Do que eu falo quando falo sobre viajar de moto

Viajar pode ser mais do que ir dum lugar a outro?

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
6 min readNov 4, 2019

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Às vezes a gente tenta explicar por horas, mas nada faz muito sentido. Lembrei do Livro do Murakami e adaptei esse meu título calhorda. Com frequência, penso em como as pessoas não familiarizadas com o motociclismo nos veem. Acredito que, em grande parte, veem com a indiferença de quem vê qualquer outra pessoa andando pela rua.

Se é verdade que a felicidade só é real quando é compartilhada eu não sei. Mas acho que vale a tentativa de apresentar o que eu vejo por trás do guidão para quem não tem interesse ou oportunidade de fazê-lo. Gente interessante geralmente se interessa por coisas diferentes.

Se eu tiver que explicar, você nunca vai entender.

Essa frase acima é repetida à exaustão no meio motociclista. Acho uma bobagem enorme. Se não dá pra explicar, ou não faz sentido ou a comunicação não é lá essas coisas. É possível tirar tanta coisa boa de um mero objeto? De um simples deslocamento de um ponto A até um ponto B? Levamos ao limite um fetiche sobre uma mercadoria que pode ser comparada a virtualmente qualquer outra?

Ao invés de fazer mais uma ode entediante sobre uma moto, falando de características que ninguém conhece e com termos que mais excluem do que despertam interesse, vou contar um breve relato de uma viagem e mostrar algumas coisas que aconteceram pelo caminho. Mas antes, vamos conhecer a magrela.

Essa é a minha moto. Uma Vulcan 900. Freia mal, o quadro torce nas curvas, muito torque e pouca potência, mais pesada do que a lógica indicaria. É o pesadelo de quem busca o estado-da-arte do motociclismo. É o meu sonho. Não precisamos de mais informações técnicas do que essas para continuar.

Agora, à viagem! Não vou falar sobre uma circum-navegação, não fui para Ushuaia, muito menos para o Alasca. Vou contar uma história sobre uma ida a São Paulo. Como moro em Porto Alegre, seriam cerca de 1.100 km.

Saí sem dia para chegar, apenas tendo falado com algumas pessoas para ficar hospedado em couchsurfing pelo caminho. Levei também material de camping e pé na estrada. Basicamente, a ideia era sair no início de dezembro e estar em casa para o Natal novamente, voltando com o meu irmão -que mora em SP- na descida ao RS.

Minha primeira parada foi em Garopaba. Fiquei na casa do André, que estava hospedando, também, outro motociclista (um chileno que veio de CG bolinha!). Instrutor de montanhismo e de trekking, o André me levou pra conhecer tudo que havia de legal em volta de Garopaba, Praia do Rosa, Silveira, etc. Levei a moto até a beira das cachoeiras, atolei em dunas e acampei na beira da praia.

Voltando do nascer do sol na Praia do Rosa. Zero aptidão com a câmera.

Depois de alguns dias abusando da moto em ambientes para os quais ela não foi feita, peguei a estrada novamente e me mandei para os arredores de Curitiba, parando nas praias que me despertavam curiosidade no caminho. Vi de tudo um pouco. Eu nunca gostei muito de praia, porque sempre ia para praias cheias de gente, nos períodos de pico e com poucos atrativos naturais. Foi importante para desfazer essa imagem.

Aventura é levar material inadequado para o fora-de-estrada

Foi a parte da viagem em que a moto mais sofreu. A partir daí, foi só asfalto e vida boa. Andei bastante, peguei chuva, peguei sol, e acabei parando na casa do Luiz e da Sueli, também de couchsurfing. Só uma noite, mas foi uma baita troca de experiências. Entramos madrugada adentro ouvindo música, tomando cerveja e contando causos da vida. Aqui, estava com problemas nas manoplas da moto, que estavam escorregando e me cansavam muito. Azar.

Daí, ao invés de subir a São Paulo pelo caminho mais curto, resolvi fazer o Rastro da Serpente, que me faria rodar uma boa quilometragem a mais, mas todo mundo indicava fazer. Fui lá e fiz.

1250 curvas numa moto que não faz curva e com as manoplas escorregando. Haja coração.

Passei um trabalhão, mas foi lindo. Curvas pra todos os gostos, asfalto novo, só eu na estrada. Quando achamos essas condições, parece que o mais puro da experiência vem à tona: enquanto estamos pilotando, não estamos pensando na vida ou fazendo uma espécie de autoterapia, como se acredita. Na verdade, não estamos pensando em nada. Absolutamente nada além da pilotagem, da estrada, do contra-esterço, da target fixation. É um foco que nos leva a um estado de espírito de leveza. É como se apertássemos o reset.

Cheguei, depois de um dia inteiro pra percorrer uma distância relativamente curta, a São Paulo. Sair de uma estrada vazia para entrar na capital paulista é um exercício mental interessante. A pilotagem passa de um voo de brigadeiro para uma corrida com obstáculos onde os obstáculos estão em chamas, o piso está em chamas, tu está em chamas, tudo tá pegando fogo, bicho!!!

Na Rua Augusta, atravessando a Paulista.

Chegando lá, deixei a moto de lado por algum tempo. Descansei as pernas e a coluna. Foram alguns dias de viagem. Poderia ter sido um só, mas não era uma competição do iron butt. O que eram 1.100 quilômetros, se transformou em mais de 2.500. Entrei em cada biboca que eu conseguia. Mergulhei em cada cachoeira que encontrei no caminho e vi o sol nascer de dentro do mar em cada praia onde a moto entrava.

No final, voltei com meu irmão, cada um na sua moto. Toda a experiência que eu tive sozinho, compartilhando apenas comigo mesmo os momentos, agora eu tinha com alguém que compartilhava as mesmas vontades que eu.

Chegamos em Porto Alegre para o Natal. Eu estava demolido. A moto, um lixo. Eu precisava de férias das férias. Mas foi transformador. Foi durante esses vinte e poucos dias que eu tive momentos que eu achei que jamais teria: às vezes, eu me pegava compartilhando paisagens lindas ou problemas (além das manoplas na ida, perdi um parafuso da pedaleira na volta) com a moto. SIM! Não é que eu falasse com ela, mas eu estava compartilhando muita coisa apenas com esse monte de ferro e plástico. E é viajando com ela que eu renovo minha fé na humanidade. Conheci tanta gente boa, tanta gente do bem.

It’s all fun and games até teus parafusos começarem a voar.

Não haverá as condições perfeitas para viajar de moto. Tampouco haverá a moto perfeita. Essa viagem que eu fiz, inclusive, não foi a viagem dos sonhos de nenhum motociclista. Milhões de pessoas fizeram isso antes. Outros milhões farão. E isso é o mais legal: não existe um motociclismo. Existem tantos motociclismos quanto existem motociclistas. Cada um significa aquilo da sua maneira. E é isso que fez essa viagem tão especial. É isso que fez eu querer explicar do que eu falo quando eu falo sobre viajar de moto.

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Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.