Trilogia da minha Transição — Parte 3: Foguete não tem ré

Naná DeLuca
8 min readMay 26, 2017

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Nas montanhas-russas, o corpo sem controle desenha no mundo uma trajetória impossível. E, de repente, breca. Volta ao estado banal. Quero ir de novo. Fim da fila: longa espera que festeja o regresso. O nervoso prevê a escalada para a queda. Os carrinhos sobem em esforço lento, como se a tarefa os agoniasse. Nada se vê do adiante, apenas a linha reta, a máquina para o horizonte. É a objetividade para o cair que assusta. Há no trilho uma certa fatalidade, uma necessidade de conformismo. É isto a montanha-russa: se deixar arrastar para o tombo caótico. No topo, saltamos como que para abraçar o infinito. E o corpo entrega-se à ilógica. Entrega-se, pois sabe: a qualquer momento, brecaremos.

Esta trilogia é a história de uma de minhas montanhas-russas. Chega o fim do relato, só para que recomece. Nesta suspensão de estar subindo para, então, estar caindo — escrevo. Recomeço. Em suspensão: certeza de que se sobreviveu a mais um capítulo. Caindo: na esperança nua de que se sobreviverá ao próximo. No início, o fim. Do fim, o início.

Na véspera de natal de 2016, vi-me em uma varanda fumando e bebendo com meus primeiros parceiros na vida. Lá na infância: eu, meu irmão e dois primos. Conversava com eles saboreando o reencontro. Havia um estranhamento em vê-los adultos. Ao mesmo tempo que conflitavam com as memórias, eu sentia que os enxergava por inteiro. Nós nas praias do litoral norte; caldos nas ondas. Eu e Lelé levados lado a lado nas nucas de nossos pais pelo bloco de carnaval. Lucas, a criança mais gentil de toda a infância. Meu irmão, com quem dividi todo o crescer (e todos os inconvenientes a nosso favor). Tia Gi, de repente, ressurge de seu quarto. Uma bronca. Falávamos alto.

Eu sorria enquanto aquela mulher poderosa nos dava um esporro tão sensacional quanto aqueles da infância. Elencava com fervor todas as evidências de nosso erro, fazia previsões sobre nossos futuros condenados, questionava nossas sanidades. Eu sorria. Que maravilha, aos 27 anos, levar uma bronca da tia Gi. Reatava duas pontas da vida. Voltou para a cama e nós retomamos. Lembramos: o dia em que Lelé tentou me matar com um taco, o dia da competição de comer pimenta, o dia do barco, o dia da fogueira clandestina. Eu pensei, enquanto Santos amanhecia: nunca mais serei triste (das ilusões que doem de tão sinceras, a mais bela). E Lelé gritava na varanda:
Foguete não tem ré!
Foguete não tem ré!

Foguete não tem ré. E a montanha-russa que o leva também não. Não há ré, mas há retorno. Que bonito, Lelé . Poesia pra caralho, respondeu. A imagem decolava da garganta. Tocou de forma visceral. Sem ré. Na varanda, tendo em volta os moleques com quem cresci, soube: aqui estou eu, mais uma vez, na suspensão anterior ao cair. No esforço de impulso que antecede o voar. Eu me preparava para mais uma volta em montanha-russa (de novo e de novo). Prova cabal de minha sobrevivência. Recomeçava e agora, eu. Sem ré.

Do que é feito o foguete? Eu me pergunto. Esta transição, esta montanha-russa: momento um tanto inenarrável de encontrar-se com aquilo que se é; como um quebra-cabeça por anos apenas mosaico em zona que, de repente, faz-se todo nítido. Processo que é dor de mertiolate em joelho ralado. Contemplar a vastidão dos erros, a profundidade dos defeitos, as raízes fincadas e repetitivas dos traumas. E ver também, lá e cá, os detalhes maravilhosos do conjunto. Eu era capaz de me enxergar também por inteiro. E conversei com Lelé na varanda até 9 horas da manhã do dia 25 de dezembro de 2016. Em casa, estanquei diante do espelho. Dei-me oi. E chorei.

