O dia que tive vergonha de Exu em terra

Mironga da Cachimba
5 min readApr 15, 2024

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Pictografia feita pela Barbara, do canal Oceano de Axé. A imagem representa um homem, de terno branco e cartola. Ao centro da cartola, um cruz rodeada por três tridentes. Ao fundo, uma cruz.

Exú é caminho, é energia, é vida, é determinação
É cumpridor da lei, Exú é esperto, Exú é guardião
Exú é trabalho, é alegria veloz, Exú é viver
É a magia, é o encanto
É o fogo no sangue, na veia vibrando, Exú é lazer

Começo esse texto com esse trecho do ponto de Exu Tiriri para (tentar) explicar o significado de exu. Esse espaço não seria suficiente para discorrer tudo que exu representa e que ainda estou aprendendo. Senta que lá vem resenha!

Na partilha anterior, eu contei um pouco do meu (humilde) e interessante ponto de vista sobre o que é estar em um terreiro. Existem múltiplos desafios, desde respeitar o coletivo, o guia em terra, estar atento a tudo que acontece, cuidar do espaço físico, dos médiuns, dos guias em terra e por aí vai.

Enquanto escrevia esse texto, percebi que estava dando voltas e voltas, tentando encontrar uma forma educada de dizer o simples e óbvio: eu tive vergonha do meu Exu em terra, a primeira vez que ele se manifestou no terreiro. Pá. Direto. Com Exu e Pombagira não tem meio-termo, meia-palavra, meio nada. É ou não é. Ponto.

Só preciso retroceder a história um pouco — a única volta necessária aqui, e que comentei no texto anterior que traria esse causo, sobre como cheguei no terreiro. Vovó Maria de Aruanda já tinha me chamado para ser parte da casa e eu fugi. Disse ao Pai Ogã na época que não estava preparado, por dinheiro, responsabilidade necessária, dedicação etc. O tempo avançou e eu conheci a Barbara, do canal Oceano de Axé (@oceanodeaxe, para quem quiser conhecer) e decidi pedir a ela uma pictografia — desenho mediúnico que alguém da nossa família espiritual se apresenta e é desenhado como como quiser ser representade. Deixei em aberto, porque não queria nada direcionado.

Nos conectamos ao vivo online, para ela captar a energia do campo. Depois, veio o desenho e uma mensagem que o guia que manifestou, vestia branco e usava uma cartola. Aí, o desenrolar foi pura magia e sincronicidade. Em outro canal, conectado apenas por conta de uma promoção coletiva, A Thalita, do canal Lux de Maria Mulambo, apareceu (@luxodemariamulambo). Barbara me enviou uma mensagem, dizendo que tinha visto em outra conta do Instagram a cartola que era usada no desenho e me enviou.

Na hora entrei em contato com a Thalita, e estávamos todos chocados. Ela disse que nunca faz cartola branca. Até aí, cético como sou, pensei “ah, a Barbara enviou o desenho para ela e elas devem ter combinado o jogo”. Conversando com a Thalita, essa foi a mensagem que ela me enviou:

…Normalmente eu faço chapéus por encomenda. Aí eu criei essa cartola do nada…

Juro pra você… Eu conheci ela [Barbara] no grupo do sorteio e só… Nem nos falamos. Todo mundo tá se seguindo, já que estamos participando do sorteio.

Um ou outro detalhe que faltava ou era diferente — muito pouco, mesmo! — ela inseriu. Enviei uma mensagem para a Guta (minha amiga, antes de se tornar minha mãe de santo), e combinamos de almoçar. Contei a ela toda a história e combinei de conversar com a vovó Maria de Aruanda, que me convidou (de novo) para ser parte da casa e vestir o branco.

Detalhe, Guta encontrou um ponto cantado que descrevia o Exu que tinha se apresentado:

Eu vi um moço bonito
No meio da Calunga
Vestido todo de branco
Em cima de uma tumba

Pois muito bem. O tempo passou, iniciei no terreiro e chegou a festa da Esquerda. Todo mundo, obviamente, estava de preto e vermelho. Coloquei minha roupa preta, e em algum momento, cruzei com mãe Guta, que me perguntou: porque você está de preto? Vai se trocar”. Fiz o que ela pediu. Quando voltei, me senti um tanto deslocado de só eu estar de branco. Era como se todo mundo que me olhasse e também estranhasse — o que é natural, até. A única resposta que eu tinha era: “a mãe quem mandou eu ficar assim”. Coloquei minha cartola e a festa rolou. Exu veio, deu sua gargalhada, fumou seu charuto, bebeu seu marafo, trocou algumas palavras com uma pessoa e fim. Por dentro, eu não estava relaxado, eu estava com vergonha.

Aí vem um dos meus maiores desafios: como confiar na incorporação, no guia, sentindo vergonha dele? O guia que, como diz o ponto que abre esse texto, me deu o caminho e me levou de volta para casa (é assim que me sinto ao estar no terreiro) Que, junto a vovó Maria de Aruanda, me conduziu ao caminho do àṣẹ? Como não confiar e deixar que ele venha e se apresente como ele quer se apresentar, fazer o que precisa ser feito, como outros Exus e Pombagiras?

Para mim, além da deliciosa e desafiadora arte de conviver em grupo — tem um desafio particular que sempre coloco em pauta, em diversas conversas, que é a incorporação.

Tudo começa pela cabeça de quem vos fala, que tem um perfil desconfiado, questionador, controlador e racional: “Será que sou eu, ou o guia?”, “Estou incorporado mesmo, ou é animismo?”, “Será que o meu guia tá aqui, ou é coisa da minha cabeça?”. Eu lembro o dia, em um trabalho no cemitério, quando o preto-velho chegou em mim e disse para uma das irmãs do terreiro: “vovô está chegando”, e deu sua risada. Foi de uma emoção tão imensa, que eu só conseguia chorar quando ele se foi.

O desafio segue. Leio, estudo, acendo minhas velas, converso. Cada guia tem seu jeito único e particular, cada pessoa é uma pessoa. Mesmo desconfiado, com medo, eu sigo. E vou entendendo que incorporar é apenas 1%, dos 99% que é parte do caminho. Terreiro é uma causa, de resistência e luta. É comprometimento, compromisso com algo muito maior. Para mim, sim, é importante e desafiador aprender o incorporar, sentir o guia e trabalhar todos os dias nesse relacionamento, relaxar o corpo e deixar fluir. Só que eu também aprendo muito sendo cambone, observando e ajudando os irmãos e irmãs incorporades. Eu aprendo quando ouço a sabedoria que os guias trazem, as explicações da mãe. Eu aprendo lendo, estudando, pesquisando e, principalmente, vivendo e observando.

Que Exu, com toda sua mutalidade e energia subversiva, transformadora e transmutadora, transforme a vergonha em orgulho. Orgulho de tê-lo na minha vida, protegendo e abrindo meus caminhos. Que eu seja capaz de fazer o que é preciso ser feito. Mesmo que às vezes eu duvide, questione e não entenda, que eu aceite, com as duas mãos abertas e estendidas, tudo que ele me oferecer.

Laroye Exu, Mojuba!

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Mironga da Cachimba

Escrevendo e compartilhando minhas vivências na jornada mítico-ancestral, como filho de àṣẹ. Por Gustavo Oliveira.