Afinal, são todos fascistas?

Moysés Pinto Neto
7 min readFeb 23, 2022

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Um dos grandes divisores do pensamento social no século XX foi a eclosão do nazismo e do fascismo nas décadas de 30 e 40. O evento perturbou a representação até então dominante de que os oprimidos lutariam automaticamente em prol dos seus direitos, reivindicando a melhoria da qualidade de vida de todos. Haveria uma espécie de adesão automática, uma vez desvanecido o estado de alienação popular por meio do esclarecimento, a pautas progressistas.

Até aquele momento, havia a ilusão de que as massas acompanhariam a amplificação dos direitos e do bem estar.

Os casos do nazismo e do fascismo italiano mostraram que não era bem assim.

Também o ressentimento, o supremacismo, a aversão à diferença tinham capacidade de mobilizar massas. O surgimento de um tipo de populismo baseado no culto ao líder, na homogeneidade social, na perseguição dos marginais e na fidelidade incondicional também era capaz de mobilizar o desejo das pessoas com o mesmo fervor que, por exemplo, a luta por justiça social ou pelo fim da exploração.

Foi com esse fato — de que as massas desejaram o fascismo — que tiveram que se ver os pensadores dos anos posteriores. O texto fundador aqui é o premonitório Psicologia das Massas e Análise do Eu, de Sigmund Freud, que continha todos os elementos para a compreensão do fascismo que iria explodir, e mobiliza as emoções e o inconsciente como ferramentas analíticas capazes de explicar o que a razão não podia.

O princípio básico do utilitarismo, cada um age guiando-se pela busca da máxima felicidade com o mínimo sofrimento, revela-se completamente inapropriado. Não apenas os sujeitos abriam mão da sua própria felicidade, como inclusive aceitavam as dores do sofrimento com ardor. A aproximação que filósofos como Achille Mbembe e Vladimir Safatle fazem hoje entre fascismo e suicídio já estava colocada para Adorno, Horkheimer, Reich, Marcuse, Deleuze, Guattari, Foucault, Fromm, Debord, entre outros.

O problema tornou-se, então, o retorno da pergunta de La Boètie: por que desejam e obedecem ordens que vão contra seus próprios interesses?

Aqui podemos dizer que temos uma grande separação na análise do fascismo. Em geral, autores que navegam em matrizes mais liberais têm ferramentas institucionalistas para julgar se estamos diante de um fenômeno fascista, ou não. Mesmo abordagens um pouco mais abertas, como algumas que fizeram sucesso nos últimos anos, apelam a uma ideia de cultura política ou regras não-escritas, inspiradas na ideia de fair play, para pensar o fascismo. São as análises predominantes em áreas de forte influência anglo-saxônica, como a filosofia política liberal, a ciência política e a economia. Nesse caso, o fascismo será um fenômeno excepcional, uma patologia política, identificada com formas autoritárias e totalitárias que extravasam a democracia liberal. A nomenclatura iliberal, adotada por alguns teóricos brasileiros e inclusive saudada por Victor Orban, autocrata da Hungria recentemente visitado e aplaudido por Bolsonaro, é uma tentativa de atualizar o problema sem cair no dilema de identificar as manifestações com o fascismo italiano e suas versões históricas (no Brasil, o integralismo).

Para a outra corrente, no entanto, identificada com o estruturalismo e o pós-estruturalismo na França e a Escola de Frankfurt na Alemanha, o fascismo deixa de ser um fenômeno de Estado e torna-se uma forma de produção de subjetividade. Ou seja, temos um deslocamento da política institucional para o que provisoriamente poderíamos chamar, nesse belo oximoro que felizmente vingou na conservadora academia, "Psicologia Social". Como já disse, o texto fundador dessa área transdisciplinar — verdadeiramente transdisciplinar — é a Psicologia das Massas, de Freud. Nesse caso, podemos dizer aqui que o nazifascismo deixa de ser algo que diz respeito a um período excepcional de regime político, uma ditadura, e passa a ser algo que atravessa os indivíduos no plano do desejo.

Aqui a diferença entre França e Alemanha aparece: no caso alemão, esse desejo nubla a consciência racional; no francês, não há consciência a reivindicar — apenas desejo contra desejo.

É a utilização do fascismo como sinônimo dessa subjetividade suscetível à perseguição da diferença que fez com que a palavra se alastrasse vertiginosamente no nosso cotidiano. Se é bom ou ruim, não entro no mérito. Mas é preciso dizer que, quando estamos falando de fascismo, por vezes estamos falando de coisas diferentes.

Boa parte dos liberais caricatos que aprenderam política no Youtube fazem a associação entre fascismo e Estado, obviamente com a finalidade de dizer que o socialismo também seria um fenômeno fascista, já que se contraporia às liberdades individuais tal como seu antagonista. O liberalismo, no centro, seria a única via que garantiria a democracia e se identificaria com ela. Qualquer outra forma seria automaticamente autoritária e incompatível com os direitos humanos.

É óbvio que o argumento é fraquíssimo, pífio, tal como comparar um cachorro com um elefante porque ambos têm duas orelhas. Ora, eles também são mamíferos — e nem por isso são iguais. O fascismo envolve o desejo de aniquilação da diferença marginal, hoje em geral identificada com o que chamaríamos de "diferença cultural", e é movido pelo ressentimento destrutivo. O socialismo, por outro lado, sempre foi um projeto de emancipação coletiva que se dá garantindo a liberdade integral, ou seja, garantindo a todos os meios materiais para que possam livremente decidir os rumos das suas vidas. O Estado é sempre um instrumento contingente para a realização deste projeto. (Dito isso, aqui, por alguém que jamais se definiu como socialista ou comunista.)

