O Reino dos Gatos (2002)

Miguel Serpa
6 min readFeb 16, 2018

--

Depois de seu projeto mais trabalhoso e ousado na forma de A Viagem de Chihiro, que levou o Studio Ghibli a um novo patamar e o rendeu fama a nível mundial, os animadores da casa de animação resolveram descansar, e seu próximo projeto é um filme pequeno em todos os sentidos, mas não deixa de ter seu charme e de entreter. Estamos falando de O Reino dos Gatos, de 2002 e dirigido por Hiroyuki Morita.

Haru é uma estudante japonesa como outra qualquer. Um belo dia, ao andar pela rua, ela vê um gato prestes a ser atropelado e corre para o seu socorro, o tirando do meio do asfalto. É então que uma coisa inusitada acontece; o animal se levanta sobre duas patas e a agradece. Naquela noite, uma caravana de gatos passa na frente de sua casa e se identificam como fazendo parte do Reino dos Gatos. O rei a esclarece que o gato que ela tinha salvado era ninguém menos do que o príncipe daquele reino. Acidentalmente, Haru concorda em se casar com o príncipe, e é sequestrada e levada até o reino dos gatos, onde, aos poucos, vai se transformando, também, em uma gata. Felizmente ela conhece alguns animais que estão dispostos a ajudá-la, o gato Barão, que na realidade é uma estátua de um gato que possui vida, Muta, um gato grande e balofo, e Toto, também uma estátua que possui vida, desta vez de um corvo. Juntos, eles tentam se desvencilhar das garras do rei e trazer Haru de volta para casa.

Barão em Sussurros do Coração.

O Reino dos Gatos pode ser considerado um spin-off de Sussurros do Coração. Isto se dá porque, o personagem de Barão também estava presente neste filme, só que apenas em sua forma como estátua, e tinha um espaço muito mais simbólico do que propriamente narrativo. A protagonista, Shizuku, escrevia histórias sobre o personagem, onde ele recebia vida e morava em um universo mágico, que inspirou o universo de O Reino dos Gatos. Muta também aparecia em Sussurros do Coração, mas apenas como um gato comum, sem as características antropomórficas dos gatos deste filme. O Reino dos Gatos, aliás, é baseado em um mangá da mesma autora do mangá que inspirou Sussurros. Devido ao sucesso do personagem de Barão na primeira obra, ela resolveu escrever a segunda. Tirando os dois personagens, no entanto, os dois filmes se passam em universos muito diferentes um do outro. A relação entre os dois filmes é o que dá o título deste segundo em inglês, The Cat Returns (O Gato Retorna).

Muito da atmosfera deste filme pode ser compreendida ao descobrirmos que o projeto começou apenas como um curta estrelando gatos. Miyazaki queria colocar Barão e Muta neste curta, e convenceu a autora de Sussurros do Coração, Aoi Hiiragi, a escrever uma continuação do mangá de Sussurros, para que ele pudesse se inspirar. O curta, assim como Ocean Waves, funcionaria como um teste para os animadores mais jovens do estúdio de provarem seus talentos. Aos poucos o projeto foi se escalando e terminou em um filme, porém de apenas setenta e cinco minutos, bem mais curto do que a duração normal dos filmes do Ghibli, que vinham crescendo cada vez mais e mantinham uma média de duas horas.

A atmosfera do filme também é muito menor, em escala, se comparada com os outros filmes do estúdio. Ainda mais tendo sucedido A Viagem de Chihiro, um dos filmes mais ousados e monumentais da casa de animação, não só tendo uma animação rica e se ambientando em um universo próprio muito particular e detalhado, mas também com uma grande quantidade de simbolismos e subtextos por trás da narrativa. O Reino dos Gatos é bem mais direto e menos ousado em sua narrativa, apenas mostrando uma aventura divertida e descontraída, sem grandes coisas por trás disso.

Obviamente, isto não é um demérito. Nem todo o filme precisa possuir uma grande crítica e mensagem por trás de sua história, ainda mais animações, onde, na maioria das vezes, sua principal função é entreter, principalmente o público mais novo. E O Reino dos Gatos cumpre muito bem esta função, sendo um filme divertido e doce, que prende a sua atenção até o final (o fato de ser praticamente um média-metragem também ajuda). Remete muito aos filmes da Disney da década de oitenta, que eram, também, menores em suas dimensões, especialmente se comparados aos musicais grandiosos da renascença que surgiriam na década anterior. Estes filmes eram mais despretensioso e tinham uma sensação de aventura descompromissada (na maioria das vezes também figurando animais antropomórficos no protagonismo). O Reino dos Gatos é similar a filmes de sessão da tarde em forma animada, ou a filmes em desenho animado que passam sábado de manhã na tevê aberta enquanto as crianças tomam café, e não tenta ser mais do que isso, por isso que funciona tão bem.

É um filme bem descontraído também, ficando mais no campo do humor e da aventura na maior parte do tempo, e não se aventurando, também, pelos campos da melancolia e reflexão, que estão presentes nos filmes mais ousados e conhecidos do estúdio

A animação também é bem mais simples, até mesmo nos traços dos personagens, que diferem um pouco do que normalmente é usado pelo estúdio para desenhar os seres que figuram suas histórias. Ainda assim, é uma arte bem singela, que ajuda a manter a sensação de simplicidade e modéstia que percorre o filme todo. O Reino dos Gatos é bem bonitinho de se ver, “bonitinho” sendo a palavra-chave; nada de excepcional, mas um ambiente fofo e delicado, que combina com o estilo da obra como um todo. As cores pastéis também ajudam a compor o ambiente pueril da história.

Elementos bastante criativos também aparecem na história de O Reino dos Gatos, mesmo que nada tão elevado como os dos universos de A Viagem de Chihiro ou Princesa Mononoke. Eles estão lá apenas para aumentar a sensação de aventura e de descoberta daquele mundo, enquanto nós nos sentimos como Haru, transportada para um universo novo e se deparando com todas aquelas maravilhas. Aliás, eu adoro como muitos dos protagonistas do Studio Ghibli, como Haru, Chihiro, Ashitaka e as irmãs de Totoro, muitas vezes parecem estar representando o próprio público enquanto eles desbravam aqueles universos tão particulares e mágicos que os animadores do estúdio nos proporcionam.

No fim, Haru volta para a sua vida normal, com Barão e seus amigos a deixando em sua escola, como se nada tivesse acontecido. É exatamente assim que nos sentimos ao ver um filme do Studio Ghibli, que nos transporta para um mundo próprio e singular, que nos dá a sensação de que tudo pode acontecer e nos liberta de nossas rotinas, apenas para voltarmos para a mesma quando os créditos sobem, guardando conosco apenas a sensação e o gostinho daqueles universos, que nos dão forças para encarar nosso cotidiano parado e tedioso.

O Reino dos Gatos é um filme honesto e muito divertido. Sua única função é entreter e nos passar aquela sensação de magia e possibilidades, tão típica do Studio Ghibli, não tentando ser mais do que isso em nenhum momento. Ao abraçar sua simplicidade, este filme se torna mais mágico do que seria se caísse na pretensão de ser grandioso ou reflexivo. O filme nada mais é do que um sopro de ar fresco que nos trás a sensação de descoberta e diversão típica da infância, e que deixa um gostinho de quero mais no final.

Amanhã: O Castelo Animado, de Hayao Miyazaki (2004)

--

--