BOLSONARISMO COMO LULISMO INVERTIDO

Moysés Pinto Neto
5 min readDec 3, 2019

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Uma das hipóteses que mais tem sido discutida na esfera pública diz respeito à entrada da polarização como figura central na política brasileira. Em uma sociedade acostumada a sufocar seus antagonismos ou resolvê-los com medidas autoritárias, a política de alta intensidade que permeia o mundo inteiro tem causado mal-estar. No entanto, não pretendo entrar nesse debate. Proponho aqui um exercício completamente diferente que não passa pela hipótese da polarização (e dos populismos).

Tomo como esteio uma leitura minoritária, mas importante, do lulismo. Se à direita as interpretações enveredam para a tese paranóica do comunismo ou a tese liberal do patrimonialismo, à esquerda em geral elas passam pelo signo do lulismo como estratégia de conciliação de classes. Assim, mesmo para seus defensores, como André Singer, por exemplo, o lulismo seria um reformismo fraco que envolveria um pacto conservador no qual as classes dominantes consentiriam com uma melhoria da qualidade de vida para a população pobre desde que seus lucros e bens não fossem tocados. Para Singer, os pobres topariam o pacto conservador porque acostumados a um cenário com muita imprevisibilidade no qual são os principais prejudicados. Assim, teriam se tornado alérgicos a soluções de ruptura. Seria fácil mostrar como quase todas as leituras à esquerda enveredam por um caminho semelhante colocando a conciliação como chave principal para a interpretação do lulismo. A tese que adoto não segue essa linha.

Um conjunto de intelectuais e ativistas que chamarei aqui de “pensamento nômade” — em homenagem ao seu principal centro de irradiação: a Uninômade — faz uma leitura distinta. Intelectuais como Giuseppe Cocco, Tatiana Roque, Bruno Cava, Alexandre Mendes, Barbara Szaniecki e Ivana Bentes, por exemplo, viam o lulismo não sob esse prisma dialético (de uma conciliação entre classes antagônicas), mas entendendo-o fraturado em duas linhas. A linha majoritária envolveria o imaginário progressista: o sonho do desenvolvimento industrial, a grande classe média, o Estado de bem-estar (ou até o socialismo) brasileiro, o crescimento chinês. Porém eles igualmente postulavam uma segunda linha, a chamada linha minoritária ou “lulismo selvagem”: ela consistiria na liberação das forças produtivas sem uma estratégia determinada, deixando apenas que elas emergissem de modo caótico e imprevisível. Os nômades colocariam as ações afirmativas, as demarcações indígenas, os pontos de cultura e o próprio bolsa-família (que era rejeitado pela esquerda como política neoliberal) como o tipo de política que libera efeitos para muito além do que o imaginário progressista pode calcular.

Assim, para essa interpretação o mérito do lulismo não foi ter executado um plano — ou, em sentido inverso, o demérito não foi não o ter executado. Na verdade, o mérito foi deixar emergir forças produtivas que não cabiam nos quadrantes do progressismo e permitir que a sociedade desencadeasse experimentos que vão dos cursinhos pré-vestibular populares até o copyleft. É nesse sentido que uma vez Cocco declarou algo como o “Bolsa-família é a melhor política de cultura” ou o que Roque denomina política de “baixo para cima” (inclusive nas medidas microeconômicas) em contraponto ao segundo momento — mais associado a Dilma — no qual preponderou a política de “cima para baixo” (PAC, Copa do Mundo etc.).

Portanto, podemos entender a fórmula do lulismo selvagem como a seguinte: é preciso liberar as forças produtivas simplesmente retirando os obstáculos objetivos (materiais ou normativos) à produção criativa, deixando que elas próprias materializem, de baixo para cima, um novo cenário político, econômico e social.

Quando afirmo que o bolsonarismo é o inverso do lulismo, é porque há também várias linhas no bolsonarismo e uma delas é o bolsonarismo selvagem. Se o lulismo consistia em liberar as forças políticas minoritárias (negros, índios, mulheres, lgbts, hackers, rappers etc.), eliminando os obstáculos objetivos para um devir-pobre, o bolsonarismo também tem seu lado selvagem, só que as forças que ele libera são as forças destrutivas.

Não sabemos exatamente quais são os planos de Bolsonaro para agricultura, indústria, educação ou cultura. Nem mesmo a segurança pública, área em que tem plena aderência social, está clara. Bolsonaro apenas deixa que as forças destrutivas moldem o cenário. Ele não tem um plano. Inspirado no “libertarianismo”, Bolsonaro abriu mão de qualquer projeto planificador que indicaria rumos para o país em relação a qualquer dos tópicos. Seu único ponto é permitir que as forças sociais trabalhem livremente, independente de regulações, e possam produzir efeitos incalculáveis.

A diferença com o lulismo selvagem, contudo, é que as forças liberadas por Bolsonaro são seu inverso: trata-se das forças repressivas e destrutivas da sociedade livres para exercer a violência e executar suas vontades sem encontrar qualquer freio civilizatório.

É muito fácil arrolar exemplos disso. Fiquemos em apenas três.

As forças policiais não têm mais qualquer orientação e não ser: vocês estão liberados para agir como quiserem a partir de agora. A “retaguarda jurídica da atividade policial”, acolhida por Moro como excludente de ilicitude, é a tese mais esdrúxula que poderia acontecer em um Estado de Direito. Na verdade, é sua negação. Uma sociedade em que o direito precisa amparar a polícia moldando-se à sua ação é justamente um Estado policial. No Estado de direito, a polícia é limitada pelo direito. No Estado policial, é o direito que se transforma para legitimar a ação dos órgãos repressivos.

Na área rural, sabemos que Bolsonaro têm estimulado que extrativistas tenham liberdade total para executar o que quiserem, destruindo todas as regulações existentes de caráter ambiental ou mesmo a proteção de direitos indígenas e quilombolas. Mineração, monoculturas, pecuária — tudo liberado. Ele não tem planos, apenas libera as forças destrutivas para atuar conforme seu bel-prazer.

Por fim, podemos citar o trânsito. Atacando a “indústria da multa” e desregulando boa parte dos avanços civilizatórios que caem sobre o ainda caótico tráfego brasileiro, Bolsonaro apenas dá sinal verde para que cada um aja conforme sua própria vontade, tornando irrelevante qualquer noção de coletividade. Uma boa parte do que é interpretado como "politicamente correto" é a imposição de limites sociais à vontade de um sujeito que não reconhece limites externos ao seu desejo. O sujeito bolsonarista é esse sujeito que está sempre enredado na aplicação de punição para os outros enquanto reivindica imunidade para si.

Se o lulismo selvagem era a liberação das forças produtivas vampirizadas pelo capitalismo ou encurraladas pelo racismo brasileiro, o bolsonarismo selvagem é a liberação das forças destrutivas para realizar projetos que as precárias regulações ainda continham. O bolsonarismo não é um projeto totalitário de ordem absoluta, nem uma distopia da homogeneidade, mas um ponto de encontro entre o jeitinho brasileiro e o autoritarismo, ou seja, o jeitinho dos poderosos.

A fórmula do bolsonarismo selvagem é, portanto: é preciso liberar as forças destrutivas simplesmente retirando os obstáculos objetivos (materiais ou normativos) à violência opressiva, deixando que elas próprias materializem, de baixo para cima, um novo cenário político, econômico e social.

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Moysés Pinto Neto

Blogueiro, escreve normalmente sobre política, música, futebol, filosofia e outros temas próximos. Migramos do blog 'O ingovernável' para essas bandas.