Dekmantel 2017: sonhamos com melodias elétricas?

Mateus Ribeirete
9 min readMar 1, 2017

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Foto minha

O RelevO participou do Dekmantel 2017 — e ainda busca entender como. Representando o jornal literário mais consciente de sua nulidade em todo o hemisfério, frequentei os dois dias do festival holandês no Jockey Club, em São Paulo, e assim ofereço um relato pouco técnico sobre este inesquecível Rolêvo. O Dekmantel São Paulo foi a primeira edição do evento fora do país de Johan Cruyff, e a ela dedicamos as páginas centrais da edição de março. A ele também. Obrigado, Cruyff.

O Dekmantel, de significado “capa” em holandês (e, inacreditavelmente, “otário da astrologia” em amanaié), não carrega a fama de mais um festival de música, ou de música eletrônica — a credibilidade entre os acionistas do que é legal de verdade o circunda[1]. As expectativas nasceram altas quando a edição paulistana foi confirmada, e tão logo ratos de SoundCloud, fritos e demais entusiastas de drum machines não mediram esforços para comparecer em uma festa de reputação notável. Partindo da eficiência dos Países Baixos, onde a extensão da electronica abrange de idosos a torcidas organizadas, o festival vem acumulando notoriedade graças à variação de gêneros contemplados dentro do termo guarda-chuva em questão, isto é, música eletrônica.

Dessa forma, para eles não foi necessário investir tanto em divulgação. Na verdade, não tenho a menor ideia se essa informação procede — é possível que tenham investido calhamaços de euros em divulgação. Apenas presumo que o pessoal antenado não titubeou em frequentar o Dekmantel, ou ao menos visou aos primeiros ingressos — promocionais — para os dois dias, esgotados em cerca de 7 nanossegundos. O alto custo das entradas expandiu as expectativas de eventuais espectadores — exigiam-se até R$ 400 para dois dias, considerando que qualquer um poderia comprar meia-entrada, esse benefício tão útil quanto uma goteira. As festas noturnas, uma por dia, ambas na Fabriketa, custavam R$90.

Não fui capaz de dormir bem na sexta-feira e cheguei em São Paulo às 11 horas de sábado, ciente de que deveria descansar para me manter vivo até as seis da manhã, quando se finalizaria a primeira festa. Por sua vez, os dois dias no Jockey tiveram o encerramento antecipado de 23h para 22h30 (na véspera!), graças a temores em relação ao som e demais cagaços burocráticos. Com outros dois amigos, me hospedei em um apartamento no Edifício Copan por meio do AirBNB. O local, muito bem decorado, pertence a um estudante de arquitetura bastante simpático, cuja postura descolex não poderia ser mais caricata (vegano, vinil do Criolo, pó de café do Starbucks et cetera[2]). Almoçamos como se houvesse amanhã, e como se dependêssemos dele — afinal, precisaríamos seguir firmes por dois dias. Nos enchemos de comida em um desses estabelecimentos de São Paulo que servem pratos feitos, lanches e álcool a qualquer momento. Nos limitamos aos pratos feitos. Eram quase 14h, e o festival já havia começado. Passamos no apartamento e nos direcionamos ao Jockey em seguida.

Enquanto nos movíamos pelo metrô, veio a chuva. Um porralhal de chuva. Na saída da estação Butantã, humanoides lamentavam a dificuldade logística em seguir com a ordem da vida quando a água celestial não o permite, ao passo que carros se acumulavam em frente à nossa saída, por sobre a calçada completamente alagada. Os motoristas também lamentavam. Desistindo de ir a pé e ensopados da cintura aos pés, encontramos um táxi. A chuva ainda assustava quando chegamos ao Jockey — na entrada, porém, a organização distribuía capas para o público. Não conhecia o local e caminhei pelo estabelecimento para me familiarizar, carregando comigo a empolgação de quem dá seus primeiros passos em um evento promissor (e o alívio de retirar a credencial antes que a organização percebesse que o RelevO é um esquema de pirâmide comandado por Daniel Zanella). Enfim, eram quatro palcos, vários pontos de venda, diversos banheiros e uma praça de alimentação considerável. A distância entre eles, todos os eles, nunca se tornava inconveniente.

