Apostila de Redação do ENEM

gratuita e completa!

niva
61 min readJan 27, 2018

A base de uma boa redação é um bom argumento. Sem o argumento, não adianta nada usar a crase direitinho ou citar filósofos que morreram dois mil anos atrás. Tudo isso só serve pra dar aquela caprichada na sua argumentação, que nem granulado em cima do brigadeiro; só que granulado nenhum conserta um brigadeiro queimado.

Quer ver só? Dá uma olhada em como as redações do ENEM são corrigidas:

quem disse que professor de redação não sabe fazer conta

A nota da redação, que pode chegar até 1000 pontos, é calculada a partir de cinco critérios, cada um valendo 200: domínio da escrita formal, mecanismos linguísticos, estrutura e conhecimentos, argumentação e proposta de intervenção.

Domínio da Escrita Formal, como o próprio nome já diz, confere se o texto tá dentro das regrinhas do português padrão. O corretor vai olhar sua ortografia, concordância, pontuação, uso de maiúsculas, etc — o básico. A menos que você teja tão acostumada com o zap que esqueceu como se usa acento, não é muito difícil pegar uns 120 pontos aqui.

Já o critério Mecanismos Linguísticos continua avaliando seu português, mas em outro aspecto; aqui a questão não é só se você tá escrevendo certinho, mas se as suas frases fazem sentido juntas. Se eu disser “Maria estava feliz. Ela escolheu o vestido amarelo”, essas frases estão conectadas? Não. E se eu disser “Maria estava feliz, e pra exibir sua felicidade, escolheu o vestido amarelo”? Agora sim dá pra entender o que é que uma frase tem a ver com a outra. O mesmo vale pra sua redação! Vamos supor, então, que você também tire 120 pontos aqui; até agora, sua nota é 240.

Agora a coisa começa a complicar: Estrutura e Conhecimentos avalia dois aspectos da sua redação que não têm nada a ver com português. Primeiro, o corretor confere se você seguiu o modelo dissertativo-argumentativo; ou seja, se o seu texto tá dentro do tema, dividido em introdução, desenvolvimento e conclusão, e se ele tem argumentos. Essa é a parte da estrutura. Já a parte do conhecimento tem a ver com você mostrar que entende do problema, reforçando seu argumento com referências: exemplos, estatísticas, citações, essas coisas.

Se o critério anterior conferiu se você tem argumentos e se reforçou seus argumentos com referências, aqui o negócio é olhar a Argumentação em si. Seu raciocínio é claro? Suas ideias tão bem explicadas? Não adianta chegar na redação sobre violência contra a mulher e falar que bater em mulher é errado. Que é errado, todo mundo sabe! (Quem dera.) Seu argumento tem que ir além.

Por fim, o último critério é o da Proposta de Intervenção. Todo mundo faz o último parágrafo na pressa, escrevendo qualquer coisa pra terminar logo, e depois reclama que a nota vem baixa. Claro que vem baixa! A proposta vale, sozinha, 200 pontos, só que pra chegar aos 200 ela precisa ser bem detalhada e tar amarradinha nos argumentos. Se você explicou a violência contra a mulher dizendo que é resultado do machismo, então sua proposta precisa atacar o machismo! Parece óbvio, mas se fosse óbvio mesmo eu não taria escrevendo essa apostila. Eu tenho mais o que fazer.

Resumindo: teu português só te garante uns 240 pontos — 400, no máximo, se você usar um monte de conectivo chique, tipo “Todavia” e “Ademais”, e tiver o vocabulário de um imortal da Academia de Letras. Todo o resto da nota vem dos critérios que analisam seu argumento!

Isso pode parecer má notícia, mas não é. Matérias como História ou Biologia vão te pedir pra decorar, sei lá, quem foi Marquês de Pombal, e aí você decora e o negócio não cai na prova. Fica aquela frustração de ter estudado “à toa”. Já a redação não te avalia por sorteio — ela é um teste de habilidade. Toda prova de redação avalia seu português e seus argumentos. Sempre. Não existe chance de não cair proposta de intervenção, ou de não pedirem pra você argumentar. E já que você sabe exatamente no que vai ser avaliada, todo segundo que você passa treinando redação ajuda a aumentar sua nota. Eu sei disso porque funcionou comigo.

Da primeira vez que eu tentei o vestibular, no fim do ensino médio, minha nota na redação foi 580 — bem ruinzinha. Acabei não passando no curso que eu queria. Quatro anos depois eu resolvi tentar de novo, só que praticando redação uma vez por semana. Aí eu tirei 920 e passei em Direito na USP.

Se você, como eu, não fez ensino médio num colégio particular, não pode pagar cursinho e não tem muito tempo e memória livres, a sua melhor chance de passar na faculdade é tirar mais de 900 na redação — caprichando no argumento. E foi pra isso que eu criei a apostila.

Beleza, então já que a gente sabe que o importante é a argumentação, vamo começar do começo: O que é argumentar?

Filisteus. Basquiat, 1982

O QUE É ARGUMENTAR?

Se o autor faz alguma afirmação, procurando convencer o leitor da verdade do que se está afirmando, estamos diante de um argumento.

Essa é definição de argumento do autor Cezar Mortari, um cara que você só precisa saber quem é se tiver prestando o ENEM pra cursar filosofia. Segundo Mortari, argumentar é tentar convencer alguém de que uma afirmação é verdadeira. Mas como que é você convence alguém de alguma coisa?

Digamos que uma mãe mande a filha desligar a tevê porque tá na hora de dormir, e a filha diz que não precisa dormir agora; que pode assistir desenho até tarde. Essa é uma afirmação: “eu posso assistir desenho até tarde”. Olha, eu não sei como você foi criada, mas lá em casa minha mãe tacaria um chinelo na minha cabeça por responder assim. Então eu teria que ser mais diplomática: eu posso assistir desenho até tarde porque amanhã não tem escola.

Essa é a diferença entre uma afirmação e um argumento: a explicação. Nós explicamos uma afirmação pra que ela seja mais convincente. Você precisa comer verduras porque faz bem pra saúde. A escravidão é injusta porque liberdade é um direito humano. Eu prefiro dar três exemplos porque melhora o ritmo do parágrafo.

A fórmula mágica do argumento

Seguindo essa lógica de que explicar uma afirmação torna ela mais convincente, quanto mais se explica uma afirmação, mais convincente ela é. “Você precisa comer verduras porque faz bem pra saúde.” Ok. Mas por que faz bem pra saúde? Porque verduras são ricas em nutrientes, como fibras e vitaminas.” Agora a minha afirmação é mais convincente ainda! E dá pra continuar explicando: “fibras e vitaminas fazem bem pra saúde porque são nutrientes essenciais ao bom funcionamento dos órgãos.” Quanto mais fundo você for, mais convincente é a afirmação original; só de escrever esse parágrafo me deu vontade de almoçar salada. (Não vou fazer isso)

Mas aí você me diz: pera, eu nunca vi correção pedindo pro argumento ser mais convincente. O ENEM leva isso em consideração? Leva, só que sob outro nome — o temido senso comum.

