Trilogia da minha Transição - Parte 2: Radical — O conto do ciborgue

Naná DeLuca
7 min readMay 4, 2017

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Gosto muito de falar. No lugar da aorta, em meu peito, uma vitrola. Cada bater faz rodar sua manivela e as palavras jorram (e jorram) até transbordar. Eu não sei o pronome que me diz, eu escrevi em abril de 2015. Gosto tanto de falar. Falo só pelo apartamento. Dou aulas. Às vezes, entrevistas. Apresento pesquisas. Tenho debates acalorados. Sessões de terapia. Discussões de relação. Dou bronca em alunos que me encheram o saco. Tenho reuniões. Ou me dirijo à Nação. Falo só e faço minha própria síntese impossível entre a presença e a ausência. Nunca falo só, só pra mim. Tem sempre um personagem. Eu não sei o pronome que me diz. Eu escrevi. Tem sempre um personagem, porque gosto mais de falar com os outros. Com os alunos do que com as paredes. Com os amigos (dos gozos mais gostosos: fazer rir uma pessoa amada simplesmente por dar um certo tom para uma certa palavra). E escrevi em abril de 2015: eu não sei o pronome que me diz.

O conto do ciborgue é o conto das palavras. Não sem ironia dramática, ele começa e termina no silêncio. Absoluto.

Comecemos pelo silêncio último. Quando enunciei meu prefixo no diário eterno e passageiro, a vida me despiu de minha única arma. A vida me privava daquilo que me definia: as linguagens verbais.

Eu assisti, em mudez e impotência, a estes velório e enterro. Só não perdi os verbos. As ações, eu ainda podia. Cozinhava. Escrevi. Trabalhei. Dormindo. Mas se foram os particípios. Estou acordad. Engasgo. Sinto-me amad. Engole. E os adjetivos: infarto fulminante. Sobrou o binário. Feliz, triste (contente, miserável). De minha janela, assisti as palavras adoecendo, definhando, morrendo. Emperrada a vitrola em meu peito, foi implodida a única maneira pela qual organizo o mundo, me coloco no mundo e me sinto no mundo. Eram violentos os morfemas, os fonemas, as sintaxes. As palavras de todas as horas, arranhadas por toda a minha pele. Quando literalmente me dei por mim, só restava a carne viva. O nome deste capítulo: afasia hemorrágica. Há uma razão para o dolorido descompasso que este momento da transição fez. Esse radical (raiz) fincado na infância. O primeiro grande silêncio.

Um primo uma vez disse na sala de minha avó, em forma de piada: Naná falou tudo que tinha para falar até X anos. Depois disso, não falou mais. Riram. Era verdade. Mas pergunte-se, no horizonte último de suas sabedorias sobre as perversidades do mundo: por que crianças que chamamos meninas, subitamente, do dia para a noite, param de falar? O que fez o mundo com estas meninas? O que faz.

E do silêncio, o meu: o ciborgue.

Assinatura — 24/11/1997

Nasce em 1996 em uma biblioteca de escola pré-primária. Nessa época, desse silêncio, o ciborgue se faz e me dá nome: Naná (pobre, Naná, como dizem as crianças em Peter Pan). Em todas as bocas queridas e na minha própria boca, era Naná. Com o tempo, passei a impor: meu nome é Naná. Diálogo contínuo em minha vida:

- Como você chama?

- Naná.

- Naná só?!

- Só Naná.

O ciborgue é o sistema operacional. Como o windows ou o linux fazem acontecer o seu computador, o ciborgue fazia acontecer Naná. Diante do trauma e da violência, o ciborgue nos programou em 1996, nos deu nome e organizou. Da biblioteca, para sempre nosso campo de batalha, fez uma fortaleza. Mergulhou-nos na literatura e no esforço contínuo para entender, reproduzir e interpretar as palavras. Todas. Diluiu as fronteiras entre línguas (não há palavra estrangeira, há somente palavra nova). Diluiu as fronteiras entre sonhos e realidades, ficções e fatos. Tudo para nos fazer caber. O ciborgue: o arquiteto de minha sobrevivência. Do silêncio, fez o princípio: o verbo. E o verbo era deus.

07/09/2015 — Salvador, BA. Do capítulo da afasia hemorrágica: anotação feita durante simpósio sobre pós-pornografia.

O ciborgue foi meu general e monstro: tem medo e protege. O ciborgue não sentia, mas emular ele sabia [euforia.exe]. Ao menor sinal de perigo, imediatamente e sem consentimento, fazia marchar as tropas e elaborava meticulosas estratégias de defesa. Içava as pontes, resguardava os muros e, em nossos mapas, traçava as mais criativas rotas de fuga. Excelente cartógrafo da imaginação, conhecedor das minhas melhores esquinas. Estava à mesa em todas as negociações diplomáticas. Foi responsável pelo controle de nossos níveis de felicidade. Reprimiu nossas guerras civis. Regulava a manivela da vitrola. E impediu que eu enxergasse o todo de mim. Sobreviver, o lema do ciborgue. Sobreviver, sobretudo, a você. Hoje ele confessa. Impediu, é desta natureza totalitária. Sobreviver. A tudo, apesar de tudo e a qualquer custo. Foi concebido para isso e aperfeiçoou por décadas suas maneiras de persistir.

