Flor de Gume e a densidade da literatura produzida por mulheres

Monique Malcher
7 min readJun 19, 2020

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Monique Malcher (autora de Flor de Gume)

Monique Malcher desponta no cenário literário com seu primeiro livro de contos Flor de Gume (Pólen Livros), lançado no mês de março (2020), e aponta para cena literária paraense produzida por mulheres. Na senda de Sultana Rosenblatt e Olga Savary a jovem escritora paraense nos presenteia com 37 contos costurados em sua grande colcha de prosa poética. Monique apresenta ao leitor a imagem que se tem do outro e que se forma sobre si mesmo, lembrando Zilá Bernd. É importante lembrar que a também colagista nos presenteia com quatro trabalhos de sua autoria: a capa e as imagens que subdividem o texto em três partes como um corpo feminino a compor-se.

Entrevista com a escritora Monique Malcher

Cíntia Kutter — Considerando Flor de Gume seu livro de estreia, como você avalia a recepção de sua obra? Sobretudo se levarmos em consideração a questão editorial x a geografia do livro?

Monique Malcher — Flor de Gume é uma criança ainda, foi lançado em março pela Pólen Livros, mas surpreendentemente muitas pessoas não esperaram pelo livro físico e leram em e-book. Não é minha primeira publicação, mas é meu primeiro livro. Um nascimento em plena pandemia era algo que me preocupava, mas a recepção dele se mistura com o momento que estamos vivendo em diversas camadas. A melhor forma de medir essa recepção para mim não está centrada na crítica literária formal ou em uma grande plataforma de notícias, mas nos comentários que recebo por mensagens particulares. Uma boa analogia seria a de um encontro, as leitoras me chamam para uma conversa no canto de um lugar em que nos sentimos deslocadas e não só elogiam, mas confidenciam parte de suas vidas para mim. O livro traz histórias de mulheres em um contexto nortista, que lidam com violências em suas mais variadas dimensões.

Analisando a resposta que tive até aqui das leitoras paraenses especificamente, percebo que há uma identificação não só com as questões que atravessam essa vivência mulher, que busco mostrar que não é de forma alguma universal, mas também dessas vidas conversando com a geografia do lugar, não como a natureza ou o asfalto desse lugar apenas como cenário, mas como extensão desse corpo feminino.

Sinto uma recepção diferente das pessoas no contexto sul-sudeste, para algumas essas histórias são novas e em alguns momentos tem sido usada bastante a palavra “pesado” para se referir ao livro. Fiquei refletindo bastante sobre isso nos últimos meses e cheguei a conclusão que existem palavras melhores, como denso ou complexo, não sei, que escolham outras, mas que lidem com a literatura produzida por mulheres, tanto do norte como do nordeste ou das periferias do Brasil, como uma literatura necessária e urgente. Colocar o livro nesse lugar de narrativa “pesada” talvez aconteça também pela negação de lidar com alguns assuntos que não são falados e me interessa escrever para incitar dúvidas, estranhamentos… não sei se trago respostas ou a obrigação de dar um final que amenize a realidade que nós mulheres vivemos.

C.K — Os temas apontados na obra Flor de Gume passeiam por diferentes espaços, mas o eixo da violência contra a mulher, em diferentes faixas etárias, prepondera. Você percebe a cartografia local como um espaço ainda muito arraigado ao patriarcado?

M.M — Existe uma personagem principal que circula por todos os contos, em algum momento soa como se fossem diversas narradoras, mas é apenas uma. O que fiz foi construir os contos com tons diferentes porque ela vai crescendo, mudando e conforme as situações de violência vão acontecendo isso transforma sua linguagem, sua narração e percepção em relação aos outros personagens. Apenas um conto tem uma narração masculina, mesmo que a presença masculina esteja por todas as partes e oprima, ainda assim, quis que essa narradora falasse. O machismo é ainda muito presente no Pará, como é em todos os lugares do Brasil, talvez aconteça de outras formas através de outros dispositivos, mas tento mostrar que a presença das mães e avós nas famílias paraenses é algo fortíssimo, eu mesma cresci com mulheres que sofriam diversas violências, mas eram mulheres consideradas brutas e mandonas, quando na verdade eram assertivas e precisavam se impor de alguma forma. Trago essa característica para minha escrita, que quase o tempo todo tem muita raiva.

Capa de Flor de Gume

C.K — Em que momento a escritora e a colagista se encontram, e/ou se misturam e/ou se replicam?