Não existe um argumento que, em si, seja senso comum. Senso comum não é a mesma coisa que “clichê”. Não tem problema nenhum você seguir uma linha de raciocínio que não é, digamos, um estouro de criatividade. Quer ver só? Olha esse parágrafo de uma redação nota 1000, de 2016, do tema Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil:

Em primeiro plano, é necessário que a sociedade não seja uma reprodução da casa colonial, como disserta Gilberto Freyre em “Casa-grande e Senzala”. O autor ensina que a realidade do Brasil até o século XIX estava compactada no interior da casa-grande, cuja religião oficial era católica, e as demais crenças — sobretudo africanas — eram marginalizadas e se mantiveram vivas porque os negros lhes deram aparência cristã, conhecida hoje por sincretismo religioso. No entanto, não é razoável que ainda haja uma religião que subjugue as outras, o que deve, pois, ser repudiado em um Estado laico, a fim de que se combata a intolerância de crença.

No parágrafo acima, o autor argumenta que as religiões africanas são marginalizadas desde os tempos coloniais, e que isso não é razoável. Agora me diz: esse argumento é muito criativo? Não. É um argumento muito original? Não! Todo mundo sabe que a intolerância religiosa com o candomblé tem a ver com escravidão. Se um argumento senso comum fosse um argumento clichê, o autor tinha perdido ponto — mas ele tirou 1000. Então o que é senso comum?

o coraçãozinho é parte importante da argumentação

Quando se diz que um argumento é senso comum, o que se quer dizer é que ele não está muito bem explicado. Vamos pegar esse exemplo aí da intolerância. Finge que o autor escreveu assim:

Em primeiro plano, vê-se que a intolerância contra religiões afro-brasileiras tem suas raízes nos tempos coloniais. No entanto, não é razoável que ainda haja uma religião que subjugue as outras, pois esta é uma forma de preconceito.

A ideia é exatamente a mesma de antes, mas aqui ela cai no senso comum. E por quê? Porque eu afirmei, mas não expliquei! Volta no parágrafo original e olha a diferença. Lá, o autor explica que as religiões africanas eram marginalizadas porque a religião oficial, dos escravagistas, era a católica, e que a intolerância deve ser combatida porque o Estado é laico. Ele até usa uma referência! Já no segundo parágrafo, nada disso é dito; eu só afirmo e deixo pra lá, como se eu achasse que você já concorda comigo.

Esse é o argumento senso comum — o que acha que não precisa convencer ninguém. Comum, aqui, não quer dizer simples, ordinário. Quer dizer compartilhado. Senso comum: o argumento que só funciona se nós já compartilhamos a mesma opinião.

“porque sim” não é argumento!

Em geral, os argumentos que mais caem no senso comum são os que explicam um fenômeno (como a violência contra a mulher, ou a intolerância religiosa) com base em um preconceito (como o machismo, ou o racismo), porque é muito fácil se satisfazer com isso, já que todo mundo concorda que o problema é preconceito e que o preconceito é ruim. Mas se só o que eu digo é que a violência contra a mulher é fruto do machismo, eu ainda não expliquei direito minha afirmação. Como o machismo oprime a mulher? O que leva o machista a agredir uma mulher? Por que o machismo existe? Nada disso foi explicado. Aí eu meto um pedido de “conscientização” no último parágrafo e pronto, fica uma redação senso comum, nota 520.

Então o único jeito de fugir do senso comum é explicando tudo que você afirma, principalmente o que te parecer óbvio. Óbvio é tudo que nós aceitamos sem explicação. Argumentos que não explicam o óbvio são argumentos medíocres, que se apoiam no que já está estabelecido. Todo mundo sabe que a causa da violência contra a mulher é o machismo, então não precisa explicar mais nada. Claro que precisa! Por isso que é uma REDAÇÃO, não uma questão de múltipla escolha. Não é a resposta que interessa, é a explicação!

E já que é a explicação que importa, não existe resposta certa. Você pode dizer que o machismo valoriza comportamentos agressivos, e faz o homem se sentir mais homem quando bate na mulher; ou que o machismo estimula o controle da mulher, tanto por vias econômicas e psicológicas quanto físicas. Tanto faz! O ENEM não está procurando o argumento certo — o que a gente quer é um argumento convincente. E pra convencer, só explicando.

Então vamos exercitar isso.

EXERCÍCIO DE ARGUMENTAÇÃO — I — CRIANDO ARGUMENTOS

Este primeiro exercício começa com uma afirmação bem simples: “Não-sei-o-quê é bom”. Pode ser qualquer coisa: viagem ao espaço, Bolsa Família, acordar às duas da tarde. Pro meu exemplo, eu vou usar “Maçãs são boas”, pra ver se minhas alunas pegam a dica e me trazem uma maçã na aula.

AFIRMAÇÃO: Maçãs são boas.

Essa é minha afirmação original. Pra construir um argumento a partir da minha afirmação eu preciso explicá-la, dar um porquê; do contrário, eu estou só afirmando, não argumentando.

Maçãs são boas PORQUE fazem bem à saúde.

Essa é a minha primeira explicação: elas fazem bem à saúde. Ótimo! Nossa afirmação já virou um argumento, mas ele ainda é bem senso comum. Pra que ele fique mais convincente, precisamos aprofundá-lo. Por que maçãs fazem bem à saúde?

ARGUMENTO 1: Maçãs são boas PORQUE fazem bem à saúde PORQUE combatem o tártaro e são ricas em nutrientes.

Beleza, já temos um argumento mais desenvolvido. Não se preocupa com a repetição do “porque”; a gente cuida disso depois, na parte de Mecanismos Linguísticos.

Agora eu vou construir um segundo argumento a partir da afirmação original. Como nós vimos, pra construir um argumento é só explicar a afirmação — dar um porquê. Então a mesma afirmação, com uma outra explicação, é um outro argumento.

Maçãs são boas PORQUE são gostosas.

Aí aprofundamos o argumento:

ARGUMENTO 2: Maçãs são boas PORQUE são gostosas PORQUE têm um gosto doce bem natural, sem ser enjoativo.

Pronto! Ao fim desse exercício, temos dois argumentos, que é o número perfeito pra uma redação.

Agora é sua vez. Vou sugerir algumas afirmações, mas você pode criar as suas, se preferir. O exercício serve pra qualquer coisa.

