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@mjbezzi
10 min readAug 23, 2018

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Essa de pensar próximos passos a partir do que queremos hoje desmistifica os grandes planos para o futuro e empodera decisões corriqueiras como parte de algo que ainda não vemos por inteiro. Observar o presente e ponderar opções que são palpáveis agora nos faz mais atuantes na nossa rotina e derruba as muralhas que criamos entre o profissional e o pessoal. Afinal, as ferramentas que acumulamos são nossas e podem ser adquiridas e utilizadas em diversos formatos — não limitemos nosso leque de oportunidades ao horário útil, ou fora dele. Já falamos que essa reflexão exige uma dose de auto conhecimento: nem sempre é fácil saber o que buscar a seguir, e em geral não o é. Mas passada a pressão de tentar planejar a aposentadoria, percebemos que todo aprendizado vale e só existe se nos jogarmos em novas experiências com frequência. Quando faço um apanhado geral da trajetória escola-faculdade-trabalho-hoje, muito do que acertei é resultado de tentativa e erro (muitos, por sinal) e, se existe um padrão, só é percebido retroativamente.

Foi assim quando comecei a repensar meu legado no mundo: se eu não estava feliz, queria saber onde eu estaria. E pra isso me inscrevi em uma série de cursos, sobre tudo e qualquer coisa: desde métodos e ferramentas de negócios até neurociência, mindfullness e comportamento humano. Empreendedorismo, inovação, design, futurismo, big data, criatividade — na época achava que estava cobrindo tudo, hoje vejo que umas aulas de culinária ou consciência corporal teriam sido bem aproveitadas (ainda é tempo!). Errando ou acertando, havia algo em comum nessas experiências: a necessidade de se defender uma ideia, uma construção pessoal para aplicar cada aprendizado e tangibilizar um resultado final. Éramos sempre estimulados a pensar em uma pesquisa, sonho, propósito, ideal, plano de vida ou projeto de fim de semana que estivesse ou ainda fosse ser implementado. Minha primeira reação era revirar os olhos pra tal demanda e no fundo ressentir ter gasto mais tempo e dinheiro em mais um curso cuja metodologia era alguma variação do que eu já vinha vivenciando. E a turma em geral sorria com a tal ideia na cabeça, fosse ela uma produção de cupcakes ou um aplicativo de inteligência artificial.

Não sei se eu sabia que a minha relutância era puramente pela falta de ideias (ou de espaço mental para desenvolver qualquer coisa de que pudesse gostar). Alguns insights que poderia ter tido enquanto reclamava mentalmente e fazia um esforço incrível para manter a cabeça fechada:

  • Qualquer ideia já é uma ideia. Um marcador de páginas com marca texto é uma ideia. E eu acabei de pensar nisso.
  • Ideias vão ser ou (a) descartadas ou (b) transformadas. Todas as ideias. Não dói, não custa nada e ainda pode ser bem legal.
  • Dá menos trabalho ter uma ideia do que não ter uma ideia, ter que explicar que não se tem a ideia e que não se consegue pensar em uma ideia.
  • A dificuldade em pensar em uma ideia é (a) uma síndrome megalomaníaca em que se descarta tudo que é, num julgamento chulo, imperfeito; ou (b) um desconhecimento de si mesmo, do que se gosta e de qualquer coisa que seja insumo para uma ideia.

Acho que toda essa grandiosidade que se criou sobre “ter ideias”, “empreender” e “se transformar” trava a criatividade das pessoas, que na infância é (ou costumava ser) a coisa mais natural do mundo. Imagina ficar preso a uma ideia ruim pro resto da vida? Assim mesmo, como se não desse trabalho nenhum criar a criança, é só colocar no mundo que o monstrinho cresce. Quase esquecendo que nós somos a ideia e, sem nós, a ideia não é. Quer dizer, considerando que só persistimos com o que gostamos mais (já que ideias são descartáveis), que modelamos ideias de acordo com experiências e feedbacks (a tal da pivotagem) e que tendemos a pôr em prática o que faz sentido pra gente, a evolução das ideias fica diretamente atrelada à nossa, ao que vivemos e aprendemos diariamente. E aí tenho que concordar com os cursos e pílulas de criatividade: é a execução que realiza o aprendizado. É colocar a ideia no mundo que ensina, por bem ou por mal.

Tomar coragem e me permiti ter ideias foi outro processo lento. Estudei relações internacionais e economia, estagiei com importação e trabalhei em uma das maiores empresas de auditoria do mundo. Ainda tenho uma irmã que dança e estuda artes visuais. Cresci sendo o lado sério da família e por algum tempo acreditei não ter nenhuma intimidade com a criatividade. Pode ser até que não tivesse, nunca exercitei muito esse músculo. Mas aos poucos fui me sentindo mais livre pra inovar, pra mudar e até pra desistir de algumas coisas. É nesse cantinho permissivo do cérebro que nascem ideias boas (ou não), de uma vontade qualquer, e vão absorvendo a nossa energia e se tornando o próprio meio pelo qual aprendemos, ensinamos e impactamos o mundo. É quando conseguimos fugir do tal “bloqueio criativo”, aquela falta de entusiasmo, procrastinação e distração crônica que surge quando falta vontade ou quando o enchemos nossa cabeça com tanto que sobrecarregamos nossos sistemas internos.

