Da Colina Kokuriko (2011)

Miguel Serpa
8 min readFeb 21, 2018

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Depois do desastroso Contos de Terramar, Goro Miyazaki consegue se redimir em seu segundo filme, Da Colina Kokuriko. Baseado em um mangá homônimo de 1980, da autora Chizuru Takahashi, o filme teve seu roteiro confeccionado pelo próprio Hayao Miyazaki. Contando uma simples história slice of life, Da Colina Kokuriko se sai bem melhor que o anterior do diretor, talvez por ser mais focado e menos pretensioso, e por ter uma participação maior do Miyazaki pai em sua produção.

O filme se passa em 1963, em meio às preparações para os jogos olímpicos que chegariam ao Japão no ano seguinte. Umi é uma estudante do ensino médio que mora em uma cidade portuária japonesa. Ela tem o hábito de içar bandeiras toda manhã, em respeito aos marinheiros. Ela aprendeu isso com seu pai, também marinheiro, que morreu na guerra da Coréia. Sua mãe estuda no exterior e a menina vive em uma casa em meio de diversas primas e tias. Ainda assim, ela sente falta de sua família mais próxima, e fica solitária em meio àquela multidão que divide a casa com ela.

Shun estuda na mesma escola que a menina, e, ao passar de barco toda manhã em frente a casa dela no barco de seu pai, nota as bandeiras que ela ergue, e se apaixona. Os dois se aproximam ao longo do filme, e os sentimentos que tem um pelo outro vão ficando mais fortes. Porém os dois descobrem algo sobre o passado de suas respectivas famílias que pode atrapalhar sua relação.

Em meio ao drama envolvendo os dois personagens, há a comoção dos alunos da escola em relação a antiga casa de clubes, onde os alunos se encontram para exercer atividades extracurriculares. Boa parte do corpo estudantil quer demolir aquele local, por o considerarem velho e obsoleto, enquanto que Shun e seus amigos defendem a permanência da casa, que possui um grande valor emocional para eles. Umi convence as meninas da escola a fazerem coro às vozes dos garotos, defendendo a permanência da casa, e os dois fazem o que podem para que ela não seja demolida.

Como eu disse, Da Colina Kokuriko é mais um slice of life do estúdio, que prova seu potencial de conseguir emocionar até com as mais simples histórias, e encontrar beleza em momentos banais do cotidiano, fazendo deles interessantes para seu público. Também há um maior uso do humor, o que ajuda a passar a sensação de ser um filme mais modesto que os seus companheiros de estúdio, que priorizam, em sua maioria, o clima aventureiro e uma atmosfera de descobrimento, do que o humor propriamente dito.

Kokuriko remete bastante à Sussurros do Coração, sendo os dois voltados para o romance, com dois protagonistas adolescentes que se apaixonam e tem que lidar que o período conturbado da adolescência. O primeiro filme, no entanto, é objetivamente melhor, captando melhor as angústias dessa época da vida, e Kokuriko soa apenas como um primo pobre de Sussurros. Ainda assim, é um bom entretenimento e vale a assistida.

O diferencial de Da Colina Kokuriko está nas críticas sociais que permeiam a história. Por trás da narrativa simples e doce do filme, podemos perceber que Goro quis retratar a realidade do período pós-guerra japonês e todas as novidades que ele trazia. Como eu reforcei em minha resenha de A Viagem de Chihiro, o pós-guerra e todas as modernidades que ele trouxe consigo para o país, que se firmou como um grande polo econômico nessa época, resultou em uma bolha econômica que se formou sobre o Japão, que crescia cada vez mais próspero e rico até a década de noventa, onde a bolha explodiu e o país entrou em crise. Se Chihiro aborda a realidade japonesa enquanto o país aprendia a lidar com a crise e com todos os malefícios que seus hábitos consumistas trouxeram, aqui nós vemos os primórdios dessa época de louros para os japoneses, que começava a se modernizar e ia deixando suas particularidades e cultura de lado, visando se adequar aos moldes capitalistas.

O maior exemplo disso é a briga entre os alunos pela casa de clubes. A maior parte dos alunos argumenta a necessidade de trocar a casa atual por um prédio mais moderno, querendo se adequar às mudanças que os tempos atuais traziam consigo, ainda mais tendo em vista que as Olimpíadas se aproximavam cada vez mais e traziam consigo o frescor e as possibilidades de uma sociedade moderna, onde o antigo Japão já não teria mais espaço. Shun e seus amigos, por outro lado, não acreditavam que era necessário demolir o que é antigo e negar nossas raízes para que déssemos espaço ao novo. “Não há futuro para as pessoas que veneram o futuro e renegam o passado”, diz o protagonista, em uma discussão durante a assembleia dos alunos.

Por Da Colina Kokuriko ser um filme mais direto, sua mensagem também o é, não sendo passada através de simbolismos a serem interpretados como em Chihiro, e sendo explícita nos diálogos de seus personagens, mas nunca expositivos demais, ou maçantes. Essa questão de valorizarmos o passado também se dá nos arcos narrativos específicos de seus dois protagonistas, que, ao longo da história, vão descobrindo mais detalhes sobre o passado de suas famílias, tendo que lidar com eles no presente. Ambos os personagens também sentem os impactos da guerra até hoje, tendo perdido parentes tanto na Segunda Guerra, quanto na Guerra da Coréia, o que pode ser relacionado com o próprio Japão, que sente as sequelas, sobretudo da Segunda Guerra, até hoje. Assim, essa questão da memória e do passado é o tema principal do filme, estando presente tanto em sua atmosfera e em sua mensagem mais ampla, quanto nos pormenores de seus personagens.