AFIRMAÇÃO 1: Escrever uma redação por semana é bom.

a) ARGUMENTO 1: Escrever uma redação por semana é bom porque…

b) ARGUMENTO 2: Além disso, escrever uma redação por semana é bom porque…

AFIRMAÇÃO 2. Viajar é bom.

a) ARGUMENTO 1: Viajar é bom porque…

b) ARGUMENTO 2: Além disso, viajar é bom porque…

AFIRMAÇÃO 3. Hospitais públicos são bons.

a) ARGUMENTO 1: Hospitais públicos são bons porque…

b) ARGUMENTO 2: Além disso, hospitais públicos são bons porque…

AFIRMAÇÃO 4: Energia elétrica é boa.

a) ARGUMENTO 1: Energia elétrica é boa porque…

b) ARGUMENTO 2: Além disso, energia elétrica é boa porque…

AFIRMAÇÃO 5. Democracia é boa.

a) ARGUMENTO 1: Democracia é boa porque…

b) ARGUMENTO 2: Além disso, democracia é boa porque…

E aí, conseguiu terminar os exercícios? Se você teve dificuldade, não se preocupa. Demora um pouquinho pra gente se acostumar a explicar o que diz, mas com o tempo cê pega o jeito. É só praticar! E falando em prática, vamos agora à sua primeira proposta de redação.

PROPOSTA DE REDAÇÃO — I — SÉRIE PREFERIDA

Essa é uma proposta bem simples, só pra você exercitar mais sua argumentação: eu quero que você escreva um texto me convencendo a assistir sua série preferida. Tenta não se importar muito com a estrutura, por enquanto; o importante é incluir dois argumentos diferentes, bem explicados, pra me convencer.

Quando você terminar sua redação, faça uma pausa — a apostila não é feita pra ser lida inteira de uma vez só. Vê um desenho aí, come um lanche, sei lá. Faz alguma coisa de jovem. Amanhã você volta.

Dante, Virgílio e Caronte atravessando o rio Estige. Gustave Doré, 1861

COMO ARGUMENTAR NA REDAÇÃO DO ENEM?

Agora você já sabe o básico de como convencer alguém, mas o nosso objetivo aqui é melhorar sua nota no vestibular— e é claro que não dá pra chegar escrevendo que “respeitar a religião do outro é bom”. Seu argumento precisa ser mais sofisticado. Então como é que faz pra argumentar no ENEM?

Se eu te der uma cesta de ingredientes e disser me faz um bolo, sem nenhuma instrução, é capaz que você entre em pânico. Com a redação é a mesma coisa. A gente chega na prova, olha os textos, olha o tema, olha a folha em branco e surta — não sabe por onde começar.

“mano eu nem sei o que é isso”

Por isso é que na hora de fazer um bolo a gente usa uma receita, que te diz direitinho quais são os ingredientes e qual tipo de fermento é o certo, ou sei lá. Algo assim. Devia ter escolhido outra analogia, eu não sei fazer bolo. Enfim, é a receita que te guia; então eu vou te dar uma receita de como fazer redação no ENEM, pra você seguir e não surtar.

Minha receita usa cinco perguntas:

Qual é o problema?

Por que isso é um problema?

Por que esse problema existe?

O que apoia meu ponto de vista sobre o problema?

Como é que eu resolvo o problema?

Vamos começar pela primeira.

1. QUAL É O PROBLEMA?

Você já sabe que o ENEM quer que a gente explique nosso ponto de vista, mas não é pra explicar qualquer ponto de vista. Cê não pode concluir uma redação sobre mobilidade urbana falando “Portanto, vê-se que a série How I Met Your Mother é claramente superior a Friends”. Se o corretor lê um negócio desses ele zera tua nota, e não é porque ele é fã de Friends; é porque isso é fuga do tema. Então nossa primeira tarefa aqui, antes de qualquer coisa, é descobrir do que é que a gente tem que falar. Ou seja — qual é o problema?

Vejamos o tema do ENEM 2018:

???

Muita gente fez essa redação toda direitinha, montando a estrutura perfeita, deixando tudo bem explicado e citando um monte de filósofo. Aí quando foi olhar o resultado em janeiro só faltou morrer do coração, porque a nota ficou ali pelos 460. O que houve? Pra nota vir tão baixa, só pode ter sido uma coisa: a redação não abordou o problema!

Toda redação do ENEM gira em torno de um problema — uma questão social, complexa, sem resposta fácil. Cê nunca vai abrir a prova e ver o tema Caminhos para impedir um gato de andar no teclado do notebook enquanto você escreve uma apostila. Tem que ser algo mais amplo, mais sério. Por exemplo:

enem também é poesia

Em 2014, o tema do ENEM foi esse aí de cima: publicidade infantil em questão no Brasil. O assunto tava na boca do povo porque até então a publicidade infantil era liberada, mas aí o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) decidiu que essa prática é abusiva, e proibiu. Como é um problema social, complexo e sem resposta fácil, virou tema do ENEM.

Mas o que é “publicidade infantil”?

Pra identificar o problema, sua primeira estratégia tem que ser a definição. Você circula cada palavra-chave do tema, isto é, as partes importantes, e aí define cada uma, igual no dicionário. O que é publicidade? Publicidade é propaganda, divulgação de produtos. E infantil? É alguma coisa pra criança. E Brasil? Brasil quer dizer que o problema tá no nosso país (e não em outros).

Então vamo juntar essas definições e reescrever o tema:

A importância de definir cada palavra do tema é a mesma de olhar um endereço no Maps antes de sair de casa: só dá pra chegar no lugar certo se você sabe exatamente pra onde tá indo. Nesse tema aí, dá pra falar de machismo em propaganda de cerveja? Não. Propaganda de cerveja não é pra criança. Cê tá indo pro lugar errado. E do efeito que a tecnologia tem sobre o desenvolvimento infantil, incentivando sedentarismo? Não. Isso não é publicidade. E se eu quiser focar só na discussão que tá rolando sobre isso nos Estados Unidos, eu posso? Não. O ENEM quer que você fale do Brasil.

Não adianta chegar num lugar parecido, ou num lugar relacionado ao tema. Se o objetivo da redação é argumentar a respeito de um problema, o mínimo que o ENEM espera de você é que tu saiba qual problema é esse. Quem não tira dez minutinhos no início da prova pra pensar sobre isso corre o risco de desperdiçar um ano inteiro de estudo.

Então vamos aos exercícios.

EXERCÍCIO DE ARGUMENTAÇÃO — II — ENTENDENDO O PROBLEMA

Seu segundo exercício é o seguinte: você vai reescrever o tema usando sinônimos ou expressões do mesmo sentido, que nem eu fiz ali em cima. Tanto faz as palavras que você usar, desde que te ajudem a entender melhor o problema. A partir disso, você vai escolher, dentre as opções apresentadas, qual argumento está fugindo do tema, e explicar por quê.

Pro meu exemplo, eu vou usar o tema de 2018:

vamo botar a mesma imagem que o orçamento tá baixo, blza

A equipe que escreveu essa frase não é que nem a gente, que fica enchendo linguiça no texto botando um monte de palavra bonita pra ver se ganha mais ponto. Na frase acima, cada palavra tem uma função. Tudo tá ali por um motivo. Se você deixar de falar da manipulação, ou do comportamento, ou dos dados, ou da internet, cê já desviou um pouquinho do tema. Ou seja — pra falar da coisa certa, não pode deixar nada faltando.

