DGTL 2018: luzes cintilam no concreto da fábrica

Mateus Ribeirete
5 min readMay 31, 2018

--

Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas. Digo, era uma noite morna e luminosa de maio, e os relógios davam nove horas. Eu havia acabado de chegar à Fábrica 619 para o DGTL, festival holandês de música eletrônica em sua segunda encarnação no Brasil. Em Jaguaré, São Paulo, a fábrica de livros desativada emanava um inegável capricho para fornecer — e suportar — mais de 12 horas de tunt-tunt, bleep blop e onomatopeias menos aptas a transcrições.

A atmosfera garantia um espetáculo próprio: se você tivesse o empenho de ir até a festa, comprar umas cervejas e ficar sentado ao longo de toda a noite, acredito que não se arrependeria. Os três palcos, sem exceção, dispunham de uma iluminação fantástica. Essa iluminação foi responsável, por exemplo, por transformar completamente o palco externo Frequency, cuja estrutura física não equivalia à dos outros dois.

Além deles, duas instalações compunham o cenário. Uma delas consistia em um tablado da Heineken com diversos postes iluminados que reagiam conforme a intensidade do som. As várias fotos ali compostas — para deleite da ubíqua cerveja — eram menos dinâmicas e certamente haviam sido tão programadas quanto os efeitos luminescente. Outra, um espetacular conjunto de blocos em estrutura semipiramidal, assemelhava-se a um altar para robôs praticarem religião. De perto deles se ouviam ruídos que pouco a pouco se renovavam. Tudo isso, enfim, exigiu mérito técnico e uma grande parcela de bom gosto por parte de quem se responsabilizou pelo trabalho.

Em relação à edição do ano passado, em Barueri, havia mais espaço em todas as esferas — e os banheiros, espalhados em dois lados, não se concentravam em apenas uma área interna, o que muito assistiu o olfato.

Quanto ao consumo, a água custava 10. Se você guardasse a garrafa, porém, a água seguinte custava 5, e assim por diante. O copo também custava 5, preço que dobrava se você quisesse anexá-lo a um cordão resistente para facilitar o carregamento e ao mesmo tempo dificultar a tarefa de perdê-lo. Uma boa ideia para quem o guardaria por 8, 10, 12 horas. Havia alguns estandes de comida, mas não me atentei nem às opções e nem aos preços. A cerveja custava 10; o energético, 15.

Cheguei durante a apresentação de Carrot Green, mas ainda tergiversava naquele mapeamento dos três palcos, dos balcões de bebida, dos banheiros e dos amigos a serem encontrados. E uma vez encontrados, com eles parei para ver Red Axes & Abrão no palco Modular.

Red Axes é uma dupla de Israel, e Abrão é um Abrão do Brasil. Neto de um israelense, há muito ele mora fora do país, mas por aqui liderou a banda Kafka e outros projetos desde a década de 1980. Juntos, Red Axes e Abrão protagonizaram um show cuja verve expõe o percurso (pós) punk de ambos. Os instrumentos, vocais e letras em português aceleraram o repertório em relação às produções, via de regra mais pacatas. Infelizmente me movi quando mais gostava do show: era prudente guardar lugar para Len Faki no palco Generator.

Alemão de ascendência (visivelmente) turca, Len Faki não perdeu tempo. Nenhum tempo. À 0h30, seu som versátil ganhava o público — ansiosamente espremido — variando entre minimal e house finos, sem tirar o pé do acelerador. Quem tirou o pé fui eu, refém de uma bexiga trabalhosa. Antes de seu set terminar, a constatação do maior defeito do festival: os banheiros estavam pouco praticáveis e, praticamente sem manutenção, viam-se desprovidos de papel higiênico. Das poucas torneiras também não saía mais água. No retorno ao palco, uma tentação não realizada de parar na dupla Adriatique.

Enquanto Honey Dijon — que horas antes havia tocado em Curitiba — abarrotava o Frequency, DVS1 sucedia Len Faki no Generator. Eram 2h30 e the devious one iniciava o apogeu da minha noite. O americano de pais russos — seu nome é Zak Khutoretsky — forneceu a famosa aula, emulando um filme de ficção científica cuja trilha sonora define a atmosfera em pequenos elementos sintéticos, porém analógicos (Planeta Proibido, Colossus, The Thing). Em dado momento, um performer com uma fantasia luzente cruzou lentamente o palco enquanto dançava, ou dançou lentamente enquanto cruzava o palco, e tudo aquilo fez muito sentido. Quando as duas horas de set se encerraram, meu corpo pesava a ponto de meus olhos piscarem morosamente.

Abdicando de Dax J, busquei um energético redentor e fui até Rødhåd e Daniel Avery. Este último parece Domhnall Gleeson numa versão analista de sistemas, enquanto Rødhåd é igual a qualquer cara que insiste em conversar sobre cervejas artesanais. Ambos me agradam muito e ambos claramente sabiam o que estavam fazendo, mas me hasteou uma vontade maior de vê-los separadamente. Quando dois DJs competentes se juntam, há boas chances de o cérebro receptor ser esmagado. No entanto, isso ocorre em detrimento de uma construção mais sólida: naquele caso, a tendência era, como num jogo de vôlei, um levantar para o outro cortar. Intenso, divertido; não tão marcante quanto, imagino eu, cada um deles com seu tempo e espaço.

Às 6h30, Dixon começava a amaciar — o que muito cabia àquele contexto, pois Ben Klock paralelamente oferecia marretadas a quem tivesse a disposição necessária. Melódico, o deep deste alemão com aspecto de boneco de cera possibilitou uma transição perfeita da noite para o dia. Seleção e mixagem foram perfeitos para qualquer um que já não estivesse a mil por hora. Àquela altura, o tablado da Heineken havia se transformado em um cenotáfio. Na meia hora derradeira, por fim, abracei a luz do dia no palco externo, onde Job Jobse — agora com espaço — alegremente soltava seu som oitentista, palatável e redutor da melancolia que sempre se aproxima quando uma festa longa e consistentemente exitosa cessa as caixas de som.

Na literatura, todas as distopias terminam ao ar livre. O cenário frio e industrial da ficção científica logo era sobrescrito por uma manhã aquecida cujos coadjuvantes não mais resistiam à luz do dia. Vi a fábrica de livros abandonada pela última vez. De volta ao hotel próximo à Praça da República, cercado de lixo, sucata e figuras cambaleantes, chegamos a tempo de tomar café da manhã — ovos mexidos, cereal, iogurte e suco de laranja. Um banho quente me concedeu letargia. Dormi com protetor bucal.

No Jornal RelevO [junho/2018]

--

--

Mateus Ribeirete

edito o Jornal RelevO (jornalrelevo.com) e aqui estão meus textos esparsos. a maioria é antiga e/ou foi publicada em outros veículos.