O que é uma casa?

Rodrigo de Moura
6 min readAug 23, 2020

Se alguém mora, mora em algum lugar. Assim como tantos outros seres, o humano necessita de casa. Seja ela perene ou temporária, cada cultura mundo afora encontrou sua maneira conformar essa necessidade. Existem habitações coletivas e individuais. Casas enormes com piscina ou mesmo esculpidas na rocha. Existem as casas para uma noite apenas. Aquelas que são feitas e se desfazem no momento em que são deixadas para trás. Podem ser de palha, de madeira ou tijolos como na fábula dos três irmãos, ou mesmo recoberta com os mais preciosos metais como a casa do rei da França em Versailles. Mas, cá entre nós, afinal o que faz de um espaço uma casa? Quais são os elementos mínimos para que ela exista? Bom, meu convite aqui é pensar um pouco sobre isso.

Nós, assim como outros seres vivos, estamos sujeitos às condições que o meio nos oferece e temos uma porção de necessidades a serem satisfeitas para que nos mantenhamos vivos e saudáveis. Abraham Maslow, psicólogo estadunidense, propôs uma hierarquia de tais necessidades. É preciso se alimentar, se proteger do frio, do sol, da chuva, de predadores. Um lugar para cuidar dos filhos, armazenar provisões. Um lugar seguro para poder dormir e sonhar. Pensando espacialmente, tais necessidades podem ser satisfeitas de muitas maneiras, como podemos ver na diversidade de arquiteturas existentes feitas por diferentes culturas em diferentes tempos e como elas nos dão variadas respostas para o habitar.

Imagem 1 — Gob Rendille: embora hoje a sociedade ocidental e ocidentalizada seja em sua maioria absoluta sedentária, nem sempre foi assim. Ainda há no mundo diversos povos nômades que montam e remontam suas habitações em diferentes locais de suas rotas. Os Rendilles, povo seminômade do Quênia, fazem e refazem e refazem vilas inteiras ao longo do deserto de Kaisut para se adequar às melhores condições para o pastoreio de camelos. As casas são resistentes às intempéries, mas feitas para a mudança. Imagens: Mariana Schmidt

Então a casa é um abrigo nos proteger dos males que vem de fora, não é? Nesse primeiro momento digamos que é também, mas não somente. A casa pode ser uma fortificação contra os perigos do mundo, mas não é apenas esse o seu papel. Os seres humanos são criaturas simbólicas e modificam o espaço ao seu redor na construção da realidade. Há na ação humana mais do que o simples pragmatismo, há o desejo, há o medo, há o ser.

Por meio de nossa ação no mundo concreto, mediada por nossa capacidade simbólica e imaginativa, vamos marcando a paisagem com sinais, construções, rotas. As grandes peregrinações têm seus locais de partida e chegada. Há monumentos que contam sobre o tempo. O espaço se torna lugar. Todo o fazer arquitetônico se dá numa mistura indissociável do constante diálogo entre nossas necessidades concretas e abstratas aliadas ao repertório cultural, artístico e técnico de quem a faz. Se há medo, proteções serão necessárias. Nas hierarquias, o poder será representado para que seja reconhecido por outros do mesmo grupo ou mesmo pelo estrangeiro. O espaço está marca até onde se pode ir, onde ficar, de onde sair. Cada parede erguida diz mais sobre nós do que gostaríamos de admitir.

— As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.

— Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge. (CALVINO, 1990)

Gaston Bachelard em A Poética do Espaço imagina a casa como o lugar onde o sonhador sonha com a cabana, com o ninho, com os cantos em que gostaria de se encolher como um animal em seu buraco [3]. Lugar onde podemos ser quem somos, sem máscaras ou disfarces, e nos sugere uma volta à infância — sugerindo, em seu extremo, uma volta ao útero materno. A casa não é apenas o abrigo, mas também origem, o ponto de partida do qual caminhamos em direção à vida. Na dialética entre nós e o mundo a casa é um lugar para voltar e só se volta para onde já não se está. A casa é a sede da intimidade.

Imagem 2 — O Nascimento de Vênus de Boticelli. Bachelard reforça a ligação da ideia da casa à ideia da concha. Não como uma dura carapaça como a de uma lagosta ou siri, mas como a concha de um molusco que permite certa mobilidade. Um exoesqueleto que oferece a possibilidade de ir e vir ou mesmo ser trocado. A concha também nos remete à ligação da água com a terra como no mito de Vênus (Afrodite para os gregos), deusa da beleza e do amor, que nasce da castração de Saturno (Cronos para os gregos), o Tempo, por seu filho Júpiter (Zeus para os gregos). Ao cortar os testículos que do pai que fecundam o mar ao cair dos céus, Júpiter permite o nascimento de Vênus a partir de uma concha que emerge do mar para se abrir em solo firme. A concha de vênus faz remete ao ventre materno que Bachelard vai ilustrar como casa primeira.

