Naná DeLuca
5 min readJun 19, 2017

do direito à leveza

Eu dançava na Praça da República, depois de atravessar o centro com a Caminhada Lésbica e Bissexual de 2017. A banda cantava que seja leve, que seja leve. E assim era meu samba bêbado; de quem atravessaria o céu ou a esquina com asas nos pés. Vi uma amiga que corre de um lado para o outro (e fila minhas cervejas no meio-tempo). Um dia, eu narrei para ela minha experiência em uma sessão de cinema exclusivamente lésbica (Eu sou a próxima).

O documentário curto nos varrera com a força desmedida, devastadora, das verdades brutas. Morremos aos montes. Estupram-nos aos montes. Expulsam-nos de casa. Espancam-nos. Ofendem-nos. E matam. Ao fim do filme, toda a plateia chorava. Chorava tanto que chorava também a impossibilidade de não chorar. O racismo. O classismo. A lesbofobia. A bifobia. Estes bois para quem não só damos nome — têm teoria e biografia completas. A injustiça. Despertavam ódio de lágrimas nos olhos. E emoção bonita também (embora eu defenda uma certa beleza incompreendida do ódio): momento tocante de partilha solidária; de palavras que pareciam despencar das bocas para o silêncio. Tudo estava dito. Restava chorar ao lado.

Não sei se acho isso bom, minha amiga respondeu em anacoluto, uma sala cheia de sapatão chorando. Ambivalência: é bom e não é. Meditamos. O filme era da ordem do urgente; a sociedade das violências irrefreadas. É bom. Tem que existir. Sempre e maior. Que todos ouçam esses berros. O racismo na forma da polícia assassinou. A lesbofobia na forma do pai estuprou. O racismo e a lesbofobia a encontraram na esquina e espancaram até matar. Porque era periférica. Porque era negra. Porque era lésbica. Uma sala de cinema onde toda a plateia chorava. E a fila para o filme era, de repente, outra. Questão de cálculo; reúna teus marcadores sociais e descubra onde você está na fila real. Reconheça os privilégios que fazem não estar na ponta primeira (ser homem, ser branco, ser cisgênero, ser heterossexual, ser de alta classe social: estatisticamente mais para o fim). Faça o que puder para freá-la. Proteja quem puder, quando puder, como puder. Fila que caminha a passos largos. Não é bom. E precisamos, no meio tempo, chorá-la junto.

Mas como viver — realmente viver — como respirar, conhecendo a iminência da aniquilação, se não a tua, a daquela que, no fim da tarde, sentou ao teu lado no cinema?

Seguiu-se, então, uma conversa em que senti que coletávamos plumas. Falar do documentário, soco no estômago de todas as consciências cruas, nos arrastou para a ponta outra. Discursivamente, nos demos as mãos e saímos correndo. Fuga. Passeávamos no vento, na memória coletiva. Elencávamos filmes, livros, ou qualquer coisa, de fato, que nos representasse com levezas. E até com riso (por que não?). Aquele filme em que dá tudo certo. E o stand-up que faz chorar de rir (destes eu coleciono vários e vários, pois se tem arte que aprecio cegamente, é a da lésbica que toma nas mãos o microfone com a audácia de querer fazer rir todas as bocas do mundo). Aquelas HQs. A série com o casal tranquilo. Recolhíamos, com as pontas dos dedos pela fumaça do meu tabaco, estes que são leves. E não por serem superficiais, mas por garantirem, nas fissuras do tempo que abrem, o direito à leveza. Dilatam o ar. Fazem respirar melhor. Parecem desesmagar o cotidiano que atropela e, então, tocam um profundo que faz flutuar.

Eu dançava na praça o refrão que seja leve, que seja leve. E lembrei que, semana passada, eu passeava sem pretensões pelo feed do facebook. Sem meu consentimento, me mostra um vídeo: um casal de homens gays é chicoteado em praça pública. Uma praça da Indonésia. Ou de São Paulo. Uma chibatada. E o vídeo nos conta que eles foram flagrados (palavra que significa quem procura, acha). Duas chibatadas e vêm explicações vagas; algo sobre o Corão e a política externa. Três chibatadas: a Bíblia e a Família. A quinta e a sexta eram algo como a moral. Questão de costume. Sétima, oitava, nona, o público filma. E ri. Oitenta e cinco chicotadas. Neles. Em mim. E em todas as pessoas do meu cotidiano e além. Gradação impossível. Queria tanto poder aqui dar uns beijos de verbo em Clarice Lispector; reescrever minha gradação preferida da língua portuguesa — aquela em O Mineirinho. Impossível. Treze tiros, um parágrafo. Oitenta e cinco chicotadas: a crônica inteira. Arrancam até o direito à palavra, pois não há palavra possível. Meu bruto passeio despretensioso pela rede social, tomando café na pausa do trabalho. E a leveza foge, alça voo — me deixa só ao rés do chão. Se realmente a quero, devo alugar a dos outros (contrato que geralmente cobra, em cláusulas miúdas, alto preço).

E, no entanto, é um direito que me pego procurando frequentemente. Às vezes, eu passeio pela cidade o tateando; música nos ouvidos e a vida desenrolando. Tenho, realmente, direito à leveza? Devo reivindicá-lo? Por que? Quando se chicoteiam nas praças do mundo pessoas por serem algo que você também é, a leveza só é possível mediante um esforço colossal de adequação. E, mesmo assim, será falha. Sempre haverá alguém, em algum tempo, em espaço inesperado, para fazer ancorar você e lembrar quem você é e exatamente qual é o lugar que ocupa. Quem é você na fila?

Que seja leve, que seja leve eu dançava. Como é bom quando é leve. De um lado vejo a amiga que corre de um lado para o outro. Do outro, a de cabelos coloridos que vende adesivos que fez do punho. E a dupla de amigas que cochicha na fala, mas ri escandaloso. E a roda que dança feliz, mãos para o céu. Como é boa a banda. E o casal que vende chaveiros (que vi) psicodélicos. Rostos que vi no cinema e na balada e na roda de samba de sexta-feira e no fora temer de domingo. Rostos que vejo no metrô e na sala de aula e no bar. Rostos que encontro toda semana em algum canto e que me fazem sorrir de timidez leve. Conheço você.

É difícil encontrar representações da nossa leveza. É difícil, também, permiti-la. Implica em alguns minutos de esquecimento. Um certo pavor da inconsciência. Vulnerabilidade às vezes mais difícil de se conquistar do que a força. Mas na festa, na caminhada, no protesto, na sala de aula, no bar pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro. Encanto do estar junto na fila. Em peso, tecemos no ar nossa própria leveza, costurando no corpo a corpo o direito básico da partilha, da felicidade. Nós em peso, nós leves.

Que seja leve feito pluma, sempre, a soma.

Naná DeLuca

Pensa que todo mundo é poeta quando cai o dia e as lâmpadas acendem. O resto é combinação. Um dia ouviu que “escrever é difícil, mas faz gozar”. E acreditou.