wally
10 min readMay 9, 2023

eros — 17:56h
os planos de hoje a noite tão de pé, dengo?

carlos — 18:12h
claro que sim, otário!
se der tempo, levo o bolo

Ele revirou os olhos guardando o celular na mochila enquanto saía do prédio do trabalho. Aquela cidade havia se tornado sua zona de conforto e, provavelmente, seu novo lar. Ele gostava dali. Gostava de como as pessoas não se alongavam nas conversas, de como os carros passavam depressa assemelhando-se a vultos, de como podia optar por ir de metrô e sentir o ar gelado do ar-condicionado as sete horas da manhã ou como sempre encontrava uma barraquinha de lanche aberta independente do horário. Um ano, dois meses, cinco dias e algumas horas. Se suas contas estivessem corretas, esse era o tempo que morava naquela kitnet localizada em cima de uma loja de utensílios para festa infantil.

Carlos estava acostumado com mudanças e até certo ponto, gostava delas. Não importavam se fossem físicas ou emocionais; ele sempre se adaptava bem e sem grandes dificuldades. Talvez sua própria natureza impulsionada pela infância quase nômade do garoto com a família que mudava-se há cada dois anos de cidade por causa do trabalho dos pais.

Corriqueiramente, o dia havia passado com calma. As manhãs costumavam incluir horas no ônibus até o emprego e depois lidar com pessoas mal humoradas que resmungavam palavrões quando não achavam os produtos desejados. Por que reclamar de um combo de sete tupperwares falsificados por oito reais?! Tá super barato já. O que mantinha o sorriso em seu rosto durante todo o período comercial era saber que era sexta-feira.

— Amanhã é sábado, mas você trabalha, garoto! — a suposta bronca veio seguida de uma risada parcialmente nasalada, a mulher estava relaxadamente sentada no bar ao lado da loja de R$1,99 que ele trabalhava. — Aproveite sua sexta com consciência.

— Parece até que não me conhece, dona Maria. — Carlos brincou, lançando uma piscadela para ela.

Beije-me agora de Os Mutantes tocava alto em seu fone de ouvido. Voltar caminhando para casa tinha a vantagem de economizar um passe e a desvantagem de ter o sol de fim de tarde queimando cada pedacinho exposto da sua pele. Aquele ardor do calor era bem vindo pois dava a Carlos certeza que, apesar das desconfianças, ele estava vivo. As pessoas andavam com olhares focados em celulares ou no caminho e passavam por ele sem notá-lo, mesmo que o rapaz gentilmente sorrisse.

Ele era bom em passar despercebido pelas pessoas. Não que isso fosse difícil. Costumavam dizer que seu rosto era um rosto comum. Quando olhavam para ele, as pessoas viam aqueles que amavam. Pequenas e quase imperceptíveis mudanças faciais. Como uma névoa que deixava Carlos ser acolhedor e reconhecível por qualquer um. Ah, o doce e místico feitiço do amor.

Carlos Affectus estava fadado a seguir o seu destino assim como todos de sua família. Destino o qual estavam fadados, mas sequer entendiam-no por completo. Havia uma certa problemática em encontrar-se quando as pessoas tinham tantas visões sobre quem, como e o que ele era. Carlos estava nessa redescoberta. Era árdua, mas até o momento estava valendo a pena.

Quando pousou os pés no telhado do prédio Eros já estava lá. Sentado na laje com o olhar perdido nas luzes da cidade. Um bom lugar para se encontrarem, pela calmaria e pela sensação de distância que causava estarem ali, vendo todos na rua tão distantes e tão pequenos. Se cumprimentaram jogando conversa fora sobre suas semanas, jogos de futebol regionais e sobre os petiscos novos que Eros havia aprendido a fazer.

— Acho que nunca perguntei… Como você atualizou seu trabalho nesses tempos? — Carlos questionou sem muita certeza de que palavras usar, ele segurava uma latinha de refrigerante e apoiava as costas num murinho.

— Ah, sei lá, vou me adaptando com o tempo. Não é tão difícil. Esses aplicativos de namoro adiantaram boa parte dos processos. — Eros riu, bebericando sua cerveja. — Eles se conhecem mais rápido e, de vez em quando, terminam mais rápido.

— E você dá uma intrometida quando necessário, porque você é você.

— Ainda preciso trabalhar, né? Faço o que posso. — Eros inclinou a cabeça para cima por um segundos, pensativo. — Costumam dizer que não existe amor nessa geração e essas paradas e eu fico bolado, sabe? Porque…

— Desde que se amem, independente do tempo que dure, meu trabalho está feito. — Carlos completou como um sussurro. — Você me fala isso desde sempre.

— Sou inteligente desde sempre e um ótimo oráculo, pelo visto.

— Se os oráculos te pegam falando isso você vai arranjar briga... E não! — apontou o dedo para Eros, impedindo que ele começasse a falar. — Não quero ouvir da vez que você saiu na porrada com um.

— É uma ótima história, otário.

