4 pilares de um corpo não-binário

Miranda Almeida
6 min readOct 2, 2018

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Se passaram alguns minutos que somados se estendem para horas de leitura de alguns artigos da them. referentes à não-binariedade de gênero.

Essas leituras me arrastam para si intensamente como se eu procurasse resposta e reafirmação em qualquer desconhecido que escreva pelas mais diversas partes do globo, em busca de semelhantes que validem o que sou e quem sou, dia após dia.

Fico feliz em declarar que de fato me conforto em tais semelhanças, ao mesmo tempo que partilho da alegria e orgulho da minha própria identidade, também partilho da dor e sentimento de não pertencimento que acompanha essas vivências.

Me deparei com textos específicos que giram em torno de quatro grandes pilares da não-binariedade e da amplitude da experiência trans em si: relacionamentos românticos, nossa identidade expressa claramente em nossos corpos, nossos nomes quanto declaração de nossa existência e nossa infindável vontade de pertencer a algum lugar.

Pertencimento. Nome. Corpo. Romance.

Para qualquer pessoa que mais cedo ou mais tarde encontre seu acolhimento dentro da comunidade LGBT+, pertencer é algo que todos compartilhamos. A necessidade de pertencer e encontrar semelhantes é o que nos une e nos entrega motivos para sermos quem somos e seguir adiante apesar de todo o peso que acompanha o simples fato de existirmos. Dentro desse pertencimento é pertinente relembrar que não são todos os membros dessa diversa comunidade que sabem quem são desde que “se conhecem por gente” e que “nasceram assim”. Nem todos nós nascemos assim, porque nos tornamos muito mais do que qualquer expectativa que nos implantaram ao chegarmos aqui. Eu não sabia exatamente o que era ou quem era desde sempre, no máximo queria me sentir especial como um herói inesperado para o mundo que é aclamado incansavelmente por seus feitos e marcado na história eternamente enquanto houverem pessoas admiradas que perpetuem suas bravas ações geração adiante.

Diante da sufocante necessidade de pertencer me vi à margem de grupo de amigos e “famílias que podemos escolher”, sempre com a dor atenuante de abandono por parte daqueles que admirava e buscava constante admiração. Ainda lembro quando um professor disse que me admirava por todas as atividades criativas que buscava fazer simultaneamente no ensino médio e aquilo ficou marcado na minha cabeça como a primeira vez que alguém que eu admirava tanto, me falava claramente da admiração recíproca.

Mais tarde em uma mesa de bar descobri por um senhor que foi padre por um tempo que o nome que escolhi pra mim, Miranda, vinha do latim mirandus que significa admirável. Mal podia acreditar na ironia.

Parte do pertencer surge com o nome. O espelho não se alegrava ao ouvir o nome que meus pais me deram, cada vez que o repetia ficava um vazio e um sentimento estranho. Eu não era o que esperavam que fosse, eu não era aquela união de letras e identidade pré-forjada por parentes que me pegaram no colo. O desgosto de falar o que era meu nome e a busca por apelidos foi algo que me seguiu ao longo da infância, adolescência e início da minha vida adulta, juntamente das piadinhas incovenientes e estúpidas que se agregavam à grafia do meu nome e os que não se comoviam com a importância do mesmo. O incômodo com a forma que me chamavam ao menos me deu empatia para que sempre respeitasse o nome do próximo e tivesse uma cautela incontestável caso precisasse escrevê-los.

Quando paro para lembrar desses incômodos questiono o que afirmei anteriormente: eu não sou assim desde que me conheço por gente? Esse desconforto que me acompanhava no final das contas estava muito atrelado em algo dentro de mim. Desde o amigo que fiz na quarta série que tinha o sobrenome Miranda até a icônica Miranda Priestly, o nome Miranda sempre me despertou alguma curiosidade que eu não sabia ao certo o que era mas que era magicamente familiar e interessante. Ingenuidade que segui, mal poderia saber que essa familiaridade era porque Miranda esteve sempre em mim aguardando que em algum momento eu percebesse, e enfim olhasse no espelho e dissesse esse nome para finalmente ver o espelho se regozijar e sorrir de volta.

