme excelente e é um, se não o, dos meus filmes favoritos de Miyazaki), eu entendo estas críticas. Ao contrário de Chihiro, Mononoke depende muito de seu roteiro, e da compreensão do espectador do universo onde a história se passa. Chihiro não.

O trunfo de Chihiro é que todos nós podemos nos identificar com a personagem. Chihiro é uma menina comum, em meio a um mundo fantasioso. O universo onde o filme se passa é como se fosse um sonho. Quando sonhamos, nós nunca paramos para nos questionar todas as coisas inusitadas e mágicas que estão acontecendo em nossas cabeças. Em Chihiro, isso também ocorre, porque apesar do ambiente mágico e lúdico, a história de A Viagem de Chihiro é bem simples. As magias e particularidades são só detalhes que realçam a história. Nós não precisamos entender porque elas ocorrem, ou o que elas significam, e isso torna o filme muito mais atrativo, também, para o público alvo das animações, as crianças.

O mundo de A Viagem de Chihiro é tão vasto e amplo que nos dá a sensação de ser muito maior do que nos é mostrado. A mitologia e particularidades daquele universo que nós vimos parece ser a ponta do iceberg, e nós queremos entrar no mundo espiritual nós mesmos, e termos nossas próprias aventuras.

A animação é a principal causadora desta sensação. Com um detalhamento incrível, cada cena está repleta de detalhes, cada cena nos mostra algo novo, cada cena aumenta a sensação de descoberta e novidade que aquele mundo nos proporciona. Assim como Princesa Mononoke, Miyazaki continuou a usar computadores como suporte para sua arte em 2-D, e aqui ela é ainda mais bem-sucedida. Com exceção de duas ou três cenas, quase não se é perceptível o uso de máquinas neste filme. Os computadores dão muito mais movimentos à arte do filme, que, apesar de ser belíssima em trabalhos anteriores, acabava ficando estagnada em alguns momentos, por limitações do meio mesmo. Hayao prova a sua genialidade ao mostrar que, assim com a crítica tecnologia x natureza, em Mononoke, ou tradição x modernidade, em Chihiro, se é possível casar o melhor dos dois mundos, e que a animação tradicional e a computadorizada não se excluem, e sim se complementam. Espero que, um dia, Hollywood aprenda esta lição, e resgate as animações em 2-D novamente.

A inspiração de Miyazaki para o ambiente da casa de banho veio de uma casa de banho de sua cidade natal. Quando era pequeno e passava por ela, o diretor sempre sentiu uma aura de mistério vindo do lugar. Próxima a uma das banheiras havia uma porta, que sempre despertou sua curiosidade sobre o que havia ali, o que o inspirava a criar diversas histórias em sua cabeça que tinham como cenário aquele local.

Exemplo de arquitetura expressada no filme.

Para estudar melhor a arquitetura tradicional japonesa, presente no filme, Hayao visitou constantemente um museu voltado para a arquitetura enquanto trabalha na produção deste filme. Uma pousada, que costumava frequentar, também serviu de inspiração.

Como eu citei, este foi o primeiro filme de Miyazaki a ter um impacto na maior parte do mundo, não só no Japão. Muito disso, se deve a Disney. John Lasseter, um dos principais nomes da Pixar, é amigo de Miyzaki e, querendo que mais pessoas conhecessem seu trabalho, conseguiu que seu estúdio pegasse seu filme para a distribuição, sendo também o responsável pela dublagem.

Graças a isso, Miyazaki e seu estúdio conseguiram, de uma vez por todas, conquistar o mercado internacional, ganhando até o Oscar por este filme. A Viagem de Chihiro é, inclusive, o único filme, até os dias de hoje, de nacionalidade não americana a receber a estatueta de Melhor Animação. O fato de conseguir reconhecimento em um prêmio tão controlado pelo mercado interno, e ditado, muitas vezes, pelo clubismo, só é mais uma comprovação de toda a excelência do diretor, especialmente nesta obra.

Hayao, aliás, se recusou a atender o Oscar naquele ano, 2003, em protesto contra a guerra no Iraque, com Estados Unidos em uma posição central no conflito, provando que sua posição pacifista e contra as guerras, que permeia muitos de seus filmes, não está só presente em suas histórias, mas que ele carrega aqueles valores consigo.

A Viagem de Chihiro se tornou um filme icônico, figurando, em muitas listas, um espaço entre “os melhores filmes do século XXI” ou até “os melhores filmes de todos os tempos”, e com razão. Eu me lembro de ir ao cinema assisti-lo quando tinha quatro ou cinco anos, e carrego essa história comigo desde então, retirando algo novo ou singular dela a cada nova assistida. Tenho certeza que continuará tão novo e relevante para mim quando o mostrar para meus netos. A Viagem de Chihiro não é apenas uma obra prima das animações, ou uma obra prima do cinema. É uma obra prima da arte de se contar histórias. E não há melhor contador do que Hayao Miyazaki.

Amanhã: O Reino dos Gatos (2002)

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