Guia básico da não-binariedade

Nick Nagari
8 min readJun 19, 2020

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Se você não sabe nada ou bem pouco sobre o tema, esse texto é pra você.

“Que negócio é esse daí? É mulher? Que bicho que é? Prazer, eu sou ARTE, meu querido. Então pode me aplaudir de pé.” — Glória Groove, pessoa gênero fluido, na música “Dona”.

Em primeiro lugar, o que é não-binariedade?

“Não-binário” é um termo guarda-chuva: ele engloba todas as identidades de quem não é completamente homem, nem completamente mulher.

Nisso entra quem é os dois ao mesmo tempo, quem não é nenhum, quem é algo além, quem é um pouco de um e um pouco de outra coisa, etc. Existem várias possibilidades, como por exemplo: agênero (nenhum, como a pessoa que vos fala), bigênero (2 gêneros ao mesmo tempo, não necessariamente homem e mulher) e gênero fluído (flui entre gêneros).

Tem também que prefira se dizer apenas como não-binário mesmo, sem nenhuma subclassificação como essa.

Politicamente, não-binário é o lugar onde todos nós estamos. Não se preocupe em conhecer todos (até porque é impossível, são infinitos), em geral, usamos esses termos mais entre nós do que outra coisa, pra se entender e compartilhar vivências dentro da comunidade.

Uma bandeira listrada amarela, branca, roxa e preta.
Bandeira não-binária.

Pessoas não-binárias também são pessoas trans.

Pessoas trans são pessoas que não são do gênero que foram designadas ao nascer. Assim, pessoas não-binárias também são pessoas trans.

Com isso, podemos pensar que pessoas trans são divididas entre binárias (homem trans e mulher trans) e não-binárias.

É importante ressaltar que, assim como pessoas cis, pessoas trans (num geral) SÃO, e não se identificam como. Então, eu “não me identifico como” agênero, eu sou agênero— tanto quanto uma mulher cis é mulher.

(Parênteses pra explicar que pessoas cis/cisgênero = quem não é trans. Ou seja, mulher cis é quem foi designada mulher ao nascer — geralmente porque nasceu com uma vagina — e de fato é mulher. Eu, ao contrário, fui designado mulher ao nascer porém sou uma pessoa não-binária.)

A grande maioria das nossas pautas são em comum com pessoas trans binárias, já que nossos corpos são vistos como transgressores na mesma lógica que os deles.

Todo gênero foi inventado.

Quando a gente fala de não-binaridade, muita gente desacredita, faz piada, acha que é “abstrato demais” e diz que foi inventado, que é “gênero de tumblr”. Mas aí eu te pergunto: que gênero que não foi inventado? Quem foi ou o que foi que te disse que você é mulher ou que você é homem? Sabia que termos a ideia de gênero de forma binária não é comum em todas as culturas?

Apesar de isso ser dito como natural, não tem nem muito tempo que esses termos foram cunhados da forma que vemos hoje. Por exemplo, Thomas Laqueur quando fala na teoria one-sex-model (modelo de um sexo), explica justamente sobre como, até os séculos XVIII e XIX, a noção que se tinha era que existia apenas um “sexo”.

Ou seja, a ciência acreditava que o corpo que hoje é visto como corpo masculino era o único, e o corpo que hoje é visto como feminino era só uma versão não desenvolvida dele. Logo, por exemplo, ovários e clitóris não tinham nome, eram apenas parte de um “testículo não desenvolvido”.

Então, só depois que essa ideia foi desmentida é que começaram a ver corpos com dois “sexos” separados, ainda sim excluindo pessoas intersexo — que são exatamente pessoas cujo o corpo biologicamente não se encaixa nessa divisão binária, e que lutam pra que isso seja reconhecido. Pessoas intersexo são o “I” da sigla LGBTQI+, e algumas das pautas políticas delas se intersecionam com as nossas, como por exemplo a existência de um 3º gênero nos documentos oficiais do governo (que inclusive já é lei na Alemanha desde 2018).

Todo gênero, enquanto rótulo, foi inventado em algum momento pra ser associado a corpos. A questão é perceber que manter o sistema de gênero da forma binária que ele é hoje contribui pra todas as opressões que ele sustenta; e que uma das formas legítimas de fragilizá-lo é a vivência de identidades que ele não alcança, que provam que ele tá longe de ser concreto como quem se beneficia dele diz.

As nossas identidades soam mais abstratas do que as outras porque elas não estão dentro desse sistema, mas isso não é um problema nosso — é dele, que é feito pra colocar pessoas em caixinhas cis e heteronormativas.

Pessoas não-binárias são diversas.

Não existe uma forma única de comportamento, de tratamento e muito menos de expressão de gênero (ou seja, como nós nos aparentamos, nos expressamos, nos vestimos, etc). Até porque isso é sobre identidade, aparência é só a expressão do que já somos.

Tem gente que acha que todes nós sonhamos com uma aparência “neutra”, andrógina, que “não dê pra saber” se é mulher ou homem. É possível que isso aconteça, mas não é uma regra — até porque isso parte da ideia de que todos temos um gênero voltado pra neutralidade, o que não é verdade. Muitas vezes apresentamos aspectos considerados femininos ou masculinos, muitas vezes temos a intenção de ter uma expressão de gênero mais inclinada pro que se considera de um gênero binário, etc.

A pluralidade é muito grande, você pode conhecer uma outra pessoa não-binária que seja completamente diferente de mim. E tá tudo bem. Não devemos ser cobrados pra ter uma aparência x ou y.

uma foto de Sam Smith, uma de Bryanna Nasck e uma minha, com pequenas descrições da profissão de cada um de nós.
Exemplos de pessoas não-binárias.

Como se referir a uma pessoa não-binária que eu convivo? Ele? Ela? Elu?

Muitas pessoas acham que todas as pessoas não-binárias usam pronomes neutros, ou que preferimos que não demarquem gênero; mas novamente, não tem regra, varia de pessoa pra pessoa. É muito importante respeitar o pronome que pessoas trans usam.

O que você pode fazer é prestar atenção na forma que a pessoa se refere a si mesma, veja se isso está em alguma rede social (veja mais sobre isso aqui) ou pergunte mesmo: “Fulane, como eu devo me referir a você?” ou “Quais pronomes você usa?”. Perguntar não ofende!

Eu, por exemplo, uso apenas pronomes masculinos. Isso não quer dizer que eu sou um homem, só quer dizer que eu me sinto confortável sendo chamado dessa forma. Então, você deve falar de mim como “ele”, por exemplo: “Nick é lindo”, “o que ele falou…”. Me chamar no feminino é o que a gente costuma chamar de misgender, ou seja, erro de pronome (em tradução livre), já que não atendo por esses.

Também é bom reforçar que, como não sou um homem, não faz sentido se referir a mim como “aquele garoto”, “esse menino”, “um cara”. Eu sou “aquela pessoa”, só. Ou então “um não-binário”.

Sobre pronomes neutros: não use X e o @. Há anos nós não os utilizamos mais, porque eles não são pronunciáveis e atrapalham pessoas com deficiência visual que usam leitor de tela. O ideal é usar o sistema “elu”, com a terminação “-e”, como por exemplo “Fulane é linde”, “o que elu disse…”.

Clique aqui pra ver um manual que explica perfeitamente o sistema, por que e como usá-lo e dá dicas. É super tranquilo de ler, vale muito a pena!

Pessoas não-binárias não são “menos trans” que as binárias.

Geralmente as pessoas veem a gente dessa forma por acharem que nós não queremos mudar nossa aparência.

E é errado, porque não se deve assumir que a gente não quer mudar de nome, fazer cirurgias, tomar hormônios ou que não podemos ter disforia — porque sim, isso também acontece com a gente. Inclusive, muitas pessoas não-binárias que o fazem são vistas como homens ou mulheres trans, justamente por essa imagem que não-bináries são cis “querendo brincar de ser trans”.

Mas o mais importante: não assuma que isso faz de alguém mais ou menos trans. Existem pessoas trans (binárias ou não) que não tem disforia, que não querem passar por hormonização e/ou não desejam fazer cirurgias e elas não devem ser invalidadas. Não existe uma métrica de transgeneridade. Pensar dessa forma é reproduzir um discurso médico e completamente estereotipado de que toda pessoa trans acha que nasceu no corpo errado (sic). Por que o corpo certo é o cisgênero? Quem disse que a gente tem ou quer se ver na lógica de vocês?

Podemos ter qualquer sexualidade.

Existem nomenclaturas pra quem se atrai apenas por um gênero que não demarcam o gênero de quem se atrai, por exemplo, ginessexual (atração por mulheres). Algumas pessoas não-binárias se sentem confortáveis com ela, mas também é comum que pessoas alinhadas ao feminino nessa situação se reivindiquem como lésbicas, pela identificação com a vivência e pela carga história que o termo tem. O mesmo acontece com os termos androssexual (atração por homens) e gay.

Além disso, existem, é claro, pessoas não-binárias bissexuais, pansexuais e assexuais.

A bissexualidade não exclui pessoas não-binárias.

Existem vários de nós que somos bissexuais (como eu), entendendo que a bissexualidade nunca excluiu pessoas trans, nem binárias nem não-binárias.

A bissexualidade é atração independente do gênero, assim como a pansexualidade. Falei mais sobre isso aqui.

Existem homens não-binários e mulheres não-binárias.

Isso tem a ver com a parte do “completamente” da definição. Acontece quando a pessoa é alinhada a algum gênero, como por exemplo sendo mulher e neutro, homem e neutro, ou algo assim; e aí se sente confortável com a palavra mulher/homem e ao mesmo tempo é não-binária.

Quem está falando sobre isso?

Três indicações pra não dizer que foi difícil de achar, mas sintam-se a vontade pra pesquisar mais:

Bryanna Nasck: a maior youtuber não-binária do Brasil, gamer e empreendedora, Bryanna discute, desde 2011, assuntos complexos como gênero, sexualidade e saúde mental de forma simples e bem humorada.

Cup: uma pessoa agênero, assexual e pan que faz vídeos com foco em entretenimento, blogueiragens, diversidade e tudo mais que é de seu interesse.

Nick Nagari: agênero, carioca, professor em formação pela UFF, idealizador do Quem Bindera e produtor de conteúdo sobre bissexualidade e transgeneridade, de uma perspectiva negra, gorda e não-binária.

Como incluir pessoas não-binárias na prática?

É importante sempre pensar em formas de inclusão, disseminando nossas ideias e pautas, explicando (ou mandando esse texto pra explicar) quando uma pessoa não souber quem somos.

Muitas vezes, o reforço ao binarismo vem através da fala. Por exemplo, ao invés de “meninas e meninos”, vamos praticar falar “pessoas”? Ao invés de “alunos e alunas”, podemos falar estudantes.

Não sabe o pronome de alguém e quer elogiar? Ao invés de falar “linda/o”, você pode falar “que pessoa linda!”: neutro, fácil de entender, não corre o risco de ofender ninguém.

Em assuntos específicos de corpos: não são só mulheres que menstruam, por exemplo, e nem toda mulher menstrua. Então, ao invés de “mulheres” ou “mulheres cis e homens trans”, podemos falar especificamente “pessoas que menstruam”: acerta em cheio, não exclui ninguém e é fácil de entender.

É papel de todo mundo pensar em como a nossa sociedade é estruturada no binarismo, como absolutamente tudo é dividido em “para homens” e “para mulheres”, gerando a misoginia e o apagamento de pessoas não-binárias. É urgente que criemos narrativas pra além disso.

Obrigado por ler até aqui! Compartilhe esse link com quem você acha que pode se interessar e nas suas redes sociais também. Quero muito colocar esse assunto em pauta. Conto com você :)

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Nick Nagari

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