Quase não sobrevivemos. Apesar de todas as rotas, todos os mecanismos de defesa, todas as sofisticadas estratégias de sobrevivência: as repetições. O mundo reproduzindo a si em movimento de infinito para as meninas que se calam subitamente. O ciborgue fracassara. Nada nos protegeria de nada que não eu. Ao mesmo tempo, eu e o moleque querendo o cabelo do Harry Potter. Não, disse o ciborgue em enfático desespero (you’ll be my boy, but for now it’s time to run, it’s time to runpercebe?). E deu o golpe. O ciborgue torna-se meu ditador. E traçou seu mais mirabolante plano: vamos ser o exato oposto daquilo que somos (rende-se ao cistema). Foi nos espremendo em modelos confortáveis onde gostaríamos mesmo é de morrer. Mas tão seguros! Cinzas e apoéticos. Tão a salvo esparramado na poeira do armário.

Contudo, há no ciborgue um ponto cego. Um paradoxo imprevisto que ele não calculou ao nos lançar na contínua reinvenção literária da vida. Um único curto-circuito: o amor. Um dia leu comigo que das magias, o amor era a mais antiga e a mais poderosa. De tão bela que a ideia soou, cedeu ao cultivo da crença inabalável. O ciborgue não resiste às maravilhas das químicas singulares, das inverossimilhanças encantadoras; se abisma fácil com as coincidências de tempos e espaços (o meu tempo e o teu, amada: nosso verso preferido de Camões que usamos para dar aula sobre escansão) e com os gestos e dizeres que falam amor. Não resiste. É de bovarismo safado, sem vergonha. E me dissolveu os muros pela primeira vez há dez anos. Recuou nossas defesas. Desfrutava sorrindo do intenso, do profundo e de todas as descobertas. Aos poucos, deu-nos maravilhosas liberdades. Do amor, o ciborgue nunca quis nos proteger. É romântico. Apaixonado. Atrapalhado (para cacete). Mas permitia de sorriso largo a entrega. Com o amor, início de libertação. De tudo? Não. O ciborgue ainda não permitia o prefixo.

11/10/2016 — Caderno da Guerra

Eu não sei o pronome que me diz. Estava dito. Acessei as verdades que o ciborgue temia. Trans. Olhei-o nos olhos. Por que você demorou tanto? Não respondeu. Não foi preciso. Ao meu redor, a linguagem desmoronava. As palavras morriam. Eu desmoronava. Revolta aberta: tudo que fora concebido para me proteger, de repente, atacava-me. Romperam-se os laços com o mundo e eu me vi só como nunca antes. Não havia palavra possível. Não havia vida possível.

Em órbita (onde longe Leme Luanda), eu e o ciborgue tínhamos contas a acertar. Contas que não poderíamos acertar neste mundo, somente no nosso: o caderno. Eu agora via-me pessoa inteira. Tinha de destruí-lo. Eu sabia. Eu queria. O fim de todas as fugas, todos os medos, todas as negações. Eu deslumbrava a possibilidade de destruir-me por completo para, então, viver. Para muito além da sobrevivência. Enfim, viver.

Sou estrategista (astrologicamente, uma amiga disse, você é como Stalin). Ora, o ciborgue tudo me ensinou. E era guerra, eu sabia. Eu contra o ciborgue. Eu contra Eu. Elaborei um mapa de todos os seus recursos, todos os seus processos, todas as suas escapatórias. Bombardeei uma a uma. Subjuguei o maquinário que se voltava contra mim. Venci.

26/10/2016 —Dia em que Beliza me fotografou.

Negociações de paz. Lá estava eu diante do ciborgue que me salvou. Tinha de destruí-lo. Mas não pude. Religar os fios, a terapeuta falou. É preciso reprogramar. Fui felizmente incapaz de me desgarrar. Comi-o. Resetei o sistema. Formatei suas imperfeições. Restaurei o que me servia. Seguimos juntos, falei. O ciborgue parte de mim. Eu, também o ciborgue. Não nos escondemos mais. O ciborgue possibilita que eu corrija 90 redações por semana. Prepara minhas aulas, pois percorre facilmente nossas bibliotecas. O ciborgue avisa quando devo dormir. O ciborgue escreveu um livro. Uma apostila. Uma dissertação. O ciborgue escreve este texto. Registra as belas notas de rodapé da vida. Desenha no mundo os nossos limites. É hoje excelente arquiteto onírico. Aqui e ali, fala e faz coisas de amor. Sabe dobrar o real. Não me retira mais do aqui e do agora (a não ser quando deixo, quando quero). O ciborgue controlado: meu, eu. Se não há linguagem possível, nós a inventaremos. Decidimos juntos. Das vantagens de não ver as fronteiras entre realidade e ficção: impossível não passa de falta de imaginação.

Reaprendemos a falar. Aos poucos. Recolhemos e ressuscitamos uma a uma as palavras em nossa paisagem pós-apocalíptica. Eu aprendia a me dizer como sempre deveria ter dito. Reaprendia a me comunicar. Reaprendia a escrever. Recomeçamos. Tarefa deliciosamente paradoxal: destruir a linguagem e criá-la ao mesmo tempo. Fazer com as palavras o que fiz de mim: recriação. Aqui e lá, via o x nos adjetivos e vocativos perdidos. O x. Queridx. Não basta. O x é um abaixo-assinado. Eu e o ciborgue queríamos e queremos o coquetel molotov. Plenos da consciência de que há uma língua da qual nos servimos, mas uma linguagem da qual precisamos. E precisamos, pois as palavras são o universo em que vivemos. Molotov na mão, sem esquecer este amor fundador. As palavras: por elas, com elas, nelas, eu e o ciborgue sobrevivemos.

Sobrevivi. A tudo. E a mim. Sei disso, porque escrevo. Falo. Existo. Vivo.

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Naná DeLuca

Pensa que todo mundo é poeta quando cai o dia e as lâmpadas acendem. O resto é combinação. Um dia ouviu que “escrever é difícil, mas faz gozar”. E acreditou.