HOLANDA — PARTE 1: Uma aula de John Heitinga no Ajax em 30 minutos

Marcelo Silva
5 min readFeb 14, 2019

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(Publicarei mais dois textos sobre o período do módulo internacional que realizei com o mestrado do Real Madrid na Holanda, na primeira semana de fevereiro).

Sim, John Heitinga, assim como qualquer outro zagueiro holandês, tinha na saída de bola um de seus pontos fortes. Mas, ao mesmo tempo, não ficou muito marcado por sua técnica. Pelo contrário. Apesar de ter sido um jogador de nível mundial, o holandês muitas vezes era rotulado como violento. Na final da Copa do Mundo de 2010, por exemplo, o ex-defensor de Ajax, Everton, Atlético de Madrid, entre outros, viu o mundo sucumbir num intervalo de 7 minutos: na prorrogação contra a Espanha, no minuto 109, segundo cartão amarelo e expulsão. Aos 116', gol de Iniesta e título espanhol.

John Heitinga explica como joga o seu Ajax Sub-19, numa verdadeira aula de como vê o futebol (Arquivo pessoal)

Praticamente nove anos mais tarde, o mesmo Heitinga, mais uma vez rodeado por vários espanhóis, me surpreenderia numa sala de aula (a sala é usada pelas comissões técnicas do Ajax nas palestras, mas no nosso caso foi usada como sala de aula, como parte da estância internacional do curso de Direção de Futebol da Escuela Universitaria Real Madrid, do qual faço parte). Estávamos no “De Toekomst” (o futuro, ao pé da letra, em holandês), como é chamado o Centro de Treinamento do maior clube do futebol holandês.

À primeira vista, Heitinga se mostrou um cara sério, direto, da mesma forma que era dentro de campo. Ou seja, profissional. O agora treinador do Sub-19 do Ajax havia dedicado pouco mais de meia hora para explanar um pouco sobre a sua equipe e como enxerga o futebol. A ideia inicial era mostrar o planejamento do jogo que iríamos ver em seguida, um amistoso contra o Sub-23 do ADO Den Haag. Talvez por eu falar inglês e fazer perguntas mais técnicas do futebol, ou seja, da parte tática, o ex-zagueiro se abriu um pouco mais, e aí se iniciou uma verdadeira aula para todos.

Para respeitar a política de privacidade do Ajax, desfoquei o conteúdo mostrado na tela por Heitinga, que falava um pouco sobre seu modelo de jogo (Arquivo pessoal)

Antes um pouco bruto nos gramados, como treinador o ex-camisa 3 da seleção holandesa segue a linha da “laranja mecânica”: futebol ofensivo e atrativo. Ao longo da sua apresentação sobre o seu modelo de jogo, usou muitos vídeos do Barcelona, por exemplo, não por acaso; a ligação entre Ajax e Barça é ainda maior estando lá, como algumas piadas dos funcionários sobre a rivalidade com o Real Madrid (de certa forma, estávamos representando o clube merengue na viagem).

O ponto que mais chamou a atenção foi o campograma que utiliza no seu modelo de jogo (dividido em 12 partes), além da chamada “HOT ZONE”, explícita no quadro tático exposto na sala. Na imagem abaixo eu tento recriar como Heitinga explicou e desenhou sobre isso, além de outros pontos que coloco em tópicos na sequência.

HOT ZONE

. Posiciona até quatro jogadores, os mais ofensivos, entre os volantes e zagueiros adversários. Até os pontas podem aparecer centralizados;

. Nessa situação, os zagueiros devem jogar mais adiantados, a fim de achar esse passe entrelinhas para os quatro atacantes avançarem e jogarem entre eles ou prepararem para os dois meias de trás ou algum lateral que suba;

O meio no 1-4–3–3

. A filosofia do Ajax envolve fazer com que seus times, desde a base, joguem no 1–4–3–3, ok. Mas nas equipes mais avançadas, como é o caso do Sub-19, existe uma certa liberdade para adaptação de acordo com cada treinador. Em seu meio-campo, Heitinga diz utilizar até quatro formações: (1) com um “pivot” (volante centralizado); (2) com dois “pivots”; (3) um quadrado com o ponta oposto fechando; e (4) um losango clássico (o diamond, em inglês).

Algumas características/detalhes

. A busca por um futebol ofensivo por vezes traz certos riscos. E a palavra “riscos” está evidente em seu vocabulário, como explícito na seguinte frase: “Não importa o sistema defensivo ficar no mano a mano atrás se o time sair para marcar pressão alta no tiro de meta adversário”.

. Nessa marcação pressão alta na saída de bola adversária, Heitinga pede, quando possível, que seus atacantes “ofereçam” o centro do campo para que os zagueiros rivais sejam forçados a realizarem passes por dentro. Armadilha!

. Quando o seu time é marcado por dois atacantes, e para evitar que uma possível perda de bola seja fatal, Heitinga monta um triângulo entre os dois zagueiros e um dos “pivots” numa área de mais ou menos 15 metros.

John Heitinga com Sven Botman (2000), zagueiro canhoto que deve ser o próximo jovem alçado aos profissionais do Ajax. Ele é peça-chave no Sub-19 e já utilizado no time reserva, que joga a 2ª divisão holandesa (Erwin Spek/Soccrates/Getty Image)

Academia com De Ligt

A precocidade de Matthijs de Ligt impressiona, realmente. Capitão do Ajax com 18 anos, o defensor, que hoje vale milhões e pode seguir os passos de Frankie de Jong no Barcelona, trabalhou desde cedo para isso. E Heitinga é testemunha. O treinador conta que, anos atrás, quando De Ligt estava em equipes menores do Ajax, o jovem zagueiro era seu “companheiro” na academia do clube. “Eu continuo frequentando a academia, até porque preciso me exercitar por causa do meu joelho machucado, e sempre que eu chegava para treinar ele já estava lá desde cedo, sozinho, treinando. Eu nunca vi um garoto treinar e se dedicar como ele”.

Treinador do Sub-19 do Ajax desde a temporada passada (o último campeão holandês da categoria foi o PSV, então com Mark van Bommel), Heitinga pode dizer que, no cenário europeu na atual temporada, vai muito bem, obrigado. Em seu grupo na UEFA Youth League (torneio Sub-19 da UEFA que aceita até cinco jogadores um ano acima da idade), o Ajax terminou no topo; verdade que empatado em pontos com Benfica e Bayern, mas duas goleadas em cima do AEK fizeram os holandeses se garantirem direto nas oitavas de final.

Além do citado Botman, Heitinga desenvolve outros talentos que já aparecem como promissores num futuro próximo dos profissionais do Ajax, como Ryan Gravenberch (2002), Brian Brobbey (2002), Sontje Hansen (2002) e Victor Jensen (2000). Olho neles e no agora professor John Heitinga!

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