Algum tempo depois da ambientação, quando me dei conta, já estávamos todos no palco principal acompanhando a apresentação de Nina Kraviz, russa (e dentista de formação) que havia passado por Curitiba no dia anterior. Por lógica, é bem provável que ela ainda conduzisse as caixas de som no momento em que eu acordava para ir ao aeroporto. Seu som, via de regra pesado, ainda não nos era assimilado por completo. Já eram 18h e alguma coisa, mas estávamos molhados (hehehehe) e um tanto estupefatos. Nos movemos ao palco UFO, estreito e mais escuro — semelhante ao setor de um prédio onde se localizam os botijões de gás. Aurora Halal, que eu, sujeito pouco instruído, desconhecia, torava o pau. Entre a potência e a existência, entre a essência e a descida, entre o desejo e o espasmo, ali, meu amigo, a vida bateu. Eu entrei.

Para sentir que a vida vale a pena quando diante de techno em um volume muito alto, pois, é necessário imergir — o que certamente vale para qualquer show, leitura ou rodada de Banco Imobiliário, mas que a ocasião faça a especificação. Em uma ocasião dessas, portanto, ou você mergulha e permite a condução xamânica por parte do DJ[3], ou escuta com barreiras um punhado de batidas e melodias que não te levam a lugar algum. E como em qualquer show, leitura ou rodada de Banco Imobiliário, a estratégia de apreciação estética parte de cada indivíduo: você pode se encher de substâncias diversas, ou não usar nada, ou ter se enchido de substâncias diversas ao longo da vida e desbravar o caminho por conta própria. A estética, enfim, está lá para ser encontrada, cada qual com sua rota. Fato é que tantas pessoas não se encantam com o modus operandi eletrônico por acaso; como não é por acaso que sentem tanto prazer em fritar. Adiciona-se a vantagem do descompromisso, dado que a ignorância não desestimula o encarar da experiência. Isto é, você não precisa estar atualizado com as músicas[4] selecionadas — a resposta espontânea virá do corpo, e isso basta.

Não me estenderia quanto ao valor da dança, do transe e a demais ligações entre esses campos — certamente há um punhado de sociólogos com observações fundamentadas quanto a isso, alguns deles até legíveis. Acontece que, do guru mais experiente ao universitário que acabou de descobrir a maconha, encontros místicos acontecem de diversas formas[5], e o cenário proporcionado por festas de música eletrônica tende a impulsionar esse tipo de experiência. O escuro e os efeitos visuais estão lá, afinal, para te tirar de lá. E no escuro do estreito Palco UFO, eu começava a repensar aquela existência.

Permanecemos diante do som de Halal e retornamos para Nina Kraviz, quando o universo passou a fazer mais sentido. No encerramento de seu set, estávamos convencidos de que o festival seria de fato extraordinário. E aí entrou Jeff Mills, uma aberração celestial. Nas duas horas em que Mills[6] esteve corporificado — ou quase isso, porque era quase impossível enxergá-lo no palco –, sua música foi o princípio pelo qual tudo viria a ser. Eu sequer conseguia dançar, e me limitava a passos anestesiados que cultuavam aquele momento[7]. Ciente de termos presenciado algo extraordinário, nos dirigimos à Fabriketa, no Brás, para o restante da noite. A fábrica abandonada dispunha de mais três palcos — todos muito envolventes — e outros tantos banheiros e bares, que dificultavam a missão de reclamar de alguma coisa. Aproveitei Veronica Vasicka parcialmente, enquanto tirava um pouco o pé do acelerador. Quem fez valer a noite foi o ucraniano Vakula, que nos tinha na mão enquanto transitava entre universos musicais com a naturalidade de quem caminha no parque. Ben Klock, a atração principal, satisfez aqueles que aguentaram até seis da manhã. Eu passei a última hora já agasalhado, no banco de reservas. Voltamos de metrô e dormimos devastados de cansaço.

Acordamos e nos enrolamos por horas, até que todos estivessem devidamente reabilitados. A cabeça doía, a barriga doía e as pernas sentiam ciúmes pelo cansaço não lembrado. O cenário se tornou mais otimista após almoçar um omelete gigante no Estadão. Conversávamos pouco. Chegamos mais tarde do que gostaríamos, mas ainda em plena luz do dia. Poucos passos lá dentro desativaram a fadiga, e tão logo estávamos alegres feito cães novamente. Não foi necessário muito esforço.

