A narrativa da Pandemia manipulada por meio do Design — Parte 1

Ou como Painel Coronavírus do Ministério da Saúde reflete as narrativas do Governo Federal

Daniel Santiago
7 min readMay 21, 2020
Fique em casa. https://unsplash.com/

Parece que foi há muitos anos, mas o primeiro caso oficial confirmado de uma pessoa contaminada com a Covid-19 no Brasil, foi no dia 26 de fevereiro. Era um homem de 61 anos, morador de São Paulo, que havia dado entrada no Hospital Israelita Albert Einstein dias atrás, após histórico de viagem à Itália — mais precisamente a região da Lombardia — e apresentar sintomas como febre, coriza, tosse e dor de garganta.

O tal vírus vindo de Wuhan, havia realmente cruzado o Atlântico a bordo de um avião e estava entre nós.

Nesta época longínqua de pouco menos de 4 meses atrás, nosso então ministro da Saúde — Luiz Henrique Mandetta, médico ortopedista — já havia pontuado:

“São Paulo é a cidade mais populosa do país e tem uma comunicação com a Itália e países europeus e comunidades destas nacionalidades muito extensas, e esse trânsito deve se intensificar, porque as pessoas com receio do vírus antecipam sua volta das férias ou de intercâmbio”, disse Mandetta. (Fonte: BBC)

E como todo bom brasileiro ou brasileira, todos sabemos o que estava ocorrendo em nosso país no mês de fevereiro. E como todo carnaval tem seu fim, o deste ano se encerrou precisamente dia 25. Um dia antes do nosso primeiro caso confirmado. Ora, ora.

Dados de 10/mar até 18/mar

Exatos 1 mês depois, no dia 26 de março, o Ministério da Saúde lança um novo painel oficial (covid.saude.gov.br) para o acompanhamento dos casos de Coronavírus no Brasil. O número já era alarmante, tínhamos 2.915 casos confirmados e 77 óbitos. A palavra “crescimento exponencial” começava a desenhar um cenário que até pouco tempo atrás parecia distante em nosso país ensolarado, já que como diziam, o vírus não gosta de calor.

Painel Coronavírus

Neste momento já não fazia mais sentido contar casos “suspeitos” e “descartados”. Com isso, o próprio Painel Coronavírus trazia agora duas informações principais: Casos confirmados e Óbitos em destaque. Guarde essa informação.

Como designer, o dashboard do Painel me chamou bastante atenção desde o início. Sua interface trazia transparência exibindo a hora e a data da última atualização, informações claras e objetivas, uso de cores para destacar os dados e um dos pontos mais interessantes, a hierarquia da informação.

O destaque então para essas duas primeiras informações — casos e óbitos — não é por acaso. Ela reflete a gravidade e as preocupações de um colapso no sistema de saúde que vinham sendo apontadas pelo então ministro Luiz Henrique Mandetta e prontamente rebatidas e confrontadas pelo Presidente da República Jair Bolsonaro, que em pronunciamento em rede nacional no dia 24 de março, criticou o fechamento de escolas e comércios e comparou a contaminação pelo Covid-19 a uma “gripezinha” ou “resfriadinho”.

Ministro Mandetta em videoconferência do Governo com empresários. 20/03/2020

“A gente deve entrar em Abril e iniciar a subida rápida. Essa subida rápida vai durar o mês de Abril, o mês de Maio e o mês de Junho, quando ela vai começar a ter uma tendência de desaceleração de subida. O mês de Julho, ela deve começar o platô. Em Agosto esse platô vai começar a mostrar tendência de queda e aí a queda em Setembro é uma queda profunda, tal qual foi a queda de março na China.” — Luiz Henrique Mandetta

Versão 1.0 (Update)

Assim como qualquer produto digital, a interface desse Painel veio ganhando atualizações ao longo desse tempo. Em Abril por exemplo, já podemos ver uma nova informação em rosa (#fb397a). Agora é exibida a Letalidade do coronavírus aqui no Brasil.

Painel Coronavírus em 22/04/2020

A taxa de letalidade é um parâmetro utilizado para medir a gravidade do vírus. Ela é calculada pelo percentual de pacientes com a doença que evoluem para óbito em decorrência dela.

Esse valor está relacionada tanto à severidade do vírus quanto às condições de atendimento na rede de saúde do país. Ou seja, voltamos a pontuar o impacto do vírus, principalmente no sistema público de saúde que atinge os mais vulneráveis da nossa população.

