O jogo do entretenimento em Fargo

Matheus Pronunciato
5 min readJan 13, 2019

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Como uma história constrói sua realidade fictícia para entreter você?

“Esta é uma história verídica. Os eventos retratados ocorreram em Minnesota em 2006. A pedido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Em respeito aos que faleceram, o restante foi descrito exatamente conforme o ocorrido”.

Esse é o letreiro que aparece no começo de cada episódio de Fargo. Sabe o mais engraçado? É mentira.

Em poucos episódios você pode descobrir isso, ou pesquisando rapidinho na internet. Mas, mesmo assim, é interessante a possível intenção da série ao mentir pra gente desse jeito. Revela como Fargo funciona e como usa da ficção para ser tão autêntica — e maravilhosa.

Pra conseguir expor melhor o que quero dizer, vamos pensar em uma das últimas cenas do primeiro episódio do seriado:

Lester. Reprodução.

Lester (Martin Freeman) acabou de assassinar sua esposa com marteladas em sua cabeça durante um acesso de fúria. Ainda quando está desesperado sobre o que fazer sobre o crime que cometeu, um policial bate à sua porta para tratar de outro incidente que ocorrera mais cedo no mesmo episódio. Não demora para o policial perceber que há algo de estranho com Lester. Logo depois de descobrir sangue no local, Lorne chega e mata o policial.

É tanta coincidência, uma teia tão frágil de acontecimentos. Como poderia isso tudo ser real? Pior ainda: cenas do tipo se repetem por todos os episódios. Fazem parte da série.

Até certo ponto, essas sequências são plausíveis e totalmente possíveis de acontecer, mas algumas circunstâncias saem um pouco da casinha. Em contato com elas, o espectador suspeita, se afasta e hesita. É aqui que tá a graça.

A fantasia é definida por Tzvetan Todorov como um acontecimento que não tem explicações que condizem com o mundo que habitamos e conhecemos. É um acontecimento estranho que nos faz questionar as leis desse mundo. Nesse processo, hesitamos quando à explicação do que tá havendo.

E é essa hesitação a primeira condição do fantástico.

Igualzinho a rua da minha casa. Reprodução.

Fargo faz isso o tempo todo conosco. São várias as cenas com acontecimentos estapafúrdios e repletos de humor negro. Então seria Fargo uma história fantástica? Não. Mas a questão aqui é como a trama usa esse aspecto quase como um recurso narrativo para influenciar a percepção de quem tá assistindo. É um jogo.

Mas em Fargo o processo de exploração da fantasia é feito de uma maneira mais singela porque não é pautada por uma fantasia mágica ou extremamente fora do mundano como em Harry Potter. Na verdade, a existência da fantasia em Fargo é relativa ao espectador e inclusive acontece com ele. No seriado pode não existir a fantasia em si, mas o processo que se permite definir fantasia, sim.

Antes de você fazer o espectador questionar ou hesitar sobre a veracidade de algo, ele precisa estar em uma condição em que não se questiona nada. Andando numa rua para chegar ao trabalho como todos os dias da sua vida. E toda obra fictícia precisa fazer isso. Caso contrário, o espectador não consegue se identificar com a história, se projetar nela. No final, não estaria sendo entretido.

Reprodução.

Como fazer isso? Oras, replicando a realidade real (a nossa realidade), na realidade fictícia. Coloque coisas lá que nos faça julgar essa realidade mentirosa como parecida ou igual à nossa. Comece o filme com o protagonista levantando da cama, escovando os dentes e tomando café da manhã como qualquer ser humano comum, em uma casa comum com móveis comuns.

Antes de Hagrid derrubar aquela porta e dizer “Você é um bruxo, Harry”, a vida do garoto, no livro e no filme, era retratada como a de um garoto normal. Junto da revelação temos a hesitação.

Tá loco. Reprodução.

E quando falo de duplicar a realidade, estou falando de ficção em sua essência. A ficção nada mais é que um jogo de realidades.

É o jogo do entretenimento. De esconder e mostrar.

Em Fargo, podemos sequenciar este jogo:

Primeiro, precisa fazer com que o leitor receba a história como real; depois, apresentar ações e cenas que beiram o absurdo para fazer com que o leitor hesite quanto à realidade do que está vendo; e, por fim, trazer o leitor de volta à realidade ficcional através dos mesmos artifícios utilizados na primeira etapa — tá aqui a importância de uma série dramática ter um texto afiado e uma direção crível.

Tudo isso é um jogo porque gera incerteza no espectador. O produto fictício vive de surpresas e tensões criadas por ele mesmo. É o que diz Luhmann.

Quando a narrativa de Fargo usa desse processo fantástico para influenciar a experiência do espectador, o seriado se coloca em uma posição complexa: seria então uma obra realista com características (ou roupagem) fantásticas ou uma obra fantástica com características reais?

De fato, o letreiro no início dos episódios leva a gente a pensar muito sobre a primeira opção, em que há uma necessidade do seriado se passar por realista e totalmente verossimilhante.

Só que a maneira como as cenas e sequências que permitem a hesitação do leitor são realizadas e os efeitos que geram na narrativa (tratado comumente como sendo uma pitada de humor negro, paródia ou escárnio), me faz pensar mais sobre a segunda opção.

Daí consigo ver o seriado como uma obra repleta de acontecimentos absurdos, estranhos e insólitos que utiliza de uma carcaça realista moldada pelos aspectos técnicos.

O mesmo parcialmente acontece com a trilogia de filmes do Batman dirigido por Christopher Nolan. O fato de existir um herói vestido de morcego fazendo papel de vigilante e investigador a cidade é levado como crível ao trazer as histórias e personagens das histórias em quadrinhos para uma direção pautada no realismo, dando credibilidade e verossimilhança em tudo que é enquadrado pela câmera.

De fato, não há necessidade de se descobrir em qual dos dois lados Fargo melhor se enquadra. Assim como em Dom Casmurro, de Machado de Assis, onde o cerne da história não seria a resposta de Capitu ter traído ou não Bentinho, mas sim da dúvida, a hesitação que o protagonista faz o leitor experimentar ao retratar a história. Afinal, uma história bacana mexe com a gente, né?

Fargo pode se encontrar na mesma questão: sua intenção é fazer o leitor ter uma experiência que o faz cogitar o fantástico através das dúvidas que gera. Duvidar do que está sendo retratado independente de quanto tempo essa dúvida perdure até as características do produto o convencer novamente de que se trata de uma história que aborda o real.

Enfim, Fargo é foda pra caralho.

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