Tá, mas e se eu não souber o que tal palavra significa? Vamos supor que eu não saiba o que são dados. Aí é que entra o texto motivador, seu MELHOR e ÚNICO amigo. Vejamos o Texto I:

Às segundas-feiras pela manhã, os usuários de um serviço de música digital recebem uma lista personalizada de músicas que lhes permite descobrir novidades. Assim como os sistemas de outros aplicativos e redes sociais, este cérebro artificial consegue traçar um retrato automatizado do gosto de seus assinantes e constrói uma máquina de sugestões que não costuma falhar. (…) De fato, plataformas de transmissão de vídeo on-line começam a desenhar suas séries de sucesso rastreando o banco de dados gerado por todos os movimentos dos usuários para analisar o que os satisfaz.

Se o banco de dados é gerado por movimentos dos usuários, o que são dados? São informações sobre o seu uso da internet; uma espécie de histórico do que você clica, ouve e assiste. É a partir dessas informações que o site te conhece melhor e aprende o seu gosto.

calma, ele só quer te conhecer

Depois de ler o tema, circular cada palavra-chave e procurar o significado nos textos, eu tou pronta pra reescrevê-lo. Vamo lá:

Ótimo! Agora eu já entendo melhor o problema. Vamos agora à segunda parte do exercício, que é apontar, entre duas opções de argumento, qual delas se encaixa no tema e qual está em fuga.

ARGUMENTO 1: As fake news vêm se espalhando em redes sociais, influenciando o resultado de eleições com suas mentiras políticas.

Pra decidir se um argumento se encaixa no tema, lembre-se de que ele tem que se encaixar INTEIRO, não só a uma parte! O argumento acima fala de influência, de internet, de usuários… mas não fala de dados. Isso aí não tem nada a ver com monitoramento de informações pessoais. Logo, estamos fugindo do tema.

ARGUMENTO 2: À medida que serviços de streaming de música e filmes são personalizados de acordo com o gosto do usuário, detectado por meio da fiscalização de seus hábitos, tende-se a uma estagnação cultural — o indivíduo só consome a arte que já está acostumado a consumir.

Este argumento, por outro lado, se encaixa perfeitamente ao tema.

Agora é sua vez.

TEMA 1: Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil.

Defina cada palavra-chave, reescreva o tema e aí selecione o argumento que se ENCAIXA nele. (Link pros textos motivadores)

a) ARGUMENTO 1: Pessoas com deficiência sofrem discriminação nas escolas, já que as famílias dos estudantes não os preparam para aceitar quem é diferente.

b) ARGUMENTO 2: Apesar da oferta do ensino em Libras ser lei no Brasil, poucas escolas oferecem esta e outras formas de apoio ao aluno surdo, efetivamente o excluindo da educação.

TEMA 2: Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil.

Defina cada palavra-chave, reescreva o tema e aí selecione o argumento que se ENCAIXA nele. (Link pros textos motivadores)

a) ARGUMENTO 1: A intolerância religiosa é epidêmica. Por todo o mundo, grupos fundamentalistas, como o Estado Islâmico, buscam impor sua religião por meio da força. Este problema exige uma reflexão global a respeito da liberdade religiosa.

b) ARGUMENTO 2: No Brasil, a umbanda e outras religiões afro-brasileiras vêm sendo discriminadas desde a escravização do povo africano, um fenômeno cujas repercussões também devem ser abordadas para que possamos combater a intolerância religiosa.

TEMA 3: A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira.

Defina cada palavra-chave, reescreva o tema e aí selecione o argumento que se ENCAIXA nele. (Link pros textos motivadores)

a) ARGUMENTO 1: A persistência da violência contra a mulher, mesmo com o advento de leis como a Maria da Penha, nos diz que este problema está enraizado no machismo da cultura brasileira.

b) ARGUMENTO 2: A violência doméstica é um fenômeno que atinge casais de todas as idades, sendo consequência de relacionamentos abusivos, cuja dinâmica envolve agressão física e psicológica.

TEMA 4: As alternativas para a diminuição do desperdício de alimentos no Brasil.

Defina cada palavra-chave, reescreva o tema e aí selecione o argumento que se ENCAIXA nele. (Link pros textos motivadores)

a) ARGUMENTO 1: Para diminuir o desperdício, programas de televisão podem informar suas audiências de que estes alimentos “feios” — tortos, defeituosos — são igualmente comestíveis e nutritivos.

b) ARGUMENTO 2: O desperdício no Brasil pode ser remediado, por exemplo, por meio da redução, da reutilização e da reciclagem, princípios que minimizam a produção de lixo e os seus efeitos sobre o meio ambiente.

TEMA 5: Consequências da busca por padrões de beleza idealizados.

Defina cada palavra-chave, reescreva o tema e aí selecione o argumento que se ENCAIXA nele. (Link pros textos motivadores)

a) ARGUMENTO 1: A cultura de que o emagrecimento é sempre positivo, seja como for alcançado, é a principal culpada pelas milhares de mortes ao ano de jovens anoréxicos, cujo organismo se enfraquece com a desnutrição.

b) ARGUMENTO 2: Ao se comparar com os padrões de perfeição estética, o jovem percebe traços individualizantes da sua aparência, como sardas e sobrancelhas grossas, como defeitos, o que o leva à baixo autoestima e, frequentemente, à depressão.

Agora que você já sabe identificar um problema, você precisa entendê-lo. Pra isso, eu uso duas perguntas: Por que isso é um problema? e Por que esse problema existe?

Henri Cartier-Bresson

2. POR QUE ISSO É UM PROBLEMA?

O que faz do problema um problema é o seu efeito negativo. Ele precisa fazer mal a alguém, de alguma forma, pra que você queira resolvê-lo.

Vamos supor que você esteja em casa agora, sentada na sua escrivaninha, lendo a apostila. Cê tá sentindo alguma dor? Febre? Nariz escorrendo? Seu braço esquerdo apodreceu e caiu no chão? Não? Então talvez você não tenha nenhum problema de saúde. Assim como as doenças, que nós percebemos a partir dos sintomas, os problemas sociais são identificados por seus efeitos negativos — isto é, pelo que eles prejudicam.

imagens de dor e sofrimento

Digamos que o tema da redação seja Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil. Você sabe que o problema é a educação dos surdos, e que isso tem que ser resolvido — mas primeiro você precisa mostrar que é um problema, apontando os efeitos negativos. Qual é o efeito negativo da educação atual? Que mal ela tá fazendo?