Via de regra, um festival funciona quando não quebra o pacto de hiper-realidade com seu público. Da Cerimônia do Fogo Novo asteca à Festa da Colheita de qualquer lugar com uma festa da colheita (no caso, basicamente qualquer lugar), importa se sentir imerso em um contexto real — mais real que o real, inclusive — embora ausente de certos pontos comuns ao que consideramos real, como compromissos no dentista, departamentos de RH e cartórios. Nesse aspecto, não encontrar problemas logísticos interfere diretamente na imersão individual, e a produção sempre carrega a confusa função de se fingir inexistente. Filas para consumo e banheiros inutilizáveis, por exemplo, costumam levantar problemas capazes de cortar a experiência hiper-real, dado que meia hora de espera por uma cerveja não é divertido ou memorável, mas tão somente maçante e, portanto, real. Ao pagar por um ingresso, ninguém quer lembrar da fatura do cartão – ao menos não durante o evento, seja ele qual for –, enquanto momentos reais trazem consigo uma matemática inerente de “e eu paguei caro por isso”. No que tange à hiper-realidade, o Dekmantel beirou o impecável. Você não gastaria tempo para comprar água ou urinar. Os banheiros químicos tinham álcool em gel, higienizador sanitário e espelho. Parecem meros detalhes, mas são justamente os detalhes que fazem o Show de Truman rodar.

Essas vantagens, enfim, permitem que o público consiga se concentrar na música e cumprir seu objetivo de nela entrar. Às vezes – muitas vezes – torna-se virtualmente impossível desfrutar a apresentação de um DJ em uma balada graças ao movimento das pessoas, as quais transitam sem parar, ou à falta de espaço, ou às conversas ininterruptas. Essa produção invisível permitiu que tudo fluísse naturalmente: nenhuma ponderação logística cutucava o público enquanto a experiência do festival lhe era presente. A existência novamente se fez extraordinária no fim da tarde, quando Fatima Yamaha iniciou o processo de sofrimento por antecipação. O holandês — que não é um Yamaha, muito menos uma Fátima, mas um entre vários pseudônimos de Bas Bron — tirou o máximo de seu live set, acompanhando a bela transição de cores que se punha no céu. Ben UFO e Joy Orbison já conduziam uma pancadaria no palco Selectors quando John Talabot apareceu. A essa altura, destacavam-se a lua e os trovões longínquos, e Talabot surpreendeu aqueles (desavisados, como eu) que esperavam uma atmosfera mais tranquila — suas duas horas foram intensas, exponenciando o sofrimento por antecipação que Nicolas Jaar viria a estourar.

Pois o show de Jaar foi a despedida ideal para uma sucessão de eventos extraordinários. Os trovões, agora acompanhados pelas luzes dos prédios, ganhavam cada vez mais atenção em meio à escuridão definitiva. Aviões sobrevoavam a região, e nos perguntávamos o que seria visível de dentro deles. O jovem americano de influências latinas[8] expunha o melhor de uma discografia já respeitável. Nós lamentávamos a proximidade do fim. Também nos indagávamos sobre o que acontecia, o que havia acontecido e o que viria a acontecer. Entre a potência e a existência, entre a essência e a descendência, tomba a sombra: Nicolas Jaar cortou o som, ou foi cortado, e assim o Dekmantel acabou — não com uma explosão, mas com um suspiro. Semanas se passaram, e ainda tentamos viver nele.

[1] Como apontou um texto no Thump, dois anos atrás: “É como Fabric mais Glastonbury multiplicados pelo conceito cristão de céu, ao quadrado. Na verdade, se Deus fosse um DJ, eles não o colocariam no Dekmantel, porque seria óbvio demais — eles o trocariam por Mano Le Tough, e pagariam muito mais a Mano”.

[2] No banheiro, não havia espelho, mas um quadro negro no qual se lia, em inglês, “você está bonito hoje. você realmente precisa de um espelho?”. Preciso, porra.

[3] Bowie — DJ: “I am a D.J., I am what I play / I got believers / Believing me”.

[4] As tracks, argh.

[5] Vide Quantum Physics, compilado organizado Ken Wilber, com textos de Einstein, Max Planck, Heisenberg e Schrödinger.

[6] Perguntado pela House Mag sobre qual é seu instrumento favorito, Mills respondeu “livros”.

[7] “Parece que estou tentando lhes relatar um sonho… esforço em vão, porque nenhum relato de sonho pode expressar a sensação do sonho.”

[8] O pai dele é o arquiteto e artista chileno Alfredo Jaar.

No Jornal RelevO [março/2017]

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Mateus Ribeirete

edito o Jornal RelevO (jornalrelevo.com) e aqui estão meus textos esparsos. a maioria é antiga e/ou foi publicada em outros veículos.