Raul Moura
STICK TO SPORTZ
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7 min readDec 20, 2017

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21 anos depois, Capítulo 4, Versículo 3 ainda traduz a situação do negro no Brasil.

Escrita em 1997, música dos Racionais MC’s retrata cotidiano de violência que atinge os jovens de periferia em 2017

Marcella Stewers, Pietro Otsuka, Raul Moura, Vinícius Lopes

Foto: Divulgação – Capa do álbum “Sobrevivendo ao inferno”

Em 1997, o grupo de rap Racionais Mc’s divulgava o que deve ser o ápice de sua trajetória musical: o álbum Sobrevivendo no Inferno. O disco, de selo independente, vendeu cerca de 1,5 milhão de cópias e alavancou a carreira do quarteto na cena artística nacional. A faixa Capítulo 4, Versículo 3 trazia em letras frias o cotidiano turbulento nos guetos da capital paulista. Vinte anos depois, dados mostram que o racismo e a violência continuam afetando a vida dos jovens de periferia.

A atmosfera sonora da faixa é de filme de terror: latidos, sirenes e ruídos característicos do vinil se contrapõem a músicas com temáticas voltadas a religião. Tudo isso é narrado pela voz de um jovem negro que descreve a sua tentativa de “sobreviver no inferno”.

“Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo.” É assim que se inicia Capítulo 4, Versículo 3 – uma das mais emblemáticas do álbum. Nela, o “sobrevivente” e também rapper, Primo Preto, traz essas estatísticas espantosas a respeito da condição do negro no Brasil.

Esses números, que revelam o lado pouco visto da população brasileira, impactaram os ouvintes e se tornaram um marco para a comunidade negra no Brasil. O racismo ainda é uma característica enraizada na sociedade e na cultura dos brasileiros.

1997 X 2018

Traçando um comparativo entre os anos de 1997 e 2018 é possível perceber uma estagnação e até mesmo um retrocesso nos números. Antes, a cada quatro pessoas mortas, três eram negras. Hoje a cada 100 mortes, 71 são de negros – segundo dados do IBGE.

O dado que mais choca é em relação a violência. Segundo pesquisa divulgada pela Ufscar em 2014, a cada 23 minutos um jovem negro morre violentamente. Esse número é três vezes maior do que o de agressão cometida contra brancos e 10 vezes maior do que o dado retratado na emblemática música dos Racionais MC’s.

O advogado Vicente Nogueira comenta que nos últimos 20 anos a legislação brasileira trouxe relevantes mudanças que solidificaram o caráter de resistência muito presente na luta do povo negro. O Estatuto da Igualdade Racial, promulgado em julho de 2010, é a prova disso. “Ele visa garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”, diz.

“Violentamente pacífico, verídico.

Vim pra sabotar seu raciocínio.

Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo”

Desde o “renascimento da fúria negra” – como era denominado o movimento negro na época, uma referência ao histórico discurso “I have a dream” do líder norte americano Martin Luther King – o número de negros matriculados em universidades teve um salto considerável e mesmo assim não foi tão significativo. De 2% pulou para 12,8% contra 74% dos brancos, segundo o IBGE.

A mudança desse panorama se deve a implementação das cotas raciais que aumentou cerca de 225% o número de vagas ocupadas por negros no Brasil. Em termos de legislação, foi em agosto de 2012 que esse código foi implementado. “Essa lei dispõe sobre o ingresso dos negros nas universidades e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio” explica Nogueira.

Atrelado a ela, uma nova Lei Federal promulgada em julho de 2014 reserva o percentual de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para negros. As cotas foram uma das soluções encontradas para tentar diminuir o déficit histórico da ausência de negros e pobres nas universidades brasileiras.

“Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial”. A opressão por parte da Polícia Militar – mão forte do Estado – intimamente atrelada ao racismo, ainda é uma pauta constante na luta do movimento negro no Brasil. Casos de arbitrariedade e abusos são comuns contra jovens negros e, geralmente, moradores de periferias.

Foto: Pietro Otsuka

O estudante de engenharia Thomas Uwande relata casos de racismo que vivenciou. “Eu estava voltando para casa, com vários livros da faculdade na mão, quando a polícia começou a vir atrás de mim. Eu já estava na rua da minha casa. Eles me pararam e fizeram a revista porque achavam que eu era suspeito”. É com indignação que o estudante, sem nenhuma passagem pela Polícia, Thomas Uwande relata mais um dia de sua vida.