Dá uma olhada nesse parágrafo de outra redação nota 1000:

Contudo, observam-se algumas distorções para essa garantia educacional. Infelizmente, os surdos são alvo de preconceito e são vistos erroneamente como incapazes. Isso é frequentemente manifestado na forma de violência simbólica, termo do sociólogo Pierre Bourdieu, que inclui os comportamentos, não necessariamente agressivos física ou verbalmente, que excluiriam moralmente grupos minoritários, como a pessoa com deficiência (…) as vítimas dessa agressão simbólica tenderiam a se isolar, gerando, por exemplo, evasão escolar e redução da procura pela qualificação profissional e acadêmica por esses deficientes.

Se você se sentiu intimidada com a linguagem do trecho acima, não se preocupe — cê não precisa escrever assim pra tirar uma nota boa. A ideia do parágrafo é a seguinte: pra te convencer a melhorar a educação dos surdos, primeiro eu preciso te convencer de que essa educação precisa ser melhorada. Por que eu preciso resolver isso? Por que isso é um problema? Como resposta, a vestibulanda lista vários efeitos negativos — violência simbólica, exclusão, isolamento, evasão escolar… Ou seja, os surdos tão mesmo sofrendo com isso; e se tá causando sofrimento, é um problema.

efeitos negativos

Beleza, então pra ser problema tem que ter efeito negativo. Mas como eu faço pra saber qual efeito é esse?

Como eu disse lá em cima, não existe só um argumento correto — você pode argumentar a mesma coisa de várias maneiras. Seguindo essa lógica, um mesmo problema também tem vários efeitos negativos. Não importa você falar de evasão escolar ou violência simbólica ou exclusão; o importante é que você explique muito bem o efeito que escolher, seja qual for.

Pra facilitar nossa vida, vamos considerar que um problema possa prejudicar a sociedade de oito maneiras diferentes: afetando a saúde, cultura, segurança, renda, educação, inovação, meio ambiente ou moral.

Problemas que abalam a saúde têm efeitos negativos sobre o bem-estar físico e psicológico das pessoas afetadas. São problemas que causam doenças, transtornos, traumas — que prejudicam o corpo e a alma. A poluição das grandes cidades, por exemplo, tem como efeito o câncer; já o vestibular gera ansiedade e depressão em muitas das minhas alunas.

Problemas que afetam a cultura têm efeitos negativos sobre a produção, adaptação e preservação da cultura em qualquer das suas formas — livros, pinturas, música, religião, língua, costumes regionais, prédios tombados. Em 2018, nós vimos como o descaso do Estado pode ter efeitos terríveis sobre a cultura: o Museu Nacional queimou e levou junto boa parte do nosso conhecimento sobre povos indígenas que não existem mais. Da mesma forma, a intolerância religiosa também tem esse efeito negativo, já que as religiões discriminadas são parte da cultura dos povos afetados. Quando a intolerância se volta contra o candomblé, por exemplo, ela prejudica a cultura afro-brasileira.

um baita de um efeito negativo

Problemas que afetam a segurança geram mais mortes. A diferença entre um problema de saúde e um de segurança pública é a diferença entre o câncer e um acidente de carro, ou entre a depressão e um assassinato. Quando o problema é a ausência de ciclovias, por exemplo, podemos falar que isso coloca em perigo a vida de ciclistas, assim como a homofobia é uma causa de morte da população LGBT.

Problemas que afetam a renda de uma pessoa fazem com que ela ganhe menos dinheiro e tenha mais dificuldade de se sustentar e de viver uma vida digna. Se um surdo não tem uma formação educacional de qualidade, é claro que o emprego dele não vai pagar tão bem. O mesmo ocorre com pessoas trans — a discriminação sofrida em entrevistas e no ambiente de trabalho leva muitas à prostituição.

Calma, tá quase acabando. Mais quatro. Problemas que afetam a educação prejudicam o aprendizado e excluem a pessoa do convívio social e de todo tipo de oportunidade. Quanto menos educação, mais exclusão. E educação não serve só pra arranjar emprego; ela te dá as ferramentas pra se desenvolver como indivíduo. Sem alguma educação, dá pra criar arte? Dá pra entender o mundo? Quem não tem educação tá preparado pra exercer sua cidadania?

Problemas que afetam a inovação têm efeitos negativos sobre o progresso tecnológico — invenções de eletrônicos, vacinas para doenças, novos meios de transporte. A burocracia brasileira é um impedimento à inovação, mas o desmatamento também pode ser, caso se percam espécies de plantas que poderiam ser transformadas em remédios, por exemplo.

Problemas que afetam o meio ambiente prejudicam a qualidade do ar, do solo e da água e a biodiversidade. Indústrias poluentes, como a da mineração, contaminam os rios e lençóis freáticos, isso a gente sabe — mas você sabia que a criação de bitcoin consome mais energia do que a Irlanda inteira?

Finalmente, problemas de efeito negativo moral são problemas errados em si. É o caso do homicídio de jovens negros nas mãos da polícia. Eu posso até citar leis e declarações de direitos humanos e a Bíblia, mas não é porque tá escrito num livro que é errado. É errado porque é. Mas como eu disse lá em cima, “porque sim” não é explicação; então esses são os argumentos mais difíceis de desenvolver, já que é muito fácil ficar no senso comum. O jeito é enfiar referência. (vamos falar de referências mais à frente)

Agora que nós sabemos alguns tipos de efeitos negativos, vamos escolher um para o problema excesso de carros nas ruas do Brasil. Vejamos:

Pronto! O efeito negativo do excesso de carros nas ruas é o aumento da poluição. Mas, antes de qualquer coisa, eu preciso explicar daonde eu tirei isso. Eu não posso simplesmente dizer, por exemplo, que o uso do ventilador no verão causa enchentes. Eu preciso dar um efeito negativo que faça sentido com o problema. O que é que me faz pensar que o excesso de carros nas ruas leva ao aumento da poluição? Por que o problema tem esse efeito?

É aqui que entra a argumentação que a gente aprendeu na seção anterior. Lembre-se: se você não explicar o que diz, seu argumento cai no senso comum. Se precisar, vai lá, dá uma relida e aí volta pra cá, porque eu não vou ficar me repetindo. Isso aqui já tá grande demais e eu ainda tenho um monte de coisa pra dizer.

AFIRMAÇÃO: O excesso de carros nas ruas tem como efeito o aumento da poluição.

Por que o problema tem esse efeito?

EXPLICAÇÃO: O excesso de carros nas ruas tem como efeito o aumento da poluição porque o carro polui mais do que um ônibus porque consome mais combustível fóssil por pessoa do que um ônibus.

Certo, então tá explicado por que o aumento da poluição é um efeito do excesso de carros. Mas eu preciso que ele não seja só um efeito — tem que ser um efeito negativo. Então agora a gente vai explicar: por que esse efeito é negativo? Por que isso é ruim pra saúde (ou pra cultura, pra moral, etc)?

AFIRMAÇÃO: O aumento da poluição é ruim.

Por que esse efeito é ruim?

