Paula Napolião
3 min readAug 6, 2019

“tá um dia lindão lá fora”

Em uma sala de leitura recém-inaugurada de uma unidade de internação socieducativa do Rio de Janeiro, um adolescente olhava pra estante buscando um livro que pudesse levar pro alojamento. Eu observava a cena de longe tentando pensar numa leitura que pudesse indicar. Depois de um tempo, lembrei de ter visto O sol na cabeça, do Geovani Martins, mais cedo naquela estante. Peguei o livro e dei ao menino, explicando de que se tratava o livro e dizendo que ele ia gostar.

Um pouco mais tarde, um dos meus colegas de pesquisa conversava com um adolescente que estava agendado pra ganhar liberdade naquele mesmo dia. “Tá mó dia lindo lá fora, tu vai se amarrar”, meu amigo disse. O garoto abriu um sorriso de orelha a orelha.

Logo em seguida, um outro adolescente entrou na sala acompanhado de uma das técnicas — quase certeza que uma assistente social — pra aguardar sua namorada e sua mãe, que tinham vindo visita-lo. O abraço da mãe e o beijo na namorada eu assisti meio que de rabo de olho pra não constrangê-los.

Depois que saí da unidade fiquei pensando no quanto queria que aquele livro que eu tinha indicado pudesse dar algum sentido à vida daquele menino, que depois me toquei não saber o nome. É ingênuo desejar que um livro consiga mudar vidas? Acho que não. Mas certamente é ingênuo desejar que um livro seja capaz de mudar a vida desses meninos, naquelas circunstâncias.

Uma quantidade enorme de adolescentes está ali cumprindo mandados de atos infracionais que praticaram anos atrás. Isso significa que um adolescente pode estar hoje com 17 anos trabalhando, estudando, seguindo a vida, mas pode ser pego por uma decisão judicial pra cumprir uma medida de internação por algo que fez com 14 anos, por exemplo. Esses casos não são raros, pelo contrário.

Eles não passam por um juiz, não passam por qualquer autoridade que avalie sua vida atualmente pra dizer se aquele mandado deve ser cumprido. E aí são colocados em um depósito de gente, sempre superlotado, no qual passam o dia tentando matar o tempo - nem que tenham que se dopar para isso. As surras e a ausência de atividades educacionais ou de lazer são rotina de unidades que não dão conta de tantos adolescentes.

Como posso pensar que a indicação de um livro é capaz de transformar a realidade de alguém nessa situação? Ler muda vidas, mas quantas vezes ouvi desses adolescentes que eles queriam fazer cursos, que queriam fazer alguma coisa além de mofar ali dentro? Longe de romantizar as histórias; todos ali são sujeitos e têm autonomia e por isso mesmo precisam ser encarados assim. Precisa ser dada a eles a possibilidade de pensar outros caminhos. Por que não pensar em medidas em meio aberto, permitindo que continuem em seus empregos e aulas?

Em outro momento um dos adolescentes me perguntou quanto tempo levava pra fazer uma faculdade de “justiça”. Levei uns segundos pra entender que ele se referia a faculdade de direito. “Não são 8 anos?”. Quando eu disse que eram 5 anos, ele falou que era o que queria fazer um dia.

O livro, o sorriso do adolescente que ganhou liberdade naquele dia, o abraço do outro na namorada. Talvez eu seja sentimental, mas essas coisas ainda me colocam reflexiva. Ainda vejo naque livro, se não uma mudança, um respiro praquele adolescente, mesmo que simbolicamente. Não sei se ele começou a ler o livro, dificilmente voltarei a vê-lo pra saber. Mas queria que ele pudesse respirar, sair dali um pouquinho junto com as palavras do Geovani Martins.

No fim daquele dia ainda vi um outro adolescente ganhando liberdade. A cena daquela mãe dando a mão pra ele e ele saindo com o pé direito daqueles portões de ferro “pra dar sorte”.

Mesmo sendo feito pra não dar certo a gente ainda acredita que alguma coisa possa acontecer no caminho que faça dar.

Vai que.

Paula Napolião

antropóloga. pitacos sobre drogas, saúde mental e segurança pública.