Do que trago Na Ponta da Língua

Naná DeLuca
2 min readFeb 7, 2017

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Conheci Beliza Buzollo em uma varanda enorme. Havia uma vista panorâmica para São Paulo e uma torre de chopp ao lado da qual eu me instalei. Quando vi Beliza, senti imediato afeto no peito, afeto de quem vê uma pessoa desconhecida com as retinas da familiaridade. Usava uma cartola que invejei e botinas que pareciam com as minhas. Senti-me tão confortável perto de Beliza que no lugar de trocarmos telefones, trocamos playlists no Spotify. Estava conhecendo, nesse dia, a criadora da série Na Ponta da Língua, recomendação fervorosa que faço para qualquer lésbica que encontro.

Dias depois, dividi com Beliza uma bebida, uma sinuca e algo da vida. Narrei meticulosamente um dos encontros mais ingratos que tive, no melhor estilo chorindo. Quando terminei, Beliza pediu uma caneta. Pedia uma caneta como quem pede um bisturi. Isso vai virar quadrinho, disse sobre meu conto enquanto rabiscava no guardanapo um bem bolado de meu caso tragicômico e sua própria criatividade. O mesmo ocorreu outro dia, agora em sua própria varanda. Contei que alguns dias após uma separação, assisti seis horas ininterruptas de Bandnews, pois era a única programação que não doía. Datena? Beliza perguntou. Boechat, respondi, Datena seria ainda mais triste. Riu. Isso vai virar quadrinho: seu maravilhoso refrão.

Está aí, pensei nas duas ocasiões, a magia de seu trabalho como quadrinista: Beliza colhe do cotidiano lésbico a matéria-prima para sua criação. É cronista que observa nosso mundano e nele encontra o fantástico. Ou, ainda melhor: é capaz de ver o fantástico naquilo que a maioria não verá e nos ajudará a ver junto. É comediante e, como todo bom comediante, é crítica. Do pranto faz riso, dos padrões faz subversão bem humorada, das subversões faz alertas. A série com frequência nos lembrará que ainda morremos, que ainda temos direitos básicos caçados, que ainda permanecemos à margem. Na Ponta da Língua repousa no ponto de encontro preciso entre o humor e a seriedade, entre a crítica e a cumplicidade. Há o efeito da piada interna, aquela que fará rir qualquer lésbica, pois as sensações “vivi essa situação, conheço esse casal, isso aí é bem real” são recorrências encantadoras ao mergulhar no tumblr entre gargalhadas e sorrisos.

Na Ponta da Língua é aguçadamente crítico, nos obrigando a refletir sobre os elefantes que ignoramos nas salas da lesbiandade (a bifobia, por exemplo). Essa criticidade, muito mais do que mera provocação, levanta para os sujeitos lésbicos suas questões urgentes. Não há idealizações baratas e muito menos se passa pano nos comportamentos e discursos que devem ser repensados no interior da comunidade. Mas, para muito além disso, Na Ponta da Língua celebra as relações lésbicas: as amizades, os amores, os impasses, os dramas. Na Ponta da Língua celebra a alegria de viver o dia a dia entre as tuas e teus. Partilhemos com as pontas de nossas línguas esse presente tão raro.

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Naná DeLuca

Pensa que todo mundo é poeta quando cai o dia e as lâmpadas acendem. O resto é combinação. Um dia ouviu que “escrever é difícil, mas faz gozar”. E acreditou.