EXPLICAÇÃO: O aumento da poluição é ruim porque a poluição faz mal à saúde pública porque causa diversas doenças, como o câncer.

Não se preocupe se você demorar a pensar em uma explicação. Lendo o exemplo assim parece fácil, mas chegar nesse resultado dá um pouco de trabalho, ainda mais agora que você tá só começando. Quanto mais acostumada você tiver, mais rápido vai explicar qualquer problema que apareça na tua frente.

Agora nós vamos pegar as duas explicações, a do efeito e a do negativo, e encaixar uma na outra, formando uma corrente.

Esse é o nosso argumento! Vê só o que acontece quando eu junto as duas com uma estatística (referência!) e reescrevo um pouquinho, pra ficar mais natural:

Como o carro é um meio de transporte mais poluente, já que consome mais combustível fóssil por pessoa do que um ônibus, o excesso de carros nas ruas tem como efeito o aumento da poluição. Em São Paulo, estima-se que os carros sejam responsáveis por 73% da emissão de gases poluentes, mesmo transportando apenas 30% da população. Essa é uma estatística assustadora, já que a poluição faz um grande mal à saúde pública, causando diversas doenças; entre elas, o câncer.

Sabe o que é isso? É o nosso primeiro parágrafo de desenvolvimento. Repara que só o que eu fiz foi juntar as duas explicações, com uma referência no meio e caprichando na escrita, e pronto! Ou seja, eu não tou te mostrando isso tudo aqui à toa. Esses exercícios te ajudam a construir sua redação.

Então senta aí e exercita!

EXERCÍCIO DE ARGUMENTAÇÃO — III — EXPLICANDO O EFEITO NEGATIVO

Nosso terceiro exercício foca em explicar o efeito negativo de um problema, usando as duas perguntas acima — por que o problema tem esse efeito? e por que esse efeito é ruim?

Pra facilitar sua vida, vamos usar os mesmos temas do exercício anterior. Fica à vontade pra escolher QUALQUER efeito negativo que quiser, mas é uma boa ideia pegar um que você entende melhor. Eu, por exemplo, não entendo nada de saúde, então não vou falar de saúde nunca, mas alguém que tá prestando Medicina talvez se sinta mais à vontade falando disso.

TEMA 1: Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil.

Escolha um efeito negativo e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores)

Por que esse efeito é ruim?

Por que o problema tem esse efeito?

TEMA 2: Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil.

Escolha um efeito negativo e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores) Uma dica: o problema aqui é a intolerância religiosa, não os CAMINHOS pra combater a intolerância! Lembre-se que o problema é sempre o que causa alguma dificuldade ou sofrimento.

Por que esse efeito é ruim?

Por que o problema tem esse efeito?

TEMA 3: A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira.

Escolha um efeito negativo e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores)

Por que esse efeito é ruim?

Por que o problema tem esse efeito?

TEMA 4: As alternativas para a diminuição do desperdício de alimentos no Brasil.

Escolha um efeito negativo e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores)

Por que esse efeito é ruim?

Por que o problema tem esse efeito?

TEMA 5: Consequências da busca por padrões de beleza idealizados.

Escolha um efeito negativo e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores)

Por que esse efeito é ruim?

Por que o problema tem esse efeito?

Agora que nós já sabemos explicar por que o problema é um problema, o próximo passo é: por que esse problema existe?

The Last Resort. Martin Parr, 1983–85

3. POR QUE ESSE PROBLEMA EXISTE?

Lembra daquele negócio de geração espontânea, de uns caras que achavam que larva aparecia do nada em carne podre, e aí descobriram que não é bem assim? Então, o problema social é igual a essa larva aí. Ele não aparece do nada. Pra que o problema exista, alguma coisa precisa existir antes — a sua causa.

A causa vem antes do problema e o efeito negativo vem depois. Todo problema precisa ter pelo menos uma (1) causa, senão ele não existe, porque não aconteceu nada pra que ele existisse. Pensa numa linha do tempo, daquelas da aula de História: a causa vem primeiro, depois vem o problema, e aí o efeito!

Mas pra que é que eu tenho que descobrir a causa? Vamos retomar a ideia de que o problema é uma doença. Os efeitos negativos são os sintomas: febre, nariz escorrendo, braço ficando podre e caindo no chão, etc. Você vai querer que o médico resolva isso, certo? Mas pra resolver teu problema, ele primeiro precisa saber a causa, que é o que criou a doença — um vírus, por exemplo. Só aí ele vai poder te curar. Então se você quiser fazer uma boa proposta de intervenção (que vale 200 pontos!), cê precisa saber a causa do teu problema.

Dá uma olhada nesse parágrafo de outra redação nota 1000:

O filósofo italiano Norberto Bobbio afirma que a dignidade humana é uma qualidade intrínseca ao homem, capaz de lhe dar direito ao respeito e à consideração por parte do Estado. Nessa lógica, é notável que o poder público não cumpre o seu papel enquanto agente fornecedor de direitos mínimos, uma vez que não proporciona aos surdos o acesso à educação com a qualidade devida, o que caracteriza um irrespeito descomunal a esse público. A lamentável condição de vulnerabilidade à qual são submetidos os deficientes auditivos é percebida no déficit deixado pelo sistema educacional vigente no país, que revela o despreparo da rede de ensino no que tange à inclusão dessa camada (…)

Nós já sabemos que os efeitos do déficit educacional dos surdos são a evasão escolar, a exclusão, o isolamento, entre outros. E a causa? O que é que vem antes? Ali em cima, o estudante aponta que o “despreparo da rede de ensino” é uma causa, já que o poder público deveria estar garantindo esses direitos. Então qual vai ser a proposta de intervenção? Arrumar a rede de ensino! (mas depois a gente cuida disso.)

Voltando ao nosso exemplo da mobilidade urbana — agora que nós já entendemos por que o excesso de carros nas ruas é um problema, nós precisamos entender por que esse excesso existe. O que causa o problema? Qual é a origem dele? Daonde saiu tanto carro?

Vamos usar as mesmas categorias que usamos nos efeitos: renda, moral, meio ambiente, educação, cultura, inovação, segurança e saúde. Não se preocupa se você não decorou todas ainda. Demora um pouquinho mesmo. Eu mesma passei dois minutos ali tentando lembrar “inovação”.

A seta é essencial ao aprendizado

Pronto, eu escolhi a cultura como causa. Pra mim, a cultura do automóvel como símbolo de status contribui muito pro excesso de carros nas ruas. Note, no entanto, que todo problema é complexo e tem várias causas; eu também poderia dizer, por exemplo, que a falta de inovação no transporte público, sem novas estações de trem e metrô e linhas de ônibus, é uma causa do problema. Você pode escolher a causa que quiser, desde que foque só em uma e a explique muito bem.

Então agora eu preciso explicar essa afirmação com duas outras perguntas: o que é essa causa? e por que isso causa o problema?

