O que é uma casa?
Se alguém mora, mora em algum lugar. Assim como tantos outros seres, o humano necessita de casa. Seja ela perene ou temporária, cada cultura mundo afora encontrou sua maneira conformar essa necessidade. Existem habitações coletivas e individuais. Casas enormes com piscina ou mesmo esculpidas na rocha. Existem as casas para uma noite apenas. Aquelas que são feitas e se desfazem no momento em que são deixadas para trás. Podem ser de palha, de madeira ou tijolos como na fábula dos três irmãos, ou mesmo recoberta com os mais preciosos metais como a casa do rei da França em Versailles. Mas, cá entre nós, afinal o que faz de um espaço uma casa? Quais são os elementos mínimos para que ela exista? Bom, meu convite aqui é pensar um pouco sobre isso.
Nós, assim como outros seres vivos, estamos sujeitos às condições que o meio nos oferece e temos uma porção de necessidades a serem satisfeitas para que nos mantenhamos vivos e saudáveis. Abraham Maslow, psicólogo estadunidense, propôs uma hierarquia de tais necessidades. É preciso se alimentar, se proteger do frio, do sol, da chuva, de predadores. Um lugar para cuidar dos filhos, armazenar provisões. Um lugar seguro para poder dormir e sonhar. Pensando espacialmente, tais necessidades podem ser satisfeitas de muitas maneiras, como podemos ver na diversidade de arquiteturas existentes feitas por diferentes culturas em diferentes tempos e como elas nos dão variadas respostas para o habitar.
Então a casa é um abrigo nos proteger dos males que vem de fora, não é? Nesse primeiro momento digamos que é também, mas não somente. A casa pode ser uma fortificação contra os perigos do mundo, mas não é apenas esse o seu papel. Os seres humanos são criaturas simbólicas e modificam o espaço ao seu redor na construção da realidade. Há na ação humana mais do que o simples pragmatismo, há o desejo, há o medo, há o ser.
Por meio de nossa ação no mundo concreto, mediada por nossa capacidade simbólica e imaginativa, vamos marcando a paisagem com sinais, construções, rotas. As grandes peregrinações têm seus locais de partida e chegada. Há monumentos que contam sobre o tempo. O espaço se torna lugar. Todo o fazer arquitetônico se dá numa mistura indissociável do constante diálogo entre nossas necessidades concretas e abstratas aliadas ao repertório cultural, artístico e técnico de quem a faz. Se há medo, proteções serão necessárias. Nas hierarquias, o poder será representado para que seja reconhecido por outros do mesmo grupo ou mesmo pelo estrangeiro. O espaço está marca até onde se pode ir, onde ficar, de onde sair. Cada parede erguida diz mais sobre nós do que gostaríamos de admitir.
— As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.
— Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge. (CALVINO, 1990)
Gaston Bachelard em A Poética do Espaço imagina a casa como o lugar onde o sonhador sonha com a cabana, com o ninho, com os cantos em que gostaria de se encolher como um animal em seu buraco [3]. Lugar onde podemos ser quem somos, sem máscaras ou disfarces, e nos sugere uma volta à infância — sugerindo, em seu extremo, uma volta ao útero materno. A casa não é apenas o abrigo, mas também origem, o ponto de partida do qual caminhamos em direção à vida. Na dialética entre nós e o mundo a casa é um lugar para voltar e só se volta para onde já não se está. A casa é a sede da intimidade.
As casas são onde nos encontramos com quem somos, mas também com quem queremos ser e, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que todas as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa [2]. Cada gesto presente na construção e vivência da casa vai de encontro com aquilo que há de mais misterioso e particular em cada um de nós. Seja de maneira consciente e intencional ou inconsciente, nossas ações na construção do espaço falam muito a respeito do que queremos e do que não queremos. As coisas que nos cercam no espaço podem revelar o modo como abrigamos dentro de nós muitas identidades diferentes, e nem todas parecem igualmente “nós”, tanto que em determinados estados de espírito podemos nos queixar de termos nos afastado do que julgamos ser o nosso eu verdadeiro [4]. Cada decisão parece advir de uma consciência soberana e solene, desde a localização de nossa morada, até mesmo os objetos mais inúteis que acumulamos em seu interior, mas há em nossas escolhas uma grande bagagem oriunda de experiências habitam nosso inconsciente e se manifestam no diálogo que temos com nossas condições materiais concretas dentro das dinâmicas sociais das quais participamos. Ou seja, tudo é e não é o que parece, ao mesmo tempo.
Tão importantes quanto às paredes que sustentam o teto sobre nossas cabeças são os quadros que nelas colocamos. As casas abrigam não só as pessoas que nela moram, mas toda sua expressão do modo de ser e estar no mundo. Para Alain de Botton, colocamos ao nosso redor formas materiais que nos comunicam aquilo que precisamos interiormente — mas estamos sempre correndo o risco de esquecer [4]. Há um grande esforço, muitas vezes invisível, de nossa parte para tornar concreto o nosso mundo interno. As crenças e sonhos que nos habitam se fortalecem quando encontram correspondentes que os sustentem no mundo concreto. A casa imaginária (desejada ou sonhada) e a casa real (concreta) dependem uma da outra de forma inseparável. Uma só existe por conta da outra.
A casa nos guarda e nos revela. Não é (ou pelo menos não deveria ser) sinônimo de depósitos de vida empilhados uns sobre os outros como caixas de sapatos onde cada pessoa é guardada até que seja economicamente útil novamente. Não basta caber o nosso corpo, é necessário abrigar quem somos sozinhos e quem somos com os outros. Há de ser abrigo para o corpo e para a nossa expressão imaterial.
Parafraseando Calvino, cada casa recebe a forma do deserto a que se opõe. Mais do que a geometria ou mesmo ergonomia do espaço, pensar sobre a casa é pensar sobre como vivemos com os outros e com nós mesmos. É pensar na porção e configuração espaciais suficientes para abrigar nossos desejos, medos, sonhos e símbolos. Mas o que seria uma habitação suficiente? Bom, essa é uma outra história e deverá ser contada em outra ocasião.
Obras Citadas
1 — A BÍBLIA. Gênesis 2. As origens da humanidade. Coordenação de Tradução de Ludovico Garmus. 45ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. Velho Testamento e Novo Testamento.
2 — CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi Diogo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
3 — BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. 1. ed. São Paulo : Abril Cultural, 1978.
4 — BOTTON, Alain de. A arquitetura da felicidade. Tradução de Talita M. Rodrigues. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
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