As casas são onde nos encontramos com quem somos, mas também com quem queremos ser e, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que todas as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa [2]. Cada gesto presente na construção e vivência da casa vai de encontro com aquilo que há de mais misterioso e particular em cada um de nós. Seja de maneira consciente e intencional ou inconsciente, nossas ações na construção do espaço falam muito a respeito do que queremos e do que não queremos. As coisas que nos cercam no espaço podem revelar o modo como abrigamos dentro de nós muitas identidades diferentes, e nem todas parecem igualmente “nós”, tanto que em determinados estados de espírito podemos nos queixar de termos nos afastado do que julgamos ser o nosso eu verdadeiro [4]. Cada decisão parece advir de uma consciência soberana e solene, desde a localização de nossa morada, até mesmo os objetos mais inúteis que acumulamos em seu interior, mas há em nossas escolhas uma grande bagagem oriunda de experiências habitam nosso inconsciente e se manifestam no diálogo que temos com nossas condições materiais concretas dentro das dinâmicas sociais das quais participamos. Ou seja, tudo é e não é o que parece, ao mesmo tempo.

Imagem 3 — A Cabana Primitiva — Vitruvius, arquiteto romano da Antiguidade famoso por um dos mais antigos tratados da arquitetura ocidental, descreverá a ideia da cabana primitiva feita pelos seres humanos a partir de um bosque e ilustrada muito mais tarde na história por Marc-Antoine Laugier. A ideia proposta por Vitruvius é muito semelhante ao expresso em Gênesis 2:26 “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” onde Deus faz Adão à Sua própria imagem. Porém nos textos do arquiteto romano o homem fará a arquitetura à sua imagem e semelhança. As ordens clássicas arquitetônicas estariam diretamente ligadas à forma humana com cabeça (capitel), tronco (fuste) e membros, mais especificamente, pés (base). Uma coluna deveria ter aproximadamente 6 a 7 vezes o tamanho de seu capitel assim como a escala entre a cabeça e a altura total de uma pessoa adulta. Por mais que hoje as construções não sigam as ordens clássicas sua escala sempre parte do humano.
Imagem 4 — Proporções humanas. O Homem Vitruviano (esquerda), obra de Leonardo Da Vinci, é baseado nos estudos de proporção do arquiteto romano. Há um modelo de corpo ideal que será refletido no corpo material das construções. O belo clássico será afirmado nas constantes retomadas do modelo greco-romano de construir (Renascimento, Barroco, Neoclassicismo…). Com a ruptura da tradição histórica de construção quem ver com o Movimento Moderno, há também novas propostas de sistemas de proporção. Publicado em 1948, o Modulor (direita) de Le Corbusier é um exercício que costura o corpo humano à arquitetura que ele habita.
Imagem 5 — As Cariátides no Erectêion — A figura humana literal que sustenta o peso da edificação. Os Atlantes, figuras masculinas em posição semelhante, remetem ao mito de Atlas, titã que foi condenado a suportar o peso do mundo nas costas.

Tão importantes quanto às paredes que sustentam o teto sobre nossas cabeças são os quadros que nelas colocamos. As casas abrigam não só as pessoas que nela moram, mas toda sua expressão do modo de ser e estar no mundo. Para Alain de Botton, colocamos ao nosso redor formas materiais que nos comunicam aquilo que precisamos interiormente — mas estamos sempre correndo o risco de esquecer [4]. Há um grande esforço, muitas vezes invisível, de nossa parte para tornar concreto o nosso mundo interno. As crenças e sonhos que nos habitam se fortalecem quando encontram correspondentes que os sustentem no mundo concreto. A casa imaginária (desejada ou sonhada) e a casa real (concreta) dependem uma da outra de forma inseparável. Uma só existe por conta da outra.

Imagem 6— Dentro das possibilidades que o contexto lhes proporciona cada pessoa vai colocando no espaço um pouco daquilo que acredita e dos valores que carrega consigo. Nada é acidental na construção de uma casa.A casa antes de ser um esconderijo, é um lugar para se revelar. Nos registros da fotógrafa Renata Castello Branco podemos ver como cada objeto, cada cor e cada espaço vai sendo construído a fim de evocar o mundo que habitamos dentro de nós.
Imagem 7 — Quem gostaríamos de ser se pudéssemos escolher? O que cada escolha dentro de nossas casas dizem a nosso respeito? O que a estética da casa pode nos ensinar sobre nós mesmos e sobre os outros?

A casa nos guarda e nos revela. Não é (ou pelo menos não deveria ser) sinônimo de depósitos de vida empilhados uns sobre os outros como caixas de sapatos onde cada pessoa é guardada até que seja economicamente útil novamente. Não basta caber o nosso corpo, é necessário abrigar quem somos sozinhos e quem somos com os outros. Há de ser abrigo para o corpo e para a nossa expressão imaterial.

Parafraseando Calvino, cada casa recebe a forma do deserto a que se opõe. Mais do que a geometria ou mesmo ergonomia do espaço, pensar sobre a casa é pensar sobre como vivemos com os outros e com nós mesmos. É pensar na porção e configuração espaciais suficientes para abrigar nossos desejos, medos, sonhos e símbolos. Mas o que seria uma habitação suficiente? Bom, essa é uma outra história e deverá ser contada em outra ocasião.

Obras Citadas

1 — A BÍBLIA. Gênesis 2. As origens da humanidade. Coordenação de Tradução de Ludovico Garmus. 45ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. Velho Testamento e Novo Testamento.

2 — CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi Diogo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

3 — BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. 1. ed. São Paulo : Abril Cultural, 1978.

4 — BOTTON, Alain de. A arquitetura da felicidade. Tradução de Talita M. Rodrigues. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

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Rodrigo de Moura

Arquiteto e pesquisador. Li A História Sem Fim dezenas de vezes.