"TERRA PRETA?"

Miguel Pinheiro
6 min readJul 21, 2020

Entrevista para o jornal PÚBLICO

O projeto audiovisual do artista português Miguel Pinheiro, quer mostrar os perigos da “civilização” para os povos indígenas brasileiros, ao mesmo tempo que tenta preservar o passado e salvar a floresta.

A indígena Kokoí na atribulada tarefa de colher algumas bananas na floresta. Todas as manhãs, durante pequeno-almoço, Kokoí me ensinava algumas palavras na língua. [Aldeia Xikrin, Pará — Brasil 2019] ©MiguelPinheiro

[ Transcrição da entrevista completa feita pelo jornalista José Volta e Pinto, do Jornal Público (Portugal), publicada a 20/06/2020, com o título “Miguel filmou os indígenas brasileiros para salvar “a vida de todos nós” ]

José Volta e Pinto — Quanto às tais realidades, começo então por perguntar como é a dinâmica entre a cidade de Altamira e os transeuntes indígenas? Uma vez que essa acaba por ser “a ponte” entre a realidade indígena, a realidade urbana e, além disso, o choque civilizacional de onde resultam os maus tratos e a corrupção associada aos grandes empreendimentos.

São nove etnias indígenas na região do Médio Xingu, nove línguas, nove culturas, nove ideias de como surgiu o mundo e qual o nosso lugar nele é. Estamos no terceiro maior município do mundo, Altamira, e aqui tudo é grande, exagerado, hipérbole feita floresta e rio, mais recentemente, feita barragem também. Belo Monte é a terceira maior hidroelétrica do planeta, com sua chegada a população da cidade inchou, ribeirinhos perderam suas casas, o rio perdeu seus peixes, a floresta suas árvores e quase todos perderam direitos… Hoje Altamira é o segundo município mais violento do Brasil, nova hipérbole. Espalhados no entorno, em terras demarcadas, ou propriedades rurais privadas, ou em contexto urbano, os indígenas da região não ficam incólumes a esta ferocidade, bem pelo contrário… Por defenderem a floresta da qual dependem e pela alteridade de suas culturas marginalizadas no pensamento mainstream, os povos originários das Américas são repetidamente atacados como alvos preferenciais. Em 2017, ser ativista ambiental no Brasil implicava morrer mais facilmente que em qualquer outro lugar no mundo. Que hipérbole!

Entre os bravos guerreiros indígenas que lutam pelas suas vidas — mas que lutam também pelo direito à sua terra, à sua cultura, à sua língua, ao seu lugar na contemporaneidade, e que brigam até pela sua subjetividade como complexos seres humanos — se encontra a história de Juma, a primeira Cacique mulher dos Xipaya, e a protagonista do teaser de “Terra Preta?”. Nesta primeira janela para o projeto, Juma contracena com o Cacique Raoni Metuktire, da etnia Kayapó do Alto Xingu, uma das lideranças indígenas mais respeitadas, e candidato ao Prémio Nobel da Paz pela sua ação em prol da floresta.

O Cacique Kayapó Raoni Metuktire, uma das maiores lideranças indígenas e candidato ao Prémio Nobel da Paz. “(…) que os não indígenas façam o seu trabalho que eu faço o meu para defender a Amazônia”. [Altamira, Pará — Brasil 2019] ©MiguelPinheiro

JVP — Nesta perspectiva pessoal, voltava também a perguntar o que o motivou a querer fazer este projecto e como surgiu a oportunidade.

Era Agosto de 2019, e enquanto o verão espreguiçava-se na Europa, o inferno tomava conta da Floresta Amazônica. Além de ser a maior floresta tropical do mundo e um panteão para a biodiversidade, é um dos lugares no planeta onde mais carne se produz. Queimadas e desmatamento alastram, na medida que aumenta a demanda de terra para criar gado. Neste contexto eu chego com minha equipa de cinema na Amazônia, numa colaboração com o artista chinês Ai Wei Wei. O controverso artista plástico e ativista social, buscou na Amazônia uma faceta que compõe a quimera de um dos seus próximos filmes. Mais uma ideia admirável do afamado ativista, só é lamentável que parte dos encargos com a equipa da Amazônia ainda estejam por honrar.

No término destas filmagens eu dei por mim nas margens do rio Xingu, que serpenteia um tanto de chão por quase 2000 Km, até se enroscar no rio Amazonas. Há muito desejava mergulhar neste pedaço de Brasil e assim continuar meu trabalho com os povos tradicionais. Porém, protegidos pela lei brasileira, a visita a aldeias indígenas só pode acontecer com permissão especial dada por órgão do governo, ou por convite dos próprios indígenas. Só esse detalhe estava em falta no meu plano: e agora, como é que eu chego nas aldeias?