Sem querer revelar muito da história, vou apenas comentar um pouco sobre o plot twist que ocorre no meio do filme. Eu vi críticas a ele, dizendo que ele não se encaixa bem na história, e soa mais como uma tentativa de criar um melodrama ou uma comoção que movimente a narrativa, não se encaixando com o espírito mais corriqueiro e realista do filme. Eu não concordo. Acho que ele foi feito na medida certa, e ajudou a aprofundar melhor os personagens, realçando seus dramas de maneira realista e não exagerada. Acho também que ele não se arrastou muito e não ocupou muito espaço dentro da história, o que, em si, já é outra crítica (por que se deram ao trabalho de inseri-lo na história em primeiro lugar se não iam usar todo o seu potencial narrativo?), mas, para mim, isso se provou positivo, pois não tirou muito o enfoque do clima mais humano da obra, não a tornando em um melodrama, o que, de fato seria distrativo e não combinaria com a essência do filme. Gosto também da maneira com a qual ele se encerrou, não se arrastando muito e se finalizando de uma maneira sucinta. De qualquer maneira, acho que seria o caso de cada um assistir o filme, e tirar suas próprias conclusões a respeito dessa decisão narrativa.

O tema da nostalgia embala todo o filme, que capta bem o clima seiscentista, década onde o filme se passa, tanto na arte (nas ruas da cidade, os automóveis, as roupas dos personagens), quanto na trilha sonora, que, assim como o filme, é mais simplista. Ao invés das músicas instrumentais que Joe Hisaishi reserva para os filmes do pai do diretor desta obra, que combinam com a sensação de novidade e descoberta que os universos próprios de Miyazaki nos passam, aqui músicas mais comuns embalam o filme, músicas que nós ouviríamos nos rádios da época, que combinam com o estilo enxuto de Kokuriko.

Kokuriko passa a sensação de dialogar bastante com o público japonês em específico, sendo menos universal, como outros filmes do Ghibli. Isto fica claro quando analisamos o impacto que teve em solo internacional, bem menor que os filmes mais estrondosos de Hayao Miyazaki, por exemplo. Por usar bastante da nostalgia em sua história, através do passado do Japão, é compreensível que os japoneses se identificaram mais com este filme, do que o público geral. Não é atoa que este é um dos filmes mais desconhecidos do estúdio. Vale notar também que muitos dos filmes menos populares do mesmo, como Only Yesterday ou Pom Poko, também tem uma leitura maior da sociedade japonesa, e não de uma forma que possa ser passada para o resto de nós (como A Viagem de Chihiro), o que faz com que, inevitavelmente, estes filmes sejam mais populares entre o público interno, e não se adaptem tão bem ao o resto do mundo.

Mesmo com a estética no filme mantendo os dois pés no chão, e os animadores se dando menor liberdade artística, o detalhamento típico desta casa de animação continua ali, e as ruas da cidade são muito lindas de se ver, assim como as paisagens e cenários, todos muito bonitos e elegantes, provando que o estúdio não deixa a peteca cair mesmo em seus trabalhos menos incrementados. Quer dizer, com exceção de Contos de Terramar, onde, combinando com a história, a arte era a pior que o Studio Ghibli já nos entregou. O fato de, aqui, o filme ser esteticamente lindo, ajuda a provar como Goro melhorou bastante em sua segunda obra.

A animação de Da Colina Kokuriko foi afetada pelo terremoto que acometeu o Japão em 2011. Ainda assim, os animadores não se deixaram abalar e não deixaram que tal casualidade atrapalhasse o projeto, determinados a cumprir o prazo estipulado originalmente. Mostrando como levam a sério seus trabalhos e, em um ato que deixa claro toda a dedicação e empenho que viraram sinônimo do Studio Ghibli, os responsáveis pelo filme viraram a noite para conseguir se manter no prazo, e o filme não mostra nenhuma sequela desta situação, com a animação em seu estado primoroso que nos vem a cabeça quando pensamos em Ghibli. São situações como essa que mostram o porquê desta casa ser um dos estúdios mais queridos e bem-conceituados pelo público, e o porquê de ela atrair tantos fãs.

Em seu segundo trabalho como diretor, Goro Miyazaki mostra toda a sua evolução e deixa claro o seu potencial, e desta produção de pai e filho sai um filme honesto e sincero, que não tenta inventar a roda ou descobrir a pólvora, buscando apenas entreter e trazer um sorriso ao rosto de seus espectadores. Missão cumprida. E mais uma vez, o Studio Ghibli provando que mesmo em seus menores e menos conhecidos trabalhos, há uma grande dose de sentimento e emoção sendo pintada por debaixo dos panos.

Amanhã: Vidas ao Vento, o último filme de Hayao Miyazaki (2013)

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