São ideias completamente diferentes.

Mesmo que alguém dissesse: "ah, mas na prática fascismo e socialismo funcionam iguais", outro poderia responder que as próprias democracias liberais também, na prática, podem funcionar como os fascismos. Ou alguém discordaria que a situação de um negro sob a segregação racial no Mississipi era distinta de uma condição de vida sob o fascismo?

Se é assim, então o conceito liberal de fascismo pode ser útil para classificar sistemas políticos, mas nem tanto para compreender o fenômeno da produção de subjetividade que legitima, de baixo para cima, o fascismo. Porque convenhamos que as pessoas que apoiaram o nazifascismo não foram alienígenas que pousaram na Terra e foram embora em 1945. Que tal ler Passo de caranguejo, de Günther Grass, para repensar isso?

Quer dizer, qualquer pessoa — simples, amável, sofisticada, irascível, revoltada, etc. — pode, em algum momento, ter apoiado o fascismo. Nesse caso, temos uma escolha: vamos reservar a designação de fascista para seus ideólogos e adeptos fervorosos ou classificar todos aqueles que colaboraram como fascistas?

A minha escolha é pela segunda. Não vejo diferença entre quem ativamente milita por uma causa e quem silenciosamente adere a ela. Sem dúvida, muita gente não atuou contra o fascismo simplesmente porque tinha medo, e tinha boas razões para tê-lo. Essas pessoas não eram fascistas. Mas aquelas que sucumbiram diante do discurso do fascismo, mesmo timidamente, em qualquer grau, colaboraram para que o fascismo ocorresse. E, portanto, eram fascistas.

Mas o que significa aqui o verbo "eram"? Vejam como é impossível fazer psicologia social sem filosofia. Digamos que, ao menos para os filósofos que mencionei (aos quais se poderia acrescentar nomes atuais como Butler, Agamben, Zizek, A. Davis), "ser" não significa uma propriedade inata ou essencial. É uma condição contingente estabelecida no jogo de forças sociais. Quer dizer: pode ser que sua tia seja fascista mesmo, mas isso não quer dizer que não seja possível ela sair dessa. Não por acaso quando esta filosofia estabelece questões ontológicas ela sempre caminha em direção ao relativo e/ou contingente, marcando que ninguém está condenado a ser nada. Na verdade, o próprio essencialismo é identificado com o fascismo como um dos seus traços típicos.

Agora, vamos falar do Brasil.

Passamos por uma pandemia com 625 mil mortos. Nosso Presidente é reconhecido internacionalmente como um dos maiores negacionistas, impondo ao Ministério da Saúde uma gestão de denegação e minimização constante da pandemia baseada na aliança intercontinental feita com a extrema direita (fascista!) mundial, atravessando grupos supremacistas nos EUA, neonazistas na Alemanha, entre outros. Como sabemos, Olavo de Carvalho era o alicerce simbólico desta aliança.

Além disso, o país passa por uma crise econômica forte, com alta taxa de desemprego e inflação, com inúmeras pessoas caindo para a classe econômica inferior à que tinha ascendido durante o período lulista. O "sonho da nova classe média", como Tatiana Roque e eu salientamos em texto recente, virou pesadelo.

O governo é totalmente descoordenado. Não consegue mostrar obras, política educacional, política de saúde, melhorias econômicas, sequer a sua principal bandeira: a política de segurança. Ao contrário. O que se tem notícia é de picanha japonesa e cerveja para militares e grana para o Centrão, de quem se dizia que "se gritar pega ladrão, não sobra um".

Nesse cenário totalmente negativo, o piso de Bolsonaro nunca baixou de 20%. É difícil acreditar que irá baixar agora. Sendo assim, que outra resposta temos à pergunta "por que ainda apoiam?" que não "porque acreditam nas ideias de Bolsonaro"?

Sem dúvida, entre os 58 milhões que votaram em Bolsonaro muita gente foi enganada. Gente que não o conhecia direito, que acreditava no fim da corrupção, em um país mais seguro, nos efeitos positivos da desregulação do mercado e do empreendedorismo individual, na guinada que nos tiraria do atoleiro que a Lava Jato expôs.

Nem todos são fascistas.

Mas os 20% que ficaram com Bolsonaro sob todas as circunstâncias que vivemos ainda não podem ser chamadas de fascistas? O que falta para isso? Serem pessoas más?

Atenção: não há fenômeno de massa que só envolva pessoas más.

Não pense o fascismo como uma quadrilhas de criminosos (nas quais, inclusive, nem sempre se trata apenas de pessoas más, como o cinema, a literatura e a televisão mostram). O fascismo é um fenômeno político que atravessa a sociedade civil por meio de uma rede massiva de apoio social e que, necessariamente, deve ser composta de pessoas comuns.

Por isso, aliás, a obsessão de Marcuse, Reich, Adorno, Deleuze com o "homem comum". É lá que a gente encontra o fascismo, e não nos poucos, às vezes pouquíssimos, adeptos altamente informados.

Afirmar que "apenas são pessoas alienadas" não quer dizer absolutamente nada: a alienação é apenas mais uma explicação para o fenômeno da adesão da "pessoa comum" ao fascismo. Mas uma vez, isso não quer dizer que: pessoa comum = fascismo, e sim que qualquer um, numa configuração específica, pode estar trabalhando para o fascismo. E que trabalhar para é o "ser" para a política. Como estamos no universo público, as intenções são irrelevantes. Cada um é o que faz.

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Moysés Pinto Neto

Blogueiro, escreve normalmente sobre política, música, futebol, filosofia e outros temas próximos. Migramos do blog 'O ingovernável' para essas bandas.