JVP — Neste sentido, como foi visto em Altamira quando disse que queria visitar os indígenas (tanto pelos habitantes como pelos próprios transeuntes? E como foi o seu encontro com os indígenas?

“- Você quer ir aonde? Aos índios? Mas Senhor, pra quê?”(…)

No registo mais ligeiro, era isto que me respondiam em Altamira, desde o barbeiro onde fui recuperar a dignidade de civilizado depois de 3 semanas atravessando a floresta, passando pela moça que me alugou o carro, o recepcionista do hotel, o fazendeiro com quem esbarrei no átrio, o engenheiro alemão que acompanhava a conclusão da barragem, e até a simpática jovem onde eu ia tomar o açaí com farinha. Foi preciso encontrar um padre irlandês com nome de santo para a minha sorte mudar e, sobretudo, Lorena Kuruaya, uma jovem estudante de medicina. Lorena é parte de uma crescente população indígena que começa a acessar ao ensino superior no Brasil. A intrépida “selvagem” levou-me pela mão para conhecer uma das últimas falantes da sua língua. Desde então meu grupo de amigos só tem crescido, tem Xipaya, Kuruaya, Kayapó, Xikrin, Borari, Parakanã, Asuriní, Arara, Juruna, eu não tinha ideia da heterogeneidade dos povos que são etiquetados de “índios”. A variedade linguística é maior do que aquela que encontramos na Europa. É uma hipérbole de línguas e entre elas, o Português, uma língua de invasão, pois o Brasil não foi descoberto nem achado… Guerras, confrontos e epidemias trazidas pelos brancos (sarampo, varíola ou gripe) dizimaram povos inteiros nas Américas. O COVID-19 causou o pânico ao convocar de novo esta memória, as aldeias fecharam ao contato exterior, e multiplicam-se no mundo os pedidos ao Governo Brasileiro para expulsar grileiros, garimpeiros e madeireiros, invasores dos territórios indígenas.

Lorena Kuruaya se pinta com Urucum antes da passeata nas ruas. A primeira referência ao Urucum está na carta de Pêro Vaz De Caminha “E eram cheios de uns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos” [Altamira, Pará — Brasil 2019] ©MiguelPinheiro

É a diversidade humana que está em causa, e com isso a vida de todos nós. Estes povos convivem na floresta Amazónica há milhares de anos, não à toa as manchas verdes que o Google Earth mostra correspondem exatamente às reservas indígenas. Coincidência? Óbvio que não. De cada vez que pirómanos e gananciosos agem sobre a floresta, aumenta a vulnerabilidade destes povos e desaparecem tradições, rituais, línguas, conhecimentos. Há anos que venho constatando isso com meu trabalho, desde a periferia de Cabo Verde, ao Centro Histórico do Porto, aos quilombolas do Vale do Jequitinhonha, “em pleno Antropoceno começa a ser óbvio que a maior de todas as extinções é a do próprio ser humano”. E a ciência postula de forma muito clara: no que toca à sobrevivência, tudo depende da variedade. Com “Terra Preta?”, nome de uma mistura particular usada há milhares de anos pelos povos da floresta e cujas propriedades aumentam exponencialmente a fertilidade dos solos, eu pretendo informar sobre este conjunto de microculturas indígenas do Médio Xingu, que são únicas em todo o planeta.

Juma Xipaya e Mirim Ju Yan Guarany em cerimonial indígena. Os rituais e os costumes são passados oralmente. [Altamira, Pará — Brasil 2019] ©MiguelPinheiro

Miguel Pinheiro é um premiado ator e criativo Português. Suas estórias já foram publicadas na Europa, África e Brasil.

Seu foco está nas comunidades tradicionais, com destaque para as populações indígenas (Público 2020, Open Democracy 2020, Amazon.org.br 2020, Mamacash 2019), os quilombos do Vale do Jequitinhonha (Público 2018), os pequenos agricultores do Óleo de Palma (CIFOR 2018), as minorias étnicas africana, latinoamericana e asiática em Portugal (Público 2012, Público 2011), as periferias do arquipélago de Cabo Verde — África (A Nação 2010, A Semana 2009).

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Miguel Pinheiro

::: former scientist and an award-winning Portuguese artist ::: #DOC Film #DOC Photo #Storyteller http://behance.net/miguelpinheiro