“É pura matemática: vai acontecer. É algo concreto. A sociedade leva em conta sua cor, o lugar em que você mora e não quem você é”. Esse depoimento de Uwande vem de encontro ao de outros milhares de pessoas que compartilham essa realidade. O ator Renato Silvestre de 34 anos, diz que dá vontade de chorar. “É uma sensação de impotência enorme. Como é que em uma sociedade em que a maior parte é negra, ainda temos que passar por esse tipo de situação?” se questiona.

Foto- Marcella Stewers

O ator Renato Silvestre luta para um Brasil menos preconceituoso.

“Um dia um PM negro veio embaçar e

disse pra eu me pôr no meu lugar,

eu vejo um mano nessas condições, não dá”

“Já cansei de ir ao mercado perto da minha casa e os seguranças me seguirem só por causa da minha cor. Eles sabem que sou estudante e moro numa república e mesmo assim me seguem porque se sentem ameaçados. Quando meus amigos brancos vão ninguém faz nada”, conta Wellington Levy de 24 anos, que já perdeu as contas de quantas vezes já viveu e já presenciou esse tipo de situação.

Uma das vezes que mais o deixou indignado foi quando ele estava nesse mesmo mercado e se deparou com duas senhoras, acompanhadas dos filhos, sendo seguidas. “Uma delas começou a discutir com o segurança dizendo que todas as vezes que ela ia lá era seguida. E ela era uma daquelas pessoas que você vê que trabalha o dia todo para sustentar dignamente a família”, lembra ele.

O segurança era o mesmo que tinha o seguido há dias atrás. “Acabei procurando uma advogada para entrar na justiça, mas depois eu mesmo não quis levar adiante. Fiquei com medo. Esse medo de levar adiante as coisas, talvez, desanima um pouco. É complicado”, completa Levy.

Nogueira frisa a importância de denunciar esses casos e explica que a lei que está por trás desse crime engloba duas espécies: a injúria racial e o racismo. A injúria, segundo o Código Penal, seria ofender a dignidade ou decoro utilizando elementos de raça, cor, etnia, religião ou origem. “Em geral, o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima”, comenta Nogueira.

Já o racismo, segundo o Código Penal, define “os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”. O advogado explica que essa prática implica uma conduta discriminatória dirigida a determinado grupo e que, geralmente, refere-se a crimes mais amplos. “A lei enquadra uma série de situações como crime de racismo, por exemplo, recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negar ou obstar emprego em empresa privada, entre outros” completa.

A sentença para quem comete esse tipo de crime varia. Para injúria racial a pena é de reclusão de um a três anos e multa, além da pena correspondente à violência para quem cometê-la. Já para o racismo a pena pode chegar a cinco anos de reclusão. “Vale lembrar que o crime de racismo é imprescritível – não se perde com o tempo, seus autores podem ser condenados a qualquer momento – e inafiançável”, diz Nogueira.

“Minha palavra alivia sua dor,

ilumina minha alma,

louvado seja o meu senhor”

“Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição (…) Para abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo”. Ao decorrer da música Mano Brown, principal vocalista do grupo, manifesta a sua revolta com essa situação da maneira mais violenta e intensa possível, com sua arte. “Acredito que essa obra ainda vai nos representar durante muitos anos, muitas de nossas dores, angústias, desejos, histórias que vivemos ou ouvimos de um conhecido de um conhecido, está tudo lá”, afirma o rapper Rai Faustino.

O artista acredita que a música Capítulo 4, Versículo 3 é parte da coletânea de um trabalho que representa o povo negro e carrega consigo um legado. “O álbum em si é algo obrigatório. Não se pode falar de rap nacional sem abordar esse disco”, diz.

Faustino comenta que quando era mais novo, as letras o impactavam de um jeito diferente. “Tem partes que eu não tinha maturidade para entender. É sempre um choque ter essa perspectiva diferente. Amadurecer ao lado dessas músicas foi algo de suma importância para o meu caráter”.

O Racionais Mc’s após 1997 lançaram dois álbuns de estúdio, incluindo duas produções ao vivo e um DVD. No entanto, a geração que vivenciou o cenário de denúncia do ano e as gerações posteriores recordam e se remetem ao “Sobrevivendo no Inferno” e sua transgressão como um dos expoentes da música negra no Brasil, sendo não só um álbum como também um retrato de sua realidade.

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