Não sei se existe criatividade constante, mas acredito em criar estímulos. Até porque inspiração é pessoal: é o que faz brilhar o olho e anima a levantar de manhã, é o que admiramos em quem nos rodeia e o que queremos replicar nos nossos dias. Está atrelada ao propósito — lá do texto 3 — que nos conecta com o que somos e o que fazemos. E foi nessa mistura de reflexão e inspiração, entre um bloqueio criativo e outro, antes mesmo de ter ouvido falar do Ikigai e de propósito que tive minha primeira ideia — ou a de que tenho lembrança. Assim, entre conversas despretensiosas e sonhos antigos. Tentando buscar na minha infância e adolescência que diabos me fazia me perder em mim, esquecer do tempo e deixar tudo o mais pra trás — queria essa sensação de novo. De início pensei que tal coisa não existia: nunca fui de inventar modas, de construir brincando ou de fingir uma profissão qualquer. O que eu gostava era de ler. Ôpa. Taí uma coisa que nunca pensei poder virar futuro, mas que ocupa (muito) espaço nos meus dias, na minha história e nas minhas prateleiras.

LIT

Em 2016, entre uma exploração e outra, comecei a pensar em como conectar a fonte número um de inspiração — as pessoas e suas histórias — através da forma mais remota de expressão da sociedade — os livros. Eu queria juntar as indicações, insights e referências de quem tem algo pra contar, interesses pra compartilhar, exemplos pra motivar e vontade de propagar o aprendido com um autor ou outro, um personagem ou outro. Queria criar um grande banco de dados dos que lêem para os que lêem e para os que não lêem também descobrirem a leitura. Se os livros são tão democráticos em forma, origem e conteúdo, seu acesso não deveria ser restrito. Se o livro só se realiza na leitura, deixá-lo em estantes é um desperdício de potencial, de conhecimento, de inspiração. Se cada pessoa absorve de um livro também as conexões que faz com pensamentos próprios, o diálogo entre leitores enriquece as experiências individuais. É mais um exemplo de como o todo é maior que a soma das partes, mais um esforço em promover o movimento peer to peer e criar uma rede de pessoas — e livros! — retroalimentada, que se fortalece mutuamente ao mesmo tempo que contribui para a sociedade e para o planeta.

Eu sentia que o projeto não era novo, que tinha nascido da junção de pequenas ideias, conversas, aprendizados e devaneios ao longo dos anos sobre meu tema preferido: livros. O LIT, que vem de literatura e em inglês significa iluminado, buscava reviver o conceito de biblioteca, sendo uma plataforma para unir leitores e seus acervos pessoais e exponencializar o alcance dos livros e do conteúdo. A gente já tinha até padrinho: o gaúcho Mário Quintana que dizia que os livros mudam as pessoas, e as pessoas mudam o mundo — uma transformação da qual queríamos ser parte. E que levaria para uma mudança profunda, um mix de instrução, conhecimento, sustentabilidade, colaboração e consciência — inspirando através da circulação de histórias e interesses que, em algum momento, se cruzam.

Levamos o projeto adiante: desenvolvemos através de tarefas numa competição da PUC-RS, fizemos MVP e gastamos aquela energia pra bolar o pitch perfeito: discurso e apresentação. Não vencemos, mas achávamos que o projeto estava pronto. Mesmo que nenhum livro — dos meus quase 400 disponíveis — tivesse sido emprestado. Mesmo que outras ideias parecidas tivessem caído no esquecimento. Mesmo que depois de tanto espernear, nada de tangível pudesse de fato ser extraído da experiência. Não queríamos nos dar por vencidas, mas nos poucos meses de vida do LIT, percebemos que ler era uma paixão nossa que não se refletia nas pessoas que tentamos abordar.

Telescópio

Se não saí com o prêmio, pelo menos tirei dali a vontade de conhecer mais sobre o mundo empreendedor. Ainda estava na consultoria e ouvia falar de inovação e métodos ágeis diariamente, mas o que de fato significava vivenciar essa tendência? Em novembro de 2017 resolvi descobrir, participando do meu primeiro Startup Weekend, empoderado pelo Google e realizado pela TechStars. É um fim de semana de imersão completa no processo de criação de startups, palavrinha da moda para empresas de tecnologia com potencial de atingir um grande número de pessoas (modelo escalável). Basicamente, passaríamos por todo o processo de 4 meses que vivemos com o LIT na PUC, mas em 54 horas. Com uma ideia nova. Algo que só descobri quando já era tarde para voltar atrás — mas que em retrospecto foi ótimo!