E pensei em meus amigos. A família. RuPaul falou, naquele episódio emocionante: enquanto LGBTs, escolhemos nossa família. A família (and it feels like and it feels like home, porque trilogia nenhuma é minha sem remixar Madonna). Mas, de fato, nós não a escolhemos. Nós a encontramos. Para quem fomos é tão importante quanto de quem viemos. E nos revela em igual medida. E como é feliz o dia do pajubá. A felicidade de aquendar e a perpétua falta de aqué. Os bafos e as bilas. O carão e a colocação. Quem contigo ferve e dá truque. Quem fala tua língua e outros códigos não previstos nas leis.

Em 2008, ingressei na faculdade de Letras. Desolador primeiro ano em São Paulo. Dificuldade para fazer amigos. Sempre isto. Em cada novo espaço, este suplício. Chegam (foco: não precisa correr, o que é teu a de vir às tuas mãos). Sou eu que demoro. Como uísque, eu falei para a terapeuta, sinto que leva tempo para que me queiram digerir. Demoro. As palavras fogem e me acredito sempre atrapalhando (como se meu próprio corpo, só por existir perto de quem quero amar, fosse imposição). O horror de estragar é ainda mais forte que a angústia de perder. Paraliso. Dificuldade para fazer amigos, anotou o primeiro terapeuta, quando eu tinha 12 anos.

Havia um grupo na faculdade que me fascinava. Pareciam sempre alegres, em fúria de viver. Estavam sempre juntos, como força da natureza que não se pode fragmentar. Em aulas, em festas, no orkut, pareciam nunca se perderem de vista. Eu os amara antes deles saberem. Assim senti, porque sabia: irei amá-los. Com traquejo e ansiedade, me aproximo. O ciborgue ajuda (adiciona no msn, dá um “oi”, conta uma piada).

12/05/2017 — Beliza me fotografa mais uma vez, na L’Amour. Tocava I Follow Rivers — Lykke Li. Miguel pendurado em meu peito.

Lembro perfeitamente da primeira vez que vi Miguel (química rara e amorosa das minhas retinas, faz profecia: alguém para se adorar todos os dias). Usava um poncho no pátio da faculdade e corria de abraços abertos. Poncho esvoaçado, quero que me abrace. Tinha ar de fada guerrilheira que ocupa quintais privados. Miguel tem amor ao pormenor, aos preparativos e às fantasias (literárias, poéticas ou de figurino). É louco. E até seu bocejo arde desejo. Arde às maneiras fabulosas das velas estreladas. Tem a astúcia do arqueólogo e a precisão sonhadora do arquiteto. Com Miguel, divido xodó pelas sintaxes antigas e pelo misticismo enquanto efeito (de palavras, gestos, penduricalhos). Mora no quarto ao lado. Nossa casa é museu de objetos extraordinários. Mistura entre a velhura e o espalhafatoso (balança farmacêutica de 1960 com nave do Buzz Lightyear). Em cada canto, uma lasca de nós que escondemos em vitrine. Em mim, Miguel também mora. Dele, tenho uma infinidade de detalhes delicadamente talhados. O colar de dente de tubarão, tão metonímico de nós. A leveza afiada inquieta no peito que sabe: uma vida só não basta, é preciso que em uma, várias.

Richie (Riti, som adorável) eu conheci cantando em um churrasco
Gosto de sentir a língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
Cantava Caetano, centro da roda. E canta (você é uma bagunça, eu sou uma tragédia). Ricardo é um continente inconcebível onde tudo cabe. Destas pessoas que, só por existirem como existem, se veem sempre palco para plateias e, por acaso, descobrem que lhes cai bem. Richie é um centro de gravidade misterioso. Revela-se aos poucos, em lenta dança, enquanto nos atrai sem esforço. E como é bom orbitar ao seu redor e lhe desvelar devagar as esquinas. Em 2016, morei em seu sofá por três meses. O móvel foi a casa, mas Ricardo foi o lar. Como eu, gosta de falar muito para disfarçar o inaudito (oh, mrs. Dalloway…). Combinamos: se eu precisar de eutanásia, quero que você me ajude a fazer. Por que? Porque você seria a única pessoa que não se destruiria por isto. E vice-versa. Com Ricardo, divido a inevitabilidade do sonho e da imaginação unida ao pragmatismo implacável. Foguete não tem ré, ele sempre soube.