Desde que descobri como me chamava parece que tudo que vivi até então foi só um passatempo sem muito peso como se tivesse nascido recentemente e todo o resto não passasse só de uma vaga lembrança de alguém que nem era eu.

Me lembro de conversar com essa pessoa que morou em mim antes de mim e fazer as pazes com ela. Dizer que ela foi forte e incrível apesar de se sentir perdida e deslocada e que agora eu iria protegê-la e deixá-la descansar dentro de mim, enfim, em paz. As lembranças dela não me pertencem, o que me pertence é tudo aquilo que me ocorreu além daquele nome e essa seleção de lembranças é pontual e incrível. O que me pertence é o que compartilhamos e não foi vivido individualmente por ela.

Antes de descobrir meu nome eu já havia questionado meu corpo muitas vezes. Desde a comum cobrança imposta a corpos que nascem vistos como femininos até a rejeição do que se constituía essa feminilidade nada natural. Desconheci por muito tempo o que vestia e o que via em mim do cabelo aos pés, me sentia meio sem identidade e “rótulo em comum” por não ter um estilo próprio, algo que pudesse chamar de meu e falar “sou eu”.

Acabei aprendendo a usar meu corpo como ferramenta além de gênero para expressar liberdade e conforto, e sigo tentando repassar isso para outras pessoas que buscam o mesmo. Enfim olho meu corpo e não questiono seus formatos e capacidades por saber que posso manipular essas características livremente quando me apetecer.

Porém, há sempre um porém.

Meu corpo segue sendo lido como exclusivamente feminino e as vestimentas que antes achava não ter estilo próprio pra usar de maneira cativante, acabaram por se tornar mais do que um ato político e se somaram a reafirmação da minha identidade. Tantos assumem a androginia pertencente a não-binariedade mas não há lei obrigatória dentro do que se constitui uma experiência trans. Não é a demanda de binariedade que constrói o que somos, o que muitas vezes significa transicionar pela metade ou até um ponto ambíguo. Não queremos ser lidos como figuras exclusivamente masculinas ou femininas porque não somos. A passabilidade quanto uma identidade binária incomoda porque não quero ser homem ou mulher e passar como isso me desagrada por simplesmente não ser o que vejo ou sinto.

Por fim todos esses detalhes de quem sou, como me vejo e onde me acolhem se refletem no que seria construir um relacionamento romântico. Relacionamento esse que envolve outras pessoas e dificilmente é compreendido por alguém fora dessa vivência. Se na adolescência tinha certa vergonha de deixar claras minhas intenções com alguém por questionar minha beleza ou se minha companhia era agradável, hoje me envergonho de me permitir atrair demais por alguém por não saber se essa pessoa vai se atrair pela completude da minha identidade. Não posso estar com alguém que me veja como mulher, e sempre machuca o fato de que as pessoas pelas quais desenvolvi interesse nos últimos tempos sempre irão me enxergar assim.

Me permitir nutrir afetos românticos mais intensos inclui uma série de experiências que somam todas as anteriores, desde o que é um abuso a um corpo não-binário, o que é sexo, o que seriam almoços em família, andar de mãos dadas, ser um namorado ou uma namorada e a compreensão de que não sou um experimento.

Essas reflexões e tudo que é relembrado e revivido constantemente em minha mente seguem se construindo pacientemente através de novas palavras escritas por semelhantes e desconhecidos que compartilham das mesmas sensações e sentimentos que moldam meu cotidiano, validando o que sou e partilhando das dores que acompanham essas vivências junto da alegria e do orgulho da minha própria identidade.

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Miranda Almeida

corpo não-binário, corpo de afetos que se fortifica no exercício de afetar outras pessoas. atleta-afetivo.