Acabei me associando à ideia da Mari, de criar uma forma de ensinar aos jovens algo que eles tenham interesse em aprender. Não queríamos associações com a concepção que se tem hoje de escola — então chamamos de clube. Um clube focado em quem tem tempo mas ainda não é público dos eventos acadêmicos ou profissionais: os jovens de ensino médio. Claro que essas definições foram trabalhosas e exigiram muita energia de um time imaturo e desconexo, cansaço que me levou a uma ou duas sessões de descarrego com os mentores. Foram momentos produtivos: entendi um pouco melhor meu momento com o LIT e os desafios de pressão e time pelos quais passávamos, em versão micro. Ainda obtive alguns feedbacks interessantes (mesmo que críticos) e conheci pessoas com as quais sigo conversando, esporadicamente. Ter pensado em desistir e utilizado esse momento para me conectar com as pessoas e o objetivo do fim de semana me colocou no radar dos organizadores e me permitiu recuperar o fôlego para finalizar o projeto.

Desenhamos, entre intrigas e provocações, o básico do projeto e fomos a última equipe a sair para a rua — parte fundamental para a validação do problema e da solução. Conversamos com mais de 40 jovens, mães e pais e defendemos, com o mentor que teimava em dizer que intenção e ação são distantes, que era o máximo que podíamos fazer. Contrariados e desafiados, tínhamos algumas horas para organizar um evento que refletisse o propósito do clube e reunisse fisicamente, num domingo de manhã, jovens que quisessem aprender sobre comunicação e meditação. Dormimos pouco, mas tivemos espaço, ministrantes e seis participantes. E ainda finalizamos a pesquisa, contabilizamos resultados, consideramos o investimento e apresentamos o projeto para um júri que nos concedeu o segundo lugar — com direito a prêmios e tudo. Não colocamos nosso plano em ação, mas fomos nós mesmos os jovens que puderam, através do Telescópio, “ver além”.

convite do evento pensado e executado em menos de 14 horas

Flavo

Tudo bem que o erro ensina e não deve ser crucificado, mas acertar é muito bom. Nos sentimos recompensados, empoderados, capazes e a um passo de dominar o mundo. O troféu do SW foi uma certificação de que eu poderia acertar em outras áreas e uma faísca do aprendizado e crescimento que eu não vislumbrava mais diariamente. Meu coração ainda estava no que o LIT não conseguiu resolver e eu queria usar essa energia renovada para aproximar pessoas, livros, conteúdo e informação. Dissipei parte dela (e algum tempo) na busca do nome e do domínio e em reuniões com a designer e o programador que puseram a página de teste no ar. Colocar o conteúdo e o objetivo desse esforço em segundo plano foi um grande erro, mas ver que conseguimos, em questão de meses, ter algo apresentável e acessável pelo público foi altamente esclarecedor. Sobre trabalho conjunto e sobre resultado tangível, mas não sobre o projeto. Tivemos poucos acessos. Gastamos mais do que o necessário, criamos uma estrutura pouco flexível e não obtivemos feedback suficiente para adapta-la. Não trabalhamos bem a divulgação, nem o acompanhamento e nem como transformar esse primeiro esforço em um segundo, um pouco melhor mas ainda longe de pronto.

Foi com essa vontade latente e com pouca experiência do lado de fora da nave que inscrevi o projeto na incubadora. Não sei se estávamos prontas (a Flavo e eu), mas o momento era oportuno e alguém viu pelas minhas palavras o brilho que ardia nos meus olhos. Entendi depois que a seleção se dá por perfil, por propósito, pela essência nas entrelinhas da descrição do projeto — e vontade eu tinha de sobra. Para muitos o programa foi um ambiente seguro de desenvolvimento de projetos desafiadores, pra mim foi o catalisador de uma mudança de paradigma: entre pensar e sentir. Entre o que eu aprendi por anos e o que eu agora construía. A Flavo mudou junto comigo: já teve tendências megalomaníacas de superar o Google e clichês de virar plataforma online. Já se despiu de tudo que havia sido e sofreu por não saber o que vinha a seguir. Já foi solução para a política, para ONGs e para empresas: sempre buscando empoderar pessoas e incentivar o diálogo para construir, incluir e diversificar.

Guardei os planos e planilhas por um tempo. Assim como antes eu andava conforme o que queria aprender, entendi que esse era um passo que deveria partir de mim. Empreender para cumprir qualquer obrigação social vai contra tudo que o tema promete: uma vida de desafios e de altos e baixos que só são equilibrados com muita paixão e propósito. Decidi entender melhor, exercer o tal do diálogo que eu defendo em primeira mão. Me preocupo em ouvir, em perguntar, em observar e participar. Me entranhei no que eu conheço pouco, naquilo que repudiava sem saber e no que decidi não descartar sem conhecer. Não sei se foi uma decisão acertada, isso é algo que o tempo (e quanto tempo eu decidir) vai dizer. Também não penso que é permanente — e se não penso, não é. O que vejo hoje é que mesmo quando um projeto parece dar errado, já deu mais certo que nunca ter pensado em nada. Ideias, passei a acreditar, são bichinhos soltos no universo esperando para serem encontrados por mentes abertas. Meu desejo é que sejamos atentos e acolhedores para pô-las em prática.

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@mjbezzi

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