Eu adoro, disse no churrasco de 2009 a voz vizinha, hoje melodia da minha paz, eu adoro a imagem da língua que roça a língua de Camões. Samuel colocou, então, a língua para fora e estendeu os braços, como se beijasse em abraço contínuo um Camões invisível. E como eu gosto de quem vive no corpo as palavras e a música, de quem se deixa enfeitiçar. Com Samuel, já passei um carnaval anedótico em barricada. Nós nos escondemos do mundo em um pacto mudo. Tocamos violão. Gostamos de metal farofa e francesas dramálicas. Recentemente, assistimos de sua varanda o pôr do sol ao som de Nightwish, em uma auto-ironia à toda prova ao mesmo tempo que celebração de nossas adolescências provincianas. De nossas jaquetas de couro (whip me, slap me, drunk fuck). Samuel é serenidade. A razão na curva do looping. O esconderijo perfeito. O amigo cujo sorriso é lareira em pleno inverno e no verão é brisa à beira mar.

Gosto de você, leãozinho. Paulo. Paulo dançando sob o sol de regata e óculos escuros. Trote da faculdade em 2010. Como é bonito esse rapaz, desses que obrigam a me expressar como minha avó. Como rebola bem esse rapaz. Tem a lindeza irresistível da força. Sua voz é um rugido e o riso ronrona gostoso, vibra alto. Adoro quando Paulo ri e é riso que adoro fazer. Gosta, como eu, de viver as histórias quase tanto quanto gosta de contá-las. Uma tarde ou noite nunca são suficientes para narrar nossos inteiros recentes. Para sempre, pra mim, da beleza ensolarada, amazona, de quem enfrenta no berro e na vontade a primeira queda da montanha-russa. Paulo é a energia da erupção de minhas lentas lavas. Encontro do nitrato com a glicerina.

O foguete é feito da família. Não basta dizer de forma clínica: as masculinidades positivas que me incorporam. As masculinidades que, quando me deixei ser, revelaram-se presentes em meu sempre. Não. Devo a eles vida: meu corpo e todos os amanhãs que atravessei. Sobrevivi à trilogia de minha transição, porque sei, sem necessidade de fugir para a floresta, que a felicidade só é real quando com eles partilhada. No sofá de Ricardo, nos ombros de Miguel, nos abraços de Paulo, nas mãos de Samuel, eu disse encolhendo o corpo: quero pegar fogo, explodir, renascer. Fênix, riram. E me recolheram das cinzas.

E é a manhã do natal de 2016. Estou no espelho. Sem inversos ou distorções. É Naná, só. Há um ruído de dor, de rachadura que se fecha, mas lembro-me de me apaixonar. Lembro das fotos de Beliza. Lembro de Beliza: fiz amizade esse ano, pensei. Sim, disse o ciborgue, naquela festa que te obriguei a ir para provar: pode ir. Dei-me oi. Abismo em pleno encanto. Vi translúcidas as montanhas-russas de ontem. Gosto de todas as curvas, quedas, tréguas. O tédio feliz, as euforias de ponta cabeça, os pavores sinceros, as disforias sufocantes. Fizeram e fazem, enfim, o foguete que dispara rumo ao fantástico desconhecido. Sem ré. Abraço-me no corpo e no espelho. Vou para a cama pessoa inteira. Sonhar, sonhar e talvez dormir (os insones sabem).

E, então, despencamos.

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Naná DeLuca

Pensa que todo mundo é poeta quando cai o dia e as lâmpadas acendem. O resto é combinação. Um dia ouviu que “escrever é difícil, mas faz gozar”. E acreditou.