Nany Kipenzi Vieira
4 min readSep 13, 2017

--

Liberdade religiosa e os ataques a terreiros no RJ

“Discorrer sobre liberdade, quem tem direito a ela ou ainda se há liberdade possível em uma sociedade que se baseia em desigualdades torna-se um questionamento relevante sobre um tema atual que é o direito à diversidade.

A liberdade tal qual como conhecemos e evocamos é um conceito datado historicamente. A ideia de liberdade, segundo esse pensamento, também está atrelada a ideia de direitos, especialmente direito a liberdade de expressão, por outro lado, também coloca em tensão os limites destes mesmos direitos, uma vez que as liberdades individuais por vezes resvalam nos direitos coletivos.”

Este é um pequeno trecho do trabalho de final de uma disciplina do mestrado em Psicologia Social que comecei a cursar no semestre passado. Há mais ou menos dois meses atrás, eu me debruçava sobre o tema da liberdade. Naquela ocasião eu usei a liberdade religiosa para tentar traduzir estas tensões que mencionei e para falar do quanto somos atravessadas socialmente por valores coloniais que alimentam nossos pensamentos e práticas no encontro com o outro.

Sendo assim, a forma como entendemos as relações interpessoais, institucionais, sociais e políticas são perpassadas por alguns atravessamentos, entre eles, valores classistas, sexistas, racializados e também religiosos.

O Brasil nasceu como um Estado religioso e hoje, apesar afirmarmos a laicidade nos termos da Constituição, vivemos em uma sociedade religiosa. Este não seria um problema, poderia ser apenas um fato da história do país se houvesse liberdade religiosa, bem como, se houvesse o direito de não crermos em divindades superiores ou mesmo de duvidar da existência de um plano superior, mas não é o que ocorre.

Temos presenciado uma série de movimentos que apontam para uma onda de recrudescimento e conservadorismo, assistimos a um impeachment que não havia base legal para ter sido implementado, acompanhamos o aumento do feminicídio, temos visto opiniões religiosas influenciarem em decisões de Estado como descriminalização do aborto e das drogas, por outro lado vemos o entrave para criminalizar a homofobia, violência que mata todos os dias e observamos também de forma assustadora o crescimento da intolerância religiosa.

O que está em jogo é o ódio a tudo ao que não é hegemônico e a hegemonia é masculina, branca, rica, cristã e heteronormativa. Só no último mês tivemos um decreto no município do Rio de janeiro que dá plenos poderes ao gabinete do prefeito de liberar ou proibir qualquer evento na cidade, inclusive reuniões de cunho religioso em locais público E (atenção ao E) privados, ou seja, voltamos a década de 50 quando as religiões não cristãs eram perseguidas, antes pela polícia, agora há o decreto municipal.

Decreto nº 43.217, de 26 de maio de 2017, do Município do Rio de Janeiro

Art. 2º Para efeito do disposto no § 1º do art. 1º deste Decreto, considera-se evento, todo exercício temporário de atividade econômica, cultural, esportiva, recreativa, musical, artística, expositiva, cívica, comemorativa, social, religiosa ou política, com fins lucrativos ou não, que gere:

I — concentração de público, em áreas abertas ou fechadas, particulares ou não;

II — intervenção em logradouro público, ainda que não enseje a hipótese do inciso I;

Art. 4º Competirá ao Gabinete do Prefeito a outorga da autorização de que trata este Decreto e à Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização — CLF — a ação fiscalizatória sobre as atividades desenvolvidas pelos particulares.

Parágrafo único. A gestão do sistema RIAMFE será exercida pela CLF ou pelo Gabinete do Prefeito.

Nos últimos 30 dias também vimos uma idosa ser apedrejada em razão de sua pertença religiosa, assim como vimos uma criança sofreu a mesma agressão há dois anos atrás. Vimos religiosos no município de Nova Iguaçú, onde ocorreram vários episódios de intolerância religiosa, denunciarem e pedirem respostas a respeito desse tipo de violência e nos últimos dois dias tem circulado um áudio de uma religiosa alertando seus irmãos e irmãs de fé e um vídeo da coação de religiosos de matrizes africanas e depredação de espaço e símbolos sagrados.

Ora, conhecemos o argumento de que a viralização de imagens e áudios via redes sociais não consiste em provas suficientes para tomar providências cabíveis, mas assusta-me perceber que alguém se sente seguro o suficiente para gravar imagens como aquelas que vi e sair impune. Assusta perceber que não há comoção uníssona de religiosos de todas as denominações contra esse tipo de prática, assusta ainda mais perceber que é justamente o discurso religioso de determinadas vertentes que fomentam esses atos.

Estamos aqui nessa encruzilhada, diante de padrões construídos historicamente e socialmente que atravessam nossas subjetividades, diante também da violência, do desrespeito, da barbárie, da submissão do outro, de um povo, de suas práticas sagradas. O que faremos? Como nos posicionamos diante desse caos?

O caos não mora ao lado, não atinge somente ao terreiro alheio, a religião alheia, a quem está fora do padrão. Essa violência fere a todos e todas, porque fere o direito a liberdade, o direito à diferença.

A liberdade (religiosa ou outros tipos de liberdade) não pode ser um privilégio de uma classe de pessoas, ela precisa estar pautada sobretudo no respeito. Precisamos olhar para estes fenômenos de frente e não nos calarmos, precisamos defender o direito a liberdade em todos os níveis.

Em um ano perdemos muito, são golpes e mais golpes e se fecharmos os olhos, podemos acordar amanhã sem o direito a ter direitos.

--

--