Versão 2.0

Em Maio surge uma nova atualização e dessa vez as mudanças são bem mais significativas que as anteriores. Temos então a versão 2.0 do dashboard.

Mas antes de aprofundar sobre as principais mudanças visuais, é preciso dizer que também já tínhamos mudado de ministro, o segundo desde a chegada da pandemia no país. Mandetta, das previsões acima, foi demitido e Nelson Teich assumiu o cargo em 17/04 dizendo:

“Ainda há uma pobreza muito grande de informações, o que leva a um nível de ansiedade e medo. Além da COVID-19, temos que trabalhar para administrar o comportamento da sociedade. Vamos trabalhar trazendo confiança por meio da informação de qualidade, planejamento e conhecimento, porque aí sim será possível achar uma solução” (Fonte: Ministério da Saúde)

No discurso de Teich fica claro o novo posicionamento, o vilão não é mais o vírus e sim, como ele pontuou: a pobreza de informações, comportamento da sociedade, a ansiedade, o medo e a falta de confiança.

Painel Coronavírus em 14/05/2020

E como isso é representado visualmente? Mais números e nova hierarquia da informação. Lembram das primeiras versões? Se não, vale rolar a tela para cima e voltar.

Existe um ditado conhecido bem no mundo dos designers de interface que é “Quando tudo é importante, nada é importante.”.

Pois é, nesta versão, apesar de termos mais dados e mais informações para assimilar de uma vez só mas ela não comunica. Todos possuem o mesmo peso visual e o que se destaca não são mais os dados sobre a doença e sim uma caixa nova de fundo verde intitulada de “Sobre o painel”, reverenciando o Ministério da Saúde em divulgar os dados consolidados.

Novos dados

Entre as novas informações, duas delas dão indício do posicionamento que estaria por vir: O número de casos em acompanhamento e casos recuperados. Não estamos mais só falando de infectados e mortos, há também bons números para serem divulgados. Esse é o recado.

Taxa de Mortalidade x Letalidade

A taxa de mortalidade divulgada é mortos por 100 mil habitante. Lembrando que mortalidade e letalidade são taxas diferentes. A letalidade é o total de mortos pelo total de pessoas infectadas por ela

Isso leva a entendimentos diferentes sobre o que está acontecendo no país. Com esse cálculo, por exemplo, podemos dizer que hoje, data de publicação desse texto, a Suécia, com 3.871 mortes, tem a pior taxa de mortalidade por Covid-19 do mundo.

E o número de mortes por aqui segue subindo e projeções colocam o Brasil como futuro novo epicentro do coronavírus no mundo.

Dados de 17/mar até 19/mai

Versão 2.0 (Update)

  1. Lembram dos dois novos dados inseridos discretamente no último update para lembrar-mos que nem tudo é má notícia?
  2. Lembram do bloco de fundo verde utilizado para tirar a atenção dos dados de mortos e infectados?
  3. Lembram do nosso ministro da Saúde, Nelson Teich? Pediu demissão em menos de um mês.
Painel Coronavírus em 20/05/2020

Agora temos quatro blocos e a hierarquia da informação nos mostra que o mais importante são os casos recuperados e os casos em acompanhamento. Além do fundo verde em destaque, as fontes ficaram maiores (52px e 32px).

Tamanho das fontes utilizadas em cada bloco de informação

Em contrapartida, o bloco óbitos confirmados teve a cor do título alterada de roxo para um cinza (#9fb5c8) quase apagado e as fontes dos dados de óbitos, letalidade, casos novos e mortalidade também ficaram menores ainda (21px).

Cereja do bolo

Na primeira versão, o rodapé do Painel exibia seguinte frase: “Painel do surto de vírus de COVID-19 no Brasil criado pelo Ministério da Saúde.”.

Rodapé versão 1.0

Mas aparentemente, “surto de vírus” poderia assustar as pessoas e o objetivo de um painel sobre uma gripezinha que já infectou mais de 4 milhões de pessoas pelo mundo e já é a causa número um de morte no Brasil não é criar pânico na população. Assim fica melhor:

“Painel de casos de doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) no Brasil pelo Ministério da Saúde.”

Rodapé versão 2.0

Update: Leia também a Parte 2.

Obrigado!

Fiquem em casa se puderem e usem máscara 😷!

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