Eros costumava contar aos outros sobre os casais que ficaram juntos por sua causa ou as brigas históricas que causaram. Não era apenas questão de se gabar, mas deixar que as pessoas tivessem histórias boas para contar sobre si. Deixar de ser uma sombra na humanidade. Carlos sabia de todos os momentos possíveis da vida do rapaz, das mais épicas até as mais vergonhosas.

Uma das histórias favoritas de Carlos envolvia sua descoberta da não-binaridade e as semanas seguintes onde Eros não sabia exatamente quais pronomes usar, pois havia dito a ele não se importar com isso. Eram poucas lembranças que eles não estivessem juntos interagindo ou apenas de figurantes.

Eles se conheciam desde que chegaram ao mundo. Estavam ligados por terem deveres que dependiam um do outro e uma coisa levou a outra, a amizade. Amor e Eros. Eros gostava de irritá-lo só para poder ver os olhos ficarem miúdos enquanto Carlos se irritava. Debaixo daquelas luzes amareladas da cidade, dos murmúrios satisfeitos que soltava ao comer o bolo de milho e sentado ao lado de Carlos, Eros não queria encher o saco dele. Ou se gabar. Eros não precisava, pois ali estava seu porto-seguro. Ele só queria conversar e esquecer que havia um mundo além dos dois.

— Foi boa na primeira vez que você contou e nas outras quatrocentas vezes foi apenas entediante.

— Você precisa aceitar que sou um bom contador de histórias, Carlinhos.

— Isso só acontecerá nos seus sonhos, querido.

— Você realmente está nos meus. — Eros sorriu sem mostrar os dentes.

— Pelo amor de Zeus, você continua péssimo com flertes. — ambos riram, Carlos suspirou dando uma golada na latinha. — Vai. Te falo uma opinião minha e você diz a sua sobre o assunto.

— Um jogo valendo o que? — um beijo eu espero, Eros acrescentou mentalmente.

— Nada. Só passar o tempo.

— É justo. — deu de ombros, bebericando a cerveja.

— O Kubrick gravou a pousada na lua. — Carlos soltou, esperando o suspiro incrédulo do outro.

Eros suspirou. — Carlos. — resmungou quase decepcionado. — Por que diabos você acredita nessas paradas?

— É divertido! Foca no jogo, cuzão.

— A pousada na lua foi real, cara. Sem o bundão do Kubrick envolvido. — o negro revirou os olhos, ajeitando as pernas cruzadas. — O céu não é azul. O azul é reflexo do mar.

— Não seria o contrário?!

— Essa é sua opinião final, Affectus?

— Nem tenho uma opinião sobre isso. Manda outra!

Estavam sentados lado a lado, encostados na muretinha. As pernas se esbarrando. O moreno entregou mais uma latinha para Eros esperando o mesmo pensar.

— As rosas são as flores do amor.

— Céus, não! Não mesmo. Os hibiscos são.

— A flor do chá? — Eros arqueou as sobrancelhas, abrindo sua cerveja.

— Hibiscos são flores incríveis e lindas. Enquanto ela é cuidada, ela vive. O diferencial é que a flor em si vive só um dia. Ela floresce, vive e depois vira adubo para a flor do outro dia. — Carlos divagou. — O amor é assim, ele renasce todos os dias numa jornada constante. Alguns dias mais bonitos e outros dias nem tanto.

— Bem bobo. Gostei. — falou, guardando a lista de elogios que sua mente criava para Carlos.

Já não sabiam que horas eram e desde o começo da noite não pegavam nos celulares. A noite corria sem pressa, apenas servindo de palco para as conversas e olhares trocados entre eles. Só restavam os farelos do bolo, algumas latas de cerveja (para Eros) e refrigerante de laranja (para Carlos) e o resto do pacote de salgadinho de cebola.

— O que você acha de almas gêmeas, caro senhorito Eros?

— Almas gêmeas nem sempre são para sempre, sabe? Algumas são compatíveis por uma noite e outras por uma vida toda. — Eros descansava os braços nos joelhos dobrados, olhos atentos e semblante sereno.

— Às vezes elas nem são românticas. — comentou, abrindo um sorriso pequeno.

Entre eles sempre havia um silêncio confortável. Durante as conversas ou quando se encontravam para comerem algo juntos. Aqueles segundos de compreensão em que trocavam olhares confidentes. Carlos nem sempre entendia os significados e nem sempre se sentia confortável encarando o outro, mas quando fazia, era confortável.

— Acredita em felizes para sempre? — um tom risonho na voz de Carlos, observando o maior de canto de olho.

— Você quem deveria me dizer, pitchulo.

— Vai se foder. Esse apelido não. — os ombros se esbarraram junto de uma risada. — Agora vai, me diga sua opinião.

— Sendo sincero, acho que existem. Eles só não são tão comuns. — Eros respondeu, pensativo.

— É, na vida real há outros imprevistos além de mim. — Carlos resmungou e encolheu os ombros.

— Cê sabe que não é o culpado por tudo, né? — desviou o olhar para ele, pela segunda vez na noite.

De repente, Eros focou os olhos castanhos nele. Um sorriso suave e quase imperceptível pousava nos lábios do rapaz, iluminado sobre a luz do luar. Podiam-se ouvir de longe as buzinas dos carros, as freadas bruscas dos ônibus e música opaca de bares acompanhada de gritos bêbados animados. Havia algo nele, em Eros, naqueles olhos acalentadores e rápidos, nas mãos ágeis e no balançar leve da cabeça quando ria que deixava Carlos sem ar.

— Aprendi com o tempo.

A voz saiu como um sussurro, ele estava genuinamente perdido no olhar de Eros. A pele negra do rapaz brilhava debaixo da luz alaranjada piscante dos postes, brilhava angelicalmente e quase, se não completamente, de forma divina. O semblante cansado de tantas noites mal dormidas contrastava com aquele olhar determinado, os botões da camisa mal abotoados. Carlos estava desnorteado. Os pensamentos de ódio destinado a si mesmo ficavam menos turbulentos e pareciam aquietar-se quando a atenção estava depositada no cupido.

— Os relacionamentos sempre acontecem entre duas ou mais pessoas, Amor. — Eros afirmou, colocando a mão pálida dele entre as dele. — As consequências nunca são só de uma delas. Sepa o menos culpado nisso tudo seja você.

Chegava a ser irônico que em toda sua imortalidade poucas pessoas tivessem recebido amor do Amor. Carlos não se envergonhava. Ele era introvertido e sabia lidar com isso. O vergonhoso, mesmo, era ninguém ter visto seu verdadeiro rosto porque isso não dependia só dele, para isso ele precisava ser quem alguém mais amasse no mundo. No seu tolo mundinho particular era algo impossível.

No tolo mundinho particular de Eros, aquilo era real. As estrelas pintadas no céu bailavam silenciosamente como admiradores secretos daqueles dois. Almas imortais carregadas de pesos e culpas que jamais seriam capazes de se livrar. Almas tão destinadas ao amor e nunca, até o momento, amadas.

Eros, o responsável por entrelaçar o caminho dos amantes ao longo da história, tocou suavemente a bochecha de Carlos, o pedaço mais puro do amor. Tantas faces já haviam sido suas, as quais não pertencia-lhe, repugnantes ou sutis. Naquela noite, Eros via sua verdadeira face. Eros o via como ninguém mais conseguira ver e, mesmo tendo encarando-o por apenas alguns segundos, ele tinha certeza que aquela era a melhor visão que tivera em toda sua existência e queria ver todos os dias pelo resto dela.

— Uma vez você me disse que nunca te veriam de verdade, porque nunca ninguém te amaria tão ardentemente para ser visto. Isso foi nos anos 20, eu acho. — Eros se moveu, o suficiente para ficar de frente para o outro. — Você estava errado.

— Pode ir parando com as piadinhas, Eros.

— Suas sobrancelhas são levemente inclinadas pra baixo. Olhos pequenos, castanhos, lindos. Você quase sempre está sorrindo, mesmo quando não deve. Um nariz pitico. Algumas sardas. Eu te vejo, Carlos. Porque eu amo você, seu idiota.

— Eros, eu tô falando séri… — Carlos foi impedido de continuar. Apesar da incredulidade, ele sorriu.

— Para além da aparência, você é tudo aquilo que sempre vi nos melhores casais. Aquela feição embebida de paixão. E com você, não preciso observar de longe, porque você está aqui. Todo o amor, o Amor que eu preciso. Você me tem, Carlos Affectus.

— Você… Demorou cem anos para me falar isso, Eros? — soltou depois de alguns segundos silenciosos.

— Sério que a única coisa que você pegou foi essa?! — Eros riu, incrédulo mas se divertindo com a feição pasma do amado.

— Só me responde.

— Demorei mais de mil anos para te falar isso, Carlos.

— Porra. — Carlos praguejou. — Agora temos muitos clichês românticos para colocar em dia, sabia?

— Você pode, por favor, focar no agora? — foi um sussurro indignado de Eros.

Carlos acenou positivamente à cabeça. Ele virou-se completamente para o amado, permitiu-se tocar o rosto dele com as pontas dos dedos e aproximar seus rostos. Agora tudo parecia meio borrado. Usar óculos tinha suas consequências. Ele podia ver que Eros correspondia ao seu sorriso e ele depositou em sua cintura, para trazê-lo para perto.

— Você também me tem, Eros. — sussurrou, simples e sincero.

O rapaz beijou-o antes que desandasse a falar mais ou fazer perguntas que deixariam-no rindo. Não havia ninguém ali além deles. Eles brilhavam intensamente, envolvidos naquele beijo cheio de pausas para respirar e para se encararem buscando confirmação de que eram reais. Aquilo era real. Eles eram reais. E ali, o rosto de Carlos, do Amor, foi visto pela primeira vez. Por ele. Aquele que era dono de seu coração e alma.

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