M.M — Antes compreendia meu trabalho com a literatura e com as artes plásticas como ações distintas, mas nunca foram e nem nasceram assim. Escrevo sempre pensando em imagens e construo meus textos como se estivesse fazendo uma colagem, em que partes que são estranhas entre si podem co-existir. Ambas nascem de uma inquietação de falar sobre assuntos que antes eu tinha medo de falar. Penso em imagens o tempo inteiro, cresci consumindo um número considerável de quadrinhos e me tornei pesquisadora de quadrinhos na área da Antropologia, porque as imagens me intrigam.

As colagens não são meros trabalhos para embelezar, elas são histórias inteiras, que podem ter muitos caminhos dependendo do olhar de quem observa. Amo muito meus trabalhos independentes com zines justamente porque posso ter a total liberdade de misturar as duas expressões, estou mais preocupada em me expressar de acordo com a pulsão do momento.

No Flor de Gume tentei construir uma atmosfera de mata fechada, com um verde que conversa com o processo de apodrecimento, mas que ainda assim é uma cor de esperança, por mais que ela seja uma esperança outra. A capa e quarta capa são uma coisa só, como um quadro ou uma foto panorâmica. Usei pétalas de flores do primeiro inverno que vivi em Floripa, que ficaram adormecidas em um livro. Os tons de verde são os mesmos de um colar que herdei de uma das minhas avós.

C.K — Há presença das diferentes personagens que formam a sua feminina-ciranda, em especial, mãe e avós. Fale-nos um pouco dessa construção e da costura d(n)essas mulheres a cartografia amazônica.

M.M — Flor de Gume é também uma teia de encontros e desencontros de filhas com mães e avós, por muitas vezes todas essas vidas poderiam ter sido interrompidas, mas não são porque essas mulheres estavam juntas. O processo de autoreconhecimento da filha que olha para o corpo da mãe e vê as mesmas marcas de violência em seu corpo ou da neta que quer trocar de lugar com o corpo morto da avó, as brigas entre elas e a reaproximação. Em algum nível é um livro também de formação em que você mergulha no rio dos pensamentos dessa narradora e dessas mulheres de diferentes gerações.

C.K — O livro, mesmo sendo no formato conto, possui três subdivisões que funcionam quase como uma tríade independente, mas durante a leitura do livro percebemos a dependência das partes para compor o que ousadamente chamarei aqui de um Bildungsroman feminino amazônico. Fale-nos um pouco sobre esse tríptico.

M.M — Que lindo você ter percebido isso Cíntia. Realmente, o Flor de Gume acompanha o desenvolvimento dessas personagens como eu já havia dito antes, não se trata de um livro com reunião de contos aleatórios, todos eles estão no mesmo universo olhando de forma mais atenta, porque existem diversas formas de ser e estar nessa Amazônia, mesmo os contos que se passam em Floripa trazem a questão da mulher que migra, entendo aí o corpo como parte desse território. A divisão das três partes não eram tão óbvias na minha cabeça, minha editora Jarid Arraes que me fez perceber que poderíamos dividir o livro assim. Então reli com essa nova divisão e tive a ideia de colocar títulos que sozinhos funcionassem como um poema. A prosa poética é minha paixão, gosto muito de escrever desse modo. As mulheres da primeira parte não são as mesmas quando chegam na terceira, espero que as leitoras também não. Eu também não sou a mesma.

C.K — Pensando a autora como uma divulgadora do novo cenário literário feminino amazônico, você pretende trabalhar em algum projeto voltado para as mulheres que escrevem, mas não sabem como ou até mesmo porquê publicar?

M.M — Nem de longe sou a única mulher que faz esse trabalho, muitas mulheres paraenses de diversas regiões e realidades estão nessa luta, que é e deve continuar sendo coletiva. No momento estou editando uma zine chamada “Segredo” com 13 escritoras paraenses como resultado de um curso de autopublicação que ministrei no Sesc do Pará e sou uma das curadoras da Antologia de escritoras paraenses chamada “Trama das Águas” que será publicada ainda esse ano pela Monomito Editorial com um edital aberto para mulheres publicadas ou não.

C.K — Para finalizarmos, você está trabalhando em algum novo projeto individual ou em parceria com outras escritoras?

M.M — Estou escrevendo um livro novo, que a protagonista é atendente de telemarketing e alguns contos sobre relacionamentos amorosos, que ainda não decidi se pode virar um livro ou uma zine. Além disso, toda semana publico um texto na minha newsletter pessoal. Também tenho me dedicado ao trabalho como capista, amo trabalhar em todos os aspectos que envolvem o livro.

Cíntia Acosta Kütter é pesquisadora PNPD na Universidade Federal do Pará e doutora em letras vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Suas pesquisas versam sobre Bildungsroman feminino, literaturas africanas de língua portuguesa, literatura afro-brasileira e literatura paraense feminina.

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