A primeira pergunta é um pouquinho diferente das outras — ela começa com “o que”, em vez de “por que”. Isso significa que você só precisa me dizer o que é, como se fosse um dicionário. O que é a cultura do automóvel?

AFIRMAÇÃO: A cultura do automóvel como símbolo de status causa o excesso de carros nas ruas.

O que é essa causa?

EXPLICAÇÃO: A cultura do automóvel como símbolo de status é uma valorização do carro pelo poder de compra que ele representa. Carros são associados ao sucesso financeiro, enquanto o uso de transporte público é relegado aos mais jovens — e aos mais pobres.

Beleza, já deu pra entender o que é a causa que eu escolhi. Agora, assim como com o efeito, eu preciso mostrar que essa causa faz sentido com o problema. O que é que me faz pensar que a cultura do automóvel como símbolo de status leva ao excesso de carros nas ruas?

AFIRMAÇÃO: A cultura do automóvel como símbolo de status causa o excesso de carros nas ruas.

Por que isso causa o problema?

EXPLICAÇÃO: A cultura do automóvel como símbolo de status causa o excesso de carros nas ruas porque faz com que as pessoas prefiram comprar um carro a usar o transporte público porque andar de carro é mais respeitável porque sinaliza poder econômico.

Pronto! Juntando essas duas respostas com uma referência, dá pra gente montar um bom parágrafo de desenvolvimento.

Como disse Rafael Chirbes, escritor espanhol, aqui o céu é o carro. A cultura do automóvel como símbolo de status valoriza o carro pelo poder de compra que ele representa, associando-o ao sucesso financeiro, enquanto o uso de transporte público é relegado aos mais jovens — e aos mais pobres. Assim, quem se desloca diariamente para o trabalho prefere fazê-lo de carro, por ser um meio de transporte mais respeitável e que sinaliza poder econômico, resultando em um excesso de carros nas ruas.

E aí, pronta pra exercitar?

EXERCÍCIO DE ARGUMENTAÇÃO — IV — EXPLICANDO A CAUSA

Nosso exercício aqui vai ser igualzinho ao exercício anterior: você escolhe uma causa do problema — qualquer causa, mas de preferência uma que você entenda muito bem — e aí explica essa causa a partir de duas perguntas: o que é essa causa? e por que isso causa o problema?

refletindo sobre os problemas em minha vida

Agora é sua vez.

TEMA 1: Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil.

Escolha uma causa do problema e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores)

O que é essa causa?

Por que isso causa o problema?

TEMA 2: Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil.

Escolha uma causa do problema e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores) Uma dica: o problema aqui é a intolerância religiosa, não os CAMINHOS pra combater a intolerância! Lembre-se que o problema é sempre o que causa alguma dificuldade ou sofrimento.

O que é essa causa?

Por que isso causa o problema?

TEMA 3: A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira.

Escolha uma causa do problema e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores)

O que é essa causa?

Por que isso causa o problema?

TEMA 4: As alternativas para a diminuição do desperdício de alimentos no Brasil.

Escolha uma causa do problema e responda às perguntas. (Link pros textos motivadores)

O que é essa causa?

Por que isso causa o problema?

TEMA 5: Consequências da busca por padrões de beleza idealizados.

Escolha uma causa do problema e responda às perguntas.(Link pros textos motivadores)

O que é essa causa?

Por que isso causa o problema?

Esse esquema aí de apontar causa e efeito é tudo que você precisa pra tirar uma nota boa no critério Argumentação, que confere se as suas ideias tão bem explicadas. Ótimo! Agora vamos cuidar dos Conhecimentos — isto é, das suas referências.

Quer dizer, agora não. Deixa isso pra amanhã. A apostila foi feita pra ser lida aos poucos, ok? Não me responsabilizo por quem tentar ler isso tudo de uma vez e ficar embaralhada das ideias.

Sunset, Long Island. Georgia O’Keeffe, 1939

4. O QUE APOIA MEU PONTO DE VISTA SOBRE O PROBLEMA?

bauman, o queridinho das referências

A referência é tipo um fiador pro teu argumento. Você pode falar pra imobiliária que vai pagar o aluguel todo fim do mês, certinho, mas isso é só a sua palavra. Por que ela confiaria em você? Aí vem o fiador e fala: olha só, eu garanto o que essa pessoa tá falando. E o fiador é alguém de confiança, então ele passa essa confiança pra você — agora você é confiável também.

Referências funcionam do mesmo jeito. Você pode desenvolver direitinho seu argumento, mas sem um fiador, sem uma referência, ele não tem peso. Pro seu argumento ser confiável, ele precisa ter algum apoio externo, senão o texto vira trinta linhas de você falando sozinha.

Ou seja, a referência apoia seu argumento. É como se você dissesse: escuta, isso aqui não é só coisa da minha cabeça não. Já disseram a mesma coisa em tal música, tal filme, tal teoria, tal época. Eu entendo como esse tema se encaixa no mundo.

Pra chegar à nota 900, sua redação precisa incluir duas referências.

TÁ, MAS O QUE É UMA REFERÊNCIA?

Referenciar é traçar uma relação entre o argumento e algo que você já conhece. Vamos supor que o tema seja Legalização da educação domiciliar, e que um dos meus argumentos gire em torno de como o professor ajuda a mudar o mundo. Eu posso falar do filme Sociedade dos Poetas Mortos, em que um professor inspira seus alunos, ou citar Paulo Freire, que disse que se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Ambas são referências válidas; o importante é enxergar a relação entre a referência e o argumento.

privilégio do professor homem é dar aula arreganhado assim

E se eu não souber uma referência sobre educação? Então procura outro aspecto do argumento em que você possa encaixar uma referência. Um tema como esse envolve educação, sim, e também liberdade — mas é principalmente uma redação sobre desigualdade. A educação domiciliar seria desigual, porque gente pobre não tem dinheiro nem tempo nem é capacitada pra educar os filhos em casa. Por isso a educação pública é importante. Então qualquer referência relacionada à desigualdade serviria!

Ou seja, o importante é que a referência seja relevante ao seu argumento de alguma forma. Digamos que eu queira criticar a política brasileira, dizendo que ela avança e retrocede, sem fazer progresso. Eu posso puxar da mitologia grega e referenciar Sísifo, que foi condenado a rolar uma pedra enorme montanha acima. Toda vez que ele chegava ao topo, a pedra rolava de volta, e ele precisava buscá-la e empurrar ao topo novamente. Essa é uma referência sobre ciclos; como o meu argumento diz que a política brasileira está num ciclo, ela se aplica.

ENTÃO EU POSSO USAR QUALQUER COISA DE REFERÊNCIA?

Praticamente qualquer coisa. Pense nas referências como categorias — referências culturais, históricas, acadêmicas e em forma de frases.

Entre as culturais, temos filmes, músicas, livros, poemas, fábulas, mitologias, estátuas, pinturas. O quadro “Guernica”*, por exemplo, retrata a cidade de Guernica sofrendo um bombardeio; é uma ótima referência em argumentos antimilitarismo e antiguerra.

*Todo título de obra, seja livro, arte, filme, o que for, deve ser incluído na redação com ASPAS!

Já as referências históricas usam, como o nome já diz, eventos ou períodos históricos como apoio pro argumento. Você pode mencionar, por exemplo, a Revolta da Vacina, ou o costume romano de abandonar bebês “imperfeitos” pra serem devorados por cachorros selvagens.

As referências acadêmicas apresentam conceitos de todo tipo; da filosofia, sociologia, antropologia. Falar do individualismo em Durkheim ou do mundo das ideias de Platão, por exemplo. Essas são as mais difíceis, mas valem MUITO a pena se você souber encaixar. Uma dica: tente se especializar em um filósofo só (por exemplo, Bourdieu) e entender muito bem o que ele pensa sobre o mundo. Aí você pode usar o pensamento dele pra quase qualquer coisa! Lembre-se que o corretor do ENEM só vai ler uma redação sua, então o que importa não é o tamanho do seu repertório, mas sim a qualidade.

Por fim, referências em forma de frase podem ser tanto acadêmicas quanto históricas ou culturais; a diferença é que estão em forma de citação direta. Existe uma diferença entre dizer que Rousseau escreveu sobre a liberdade do indivíduo, uma referência acadêmica, ou citar diretamente a abertura do seu livro mais famoso:

“O homem nasce livre e por toda parte se encontra acorrentado.”

Isso porque as frases famosas têm mais impacto; não é à toa que elas ficaram famosas!

ENTENDI, ENTÃO NÃO TEM ERRO, É SÓ REFERENCIAR QUALQUER COISA!

Calma lá. Não é bem assim. Em quase toda redação que eu corrijo, a autora comete um dos três erros a seguir: usou referências que não entende, referências que não se encaixam no argumento ou simplesmente não explicou o que a referência tem a ver com o texto!

O primeiro erro é muito comum, especialmente em referências acadêmicas. A regra é: não entende? Não referencie. É muito melhor citar uma música que você conhece bem do que um trecho de Bourdieu que você pesquisou só pra usar na redação. Filósofos e sociólogos têm ideias complexas, que precisam ser entendidas direitinho, pra você não acabar associando a pessoa a algo em que ela não acredita. Você pode não saber que fez isso, mas a corretora sabe.

Uma maneira de evitar esse erro é utilizar referências de áreas que te interessam. Quem gosta muito de filmes, por exemplo, pode sempre referenciar filmes em suas redações. Eu gosto muito de mitologia grega, então sempre enfio um mito em algum lugar, mas você pode ser mais fã da Bíblia e saber várias parábolas de cor. Use o que você conhece! E se você tem um apego por um filósofo específico, fique craque nas ideias dele. Aí você pode usar ele pra tudo. Bauman, Marx, Durkheim e Weber são bons exemplos de filósofos que combinam com vários temas — dá pra deixar um na manga em caso de emergência.

Já o segundo erro, da referência que não cabe no argumento, tem a ver com aquela EMPOLGAÇÃO que a gente sente quando pensa no autor perfeito, ou na música perfeita pra referenciar. A gente fica tão animada com esse pontinho extra que acaba nem conferindo se a referência faz sentido mesmo. Lembre-se: não adianta jogar uma referência qualquer e se dar por satisfeita. Você só ganha ponto pela referência que faz sentido!

Por fim, o terceiro erro é o mais grave e o mais comum: inserir a referência solta no parágrafo, sem explicar o que ela tem a ver com o seu argumento ou com o tema. Olha esse exemplo de como NÃO encaixar uma referência:

O sociólogo alemão Max Weber defendia que o poder é toda a possibilidade de impor sua vontade sobre uma pessoa. Não são poucos os relatos de violência policial no Brasil, que estão infelizmente relacionados com o racismo, crescendo cada vez mais o número de jovens negros mortos pela polícia.

Deu pra entender onde a pessoa tá querendo ir com isso: a violência policial é uma consequência de concedermos poder a uma instituição racista. Só que o texto não fala isso! A relação entre a referência e o argumento fica só nas entrelinhas, como se a autora achasse que a gente consegue ler o pensamento dela. Ninguém consegue ler pensamento, e pior; ninguém ganha ponto por pensamento. Tem que botar tudo no papel.

corrigindo sua redação

E COMO EU ENCAIXO MINHA REFERÊNCIA NO TEXTO?

Seja bem direta! Não adianta só escrever a referência e seguir em frente; tem que parar, explicar, mostrar a relação. Só aí ela é usada direito. Esse aqui é um exemplo de referência numa introdução:

“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” Os versos do poeta alemão Brecht ilustram os desafios do combate ao tráfico de drogas; enquanto a sociedade repudia a violência do traficante, nada é dito sobre a pobreza que o leva ao crime.

O trecho “Os versos…ilustram” explica exatamente a relação entre a referência e o tema (Desafios do combate ao tráfico de drogas). Ou seja, a referência tá encaixadinha — você sabe exatamente por que ela tá ali.

Peraí, pode referência em introdução? Pode! A prioridade é o desenvolvimento, porque é lá que os seus argumentos precisam de mais ajuda; mas se você tiver uma referência sobrando, joga pra introdução. Mas calma — antes de falar de introdução, a gente precisa falar da proposta, que é nosso próximo assunto.

E aí, pronta pra exercitar?

EXERCÍCIO DE ARGUMENTAÇÃO — V — ENCAIXANDO A REFERÊNCIA

Nosso quinto exercício não te pede pra explicar nada, graças a Deus. Só o que você precisa fazer é escolher e encaixar uma referência. Fácil!

você quando eu digo que alguma coisa é fácil

Vamos aproveitar o trabalho que você já fez nos exercícios passados. Pega uma causa OU um efeito dos temas abaixo e escreva um parágrafo a respeito, incluindo uma referência bem encaixada. Pode pesquisar na internet, se quiser; o importante é pegar a prática de inserir referências no texto.

TEMA 1: Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil.

Escreva um parágrafo sobre a causa ou sobre o efeito, incluindo uma referência.(Link pros textos motivadores)

TEMA 2: Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil.

Escreva um parágrafo sobre a causa ou sobre o efeito, incluindo uma referência. (Link pros textos motivadores)

TEMA 3: A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira.

Escreva um parágrafo sobre a causa ou sobre o efeito, incluindo uma referência. (Link pros textos motivadores)

TEMA 4: As alternativas para a diminuição do desperdício de alimentos no Brasil.

Escreva um parágrafo sobre a causa ou sobre o efeito, incluindo uma referência. (Link pros textos motivadores)

TEMA 5: Consequências da busca por padrões de beleza idealizados.

Escreva um parágrafo sobre a causa ou sobre o efