E o Chile, como tava?

Reflexões de longas caminhadas santiaguinas

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
4 min readJan 7, 2020

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O trânsito se comporta com um gás. Pode ser comprimido ao extremo numa tubulação que lhe é oferecida; já a vida cotidiana é como um líquido, que se espraia devagar pelos espaços disponíveis, lentamente submergindo os obstáculos.

No Chile desse fim de 2019 vemos as duas coisas. O trânsito caótico de metrópole latina ficou ainda pior sem as sinaleiras, derrubadas pelos protestantes e ainda não repostas com medo de novas depredações. É um símbolo do que acontece nessa faixa de terra estreita, perto mas longe de nós.

Os lugares de maior circulação foram transformados em uma grande folha em branco a céu aberto para os protestantes.

O dia-a-dia parece tentar voltar à normalidade, num misto de apatia e rebeldia permanentes. A cidade fraturada, suja e rabiscada de Norte a Sul tenta encontrar um novo equilíbrio com a população. Não sei se me faltam recursos de análise por achar essa tentativa de regresso à normalidade meio bonita, ou se me falta empatia por achá-la meio triste.

Claramente o contrato social vigente se rompeu. O acordo anterior era frágil. Pelo menos em Santiago, não é preciso muito tempo para entender que a conta não fechava. Prédios pomposos no centro contrastam com uma população que almoça suas marmitas na rua. Mesmo os setores financeiros, onde as mesmas camisas azul bebê dos faria limers são a língua franca da aceitação social, se nota essa incongruência. Quando conseguimos olhar os apartamentos nos espigões habitacionais, mesmo em áreas centrais, se nota que são ocupados por uma classe trabalhadora que não dispõe de muitos recursos. Como disse o próprio Pinochet, quando questionado sobre as denúncias de violações aos direitos humanos, a economia é mais importante. Bizarro. O modelo adotado é bastante claro: crescimento em detrimento do desenvolvimento. A infraestrutura boa mostra que foi necessário fazer muito dinheiro e concentrá-lo.

“Pacos” são os policiais militares. Os protestos contra a truculência policial estão por toda a cidade.

As manifestações foram grandes. Profundas. Acho que bem diferentes das nossas de 2013, apesar de terem pontapés iniciais parecidos. No Chile não houve pacto de “sem violência”. Todo o processo foi violento. A quebra de contrato social a que me referia ficou clara quando vi a hostilidade com a qual praticamente todos tratam os policiais. Igualmente, ver a cidade completamente pichada chama atenção. Mesmo eu não sendo tão apegado às construções e mesmo sabendo que a tinta em breve apagará esses registros, é impressionante.

Faixas mostrando apoio aos jovens que estão tomando as rédeas dos protestos no país.

Nas pichações estão desde demandas genéricas, como as brasileiras de 2013 — fim da corrupção, constituinte, menos privilégios-, até demandas mais específicas, bandeiras geralmente levantadas por grupos de esquerda -temas feministas, veganos, de cunho trabalhista, etc-. Apesar das pautas ideologicamente identificadas, há um apoio praticamente unânime aos protestos. Há, inclusive, grupos voluntários de primeiros socorros em alguns pontos da cidade para os protestantes.

O estágio extremo a que se chegou, onde os protestantes parecem ter perdido a ideia de limite e a polícia parece ter perdido a autoridade que mantinha o status quo, partindo para uma violência totalmente descabida (o uso de gás lacrimogêneo é comum e indiscriminado, as prisões na rua também, o uso de soda cáustica (!!!) contra os manifestantes), mostra o tamanho da fratura que se vê desse lado dos Andes.

Pessoal não sabe brincar em Santiago.

Uma grande população pressionada por uma economia pouco inclusiva toma medidas drásticas e é repreendida por um Estado que responde tão drasticamente quanto. Parece que a imagem chilena de coesão e de desenvolvimento não era exatamente assim. Depois de muitos estudos sobre o país, e principalmente sobre o mercado consumidor do país, só vindo aqui nesse período tão delicado eu pude entender que todos estavam comprando, mas poucos estavam vivendo como achávamos.

Eu não sei o que se faz quando se chega a esse ponto. Também não sei o que significa para o contexto político latino-americano. No Brasil de 2013, para responder -ainda que de forma atrasada- aos protestantes, o governo apertou todos os botões, como disse Nelson Barbosa, gerando um Estado ainda maior que se tornou impagável logo à frente. Vai acontecer o mesmo nos Andes? Não sei. Eu diria que isso tudo é palco ideal para uma nova ordem institucional. Resta saber se será inclusiva ou se continuará excludente.

Em abril, haverá o plebiscito que marca o início do processo da criação de uma nova constituição. Santiago vai tremer pelos pés dos cidadãos e pelos coturnos dos carabineros. Veremos se a vida cotidiana, líquida e adaptável, voltará a ferver. O fato é que nada vai ser como antes daquele lado da cordilheira.

E o Chile, como tava? Tava bem loco!

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Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.