Monólogo

Dilaércio Neto
5 min readApr 5, 2020

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07 de Outubro de 2004 — Imagem registrada pelo telescópio Hubble (NASA)

Tendências são réu, vítima, júri e juíz; o sujeito-ator, crime.

Em meados das minhas lembranças, fora em um subjetivo tribunal do inconsciente, enquanto consequência de uma paradoxal tendência entre o estar desconfortável e o permanecer estático, que, mal-educadamente, nascera um ser azulado, vazio, ácido, volátil e atlético. Reflexo, este, de mim. E assim como Atenas nascera das viscerais ideias de Zeus, ele surgira diante de mim. Surgira diante de mim como o resultado do entrechoque de ideias gerado a partir de um bacanal intelectual entre minhas tantas personalidades. Contudo e apesar de determinante, jamais existira. Seria, entretanto, quem há muito deixei de ser.

Salvo um tendencioso engano, em algum ponto do difuso e pós-moderno processo de matar uma ou algumas personalidades, monologáramos.

“Que cara é essa? Amuse-me, rapaz… ninguém poderá ouvir você. Vamos! Grite, menino!”, interpelara.

Gritei.

Você pode confiar em alguém?” — por que eu estou aqui com você?

“Você não queria essas tendências. I know, I know. Além disso, de acordo com as minhas anotações, você também admite que não as pediu, correto?”, Tossira, sorrira e olhara para mim, como se eu fosse um pequeno macaco de estimação andando de patinete. De repente, sumira e materializara-se ao meu lado. Sussurrara no pé do meu ouvido “vou-fazer-o-que-quiser-com-você”. Fechei os olhos. Prendi a respiração. Com um estalar dos dedos, retomara a minha atenção. “Essas tendências estão com você há bastante tempo, pobre diabo!” — diante do que consideraríamos um rosto, estendera a mão e a soprara passando a outra mão por cima, como se estivesse limpando poeira de um livro antigo — “Vejamos aqui” — e com os dedos, começara a enumerar o que dizia — “elas estão em todas as noites que não deixaram você dormir, blá-blá-blá, e em todas as portas que você bateu com força, tagaragadá, e em todas as brigas que você se perguntou porque iniciou… veja você mesmo, rapaz… está tudo anotado, percebe? E a culpa é de quem? Spoiler alert: completamente sua!”, apontara o dedo bem no meio da minha cara. Caricato.

Oh!, all the weakness within me. É inevitável que a tendência culmine no isolamento, porque precisaremos disso. Por que precisamos disso?

“O que você não entende é que sou a cínica e única forma de existência que pode te ajudar agora. Eu te amo?”, acendera e tragara um cigarro invisível. Estivera se divertindo. “Bem, quem amaria? Quero dizer, você pode tentar o seu melhor, mas o seu melhor não é bom o suficiente, sabe? E assim, sendo bastante otimista” — impressão da minha memória ou o bastardo parodiara Radiohead? — “temos um fun fact: você já estaria morto se não fosse pelo que vemos ao olharmos para o espelho.” — fun fact: eu não me mataria sem você “Mas não se mata. Ironia, não?”

A tendência era me encolher no canto do meu isolamento. Precisei disso.

— Já que insiste em conversar comigo, então gostaria de admitir em alto e bom som que me permiti ser, em resumo, um relacionamento… Quero dizer, é mais fácil fugir, porque essa é a tendência. Mas isso não é bem uma novidade…

“Faça-me o favor, menino! Poupe-me dessa sua autopiedade, por gentileza.”, franzira o cenho e me observara dos pés à cabeça tal qual um policial avaliando um meliante. “Sinceramente, você está horrível com esse cabelo… e olha essa barriga, combina nada com você!” — encostara no meu corpo como se avaliasse as medidas de um terno — “Porém, pensando melhor, você era horrível magricela! Sangue de mio Cristo! É, boy… difícil, difícil… I mean, como alguém pode ser tão desprezível?”, analisara-me com repulsa e, como se voltasse de uma epifania, notara, curioso, o movimento da minha mão que se dirigiu a minha coxa direita. “Eureka! E se você cortasse sua coxa? Seria interessantíssimo um pouco de entretenimento, não achas?”

— Oxe! Vai doer, meu irmão! — Queria chorar de raiva, mas me mantive firme. Como se a minha própria presença fosse impedimento para chorar de raiva ou chorar at all. Um verdadeiro homem moderno...

“Um verdadeiro homem moderno, você!” — esboçara um sorriso sombrio antes de perguntar — “Se sente deslocado neste cubículo?”

Sim.

Aqui, fitara-me com um olhar ainda mais sombrio — “Então saia daqui.”

Não.

“Como é que você diz …” — olhara para cima e coçara o queixo como se custasse refletir — “… a autossabotagem delas!”, lembrara, com o indicador direito apontando para cima. Um verdadeiro sujeito-ator. “Nem faça essa cara de surpresa porque conheço todas as suas personalidades. Todas. Privilégio de ser apenas um espectro.”

Perguntei-me quando me conhecera tão bem. Foi quando senti que urgia a necessidade de catalogar minhas personalidades. Todas.

“Meu tempo é despretensioso. Então, vamos deixar as hipocrisias de lado: o problema é você. Ponto final. End of story. Até a próxima sessão!” — não respondi a acusação — “Não quero mais você. Tão desprezível que até a própria angústia não quer estar perto de você. Tão sedento por atenção que admite por intermédio de criações imaginárias certas idiossincrasias. Enfim, aqui me despeço com um adeus: adeus!”, dirigira-se até a janela e de lá olhara para o cubículo, meticulosamente, dando a entender que interpretaria mais uma de suas verborragias. “Saída dramática em…”, e tropeçara sozinho. Já eu, esbocei um sorriso. Sozinho.

O tropeço da minha consciência diante das minhas contradições proporcionou um baque surdo ao cair janela abaixo. Acordei de um estado catatônico. Notei que um zunido em meus ouvidos minguava, porque uma música estava tocando, aparentemente, durante todo aquele tempo e não havia percebido.

I’d really like to help you, man. I’d really like to help you, man… — Thom York cantarolava para a multidão que havia em mim. Inutilmente, por assim dizer.

Acendi a luz. Apenas a impressão de que apenas eu.

Minha vontade era de sair do fundo do poço, mas o céu fica tão estrelado olhando lá de baixo.

Era fisiológico, mas também era uma goethiana vontade de morrer.

— Eu não sou desprezível. Ponto final. End of story.

Naquele momento, tentava inabilmente tomar meu bem-estar de mãos outras. Maldita hora que entreguei porque quis. Mental note: entrega mais não, por favor.

Por que nos permitimos ser exatamente o que nos interpelam sobre nós mesmos? Para o caso de não nos permitirmos, então e pior ainda, acreditamos por quê?

— Porém e caso fosse possível, abraçaria e ofereceria meu ombro para as vítimas, e os réus, e os juízes, e os júris das consequências dos crimes que habitam dentro de mim. E que a sentença nos seja o doloroso perdão.

Afinal, se não fosse pela persistência de quem fomos querendo continuar sendo quem seríamos, e quem seremos, e quem somos e quem estamos sendo?

[Obrigado pela imagem e por causa disso ter influenciado meu subconsciente, Yago. Coube tudo bem direitinho. Obrigado a você também por mais uma vez ter chegado até aqui. Até a próxima parte!]

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