Fidelidade artística é pura bobagem

Mateus Ribeirete
3 min readAug 10, 2015

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Na lista de comentários que não incomodam nem acrescentam absolutamente nada, “o livro é sempre melhor que o filme” briga pelo topo.

Manter os mesmos parâmetros para avaliar obras de mídias diferentes é como comparar um carro com um abacate. Você até pode chegar a alguma conclusão sobre superioridade, e nem por isso negará que se trata de classes diferentes. Há, claro, romances superiores às suas respectivas adaptações cinematográficas — como o oposto também ocorre –, mas nosso julgamento, com suas razões bastante coerentes, sofre para se desapegar da ideia de proximidade. Essa ideia de proximidade, por sua vez, arrisca-se a evoluir para a perigosa noção de “fidelidade”.

Fidelidade é o que temos, ou fingimos ter, com nossos pares românticos. É o que oferecemos ao time do coração. É o que reservamos ao bar mais querido. A arte não tem fidelidade; não lhe deve fidelidade. A arte não lhe deve nada. E a adaptação, leitor fiel, não é a exceção da criação artística, e sim o padrão dela. Quem o afirma é a crítica literária Linda Hutcheon. E se a teórica canadense chegou a essa conclusão após escrever “Uma teoria da adaptação”, é mininamente justo levá-la em conta.

Se você supõe que “Hamlet” seja uma obra inteiramente original, procriada em abiogênese na cabeça de Shakespeare, engana-se drasticamente. Partindo de lendas escandinavas, ou do Amleth de Saxo Grammaticus, ou da inacessível peça “Ur-Hamlet”, ele adaptou. E criou. A separação entre essas duas atividades, se existe, é bem mais tênue do que costumamos julgar. (Em 1998, quando perguntado sobre quais virtudes são mais supervalorizadas, David Bowie respondeu “simpatia e originalidade”).

Dessa forma, vale a pena ser mais receptivo quanto às mudanças que seu livro favorito sofre quando levado a uma tela. Personagens somem, cenários mudam, há outro foco — ajuda aceitar que, acima de tudo, trata-se de obras diferentes, ainda que muitas vezes com o mesmo título. Nada no mundo fará jus à sua leitura, processo cognitivo tão íntimo quanto fantástico. Não adianta partir desse princípio.

Uma saída é adotar a terminologia (e a cabeça aberta) de Robert Stam, outro grande nome da literatura comparada: pensemos nas adaptações como próximas ou distantes de seus textos-fonte, e não “fieis”. “Watchmen”, o filme, é quase uma tradução juramentada dos quadrinhos — portanto, próxima. Já “Apocalypse Now” se distancia totalmente de “Coração das Trevas”, o ponto de partida. Todas as adaptações de Kubrick se afastam dos romances que lhe servem de início, e isso incomodou muita gente — que bom! Stam postula: lembremos do que é acrescentado em uma adaptação, não só do que é removido.

Quando Sherlock Holmes foi apresentado ao mundo, no romance “Um Estudo em Vermelho”, o detetive disse a um policial que “não há nada novo sob o Sol. Tudo já foi feito antes”. Não havia maneira mais elegante de demonstrar isso: a frase, por si só, é uma cópia direta de Eclesiastes 1:9. Tudo já está, e sempre esteve, por aqui — nós presenciamos as reescritas. Que tal aceitar aquelas assumidas?

[Na Gazeta do Povo]

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Mateus Ribeirete

edito o Jornal RelevO (jornalrelevo.com) e aqui estão meus textos esparsos. a maioria é antiga e/ou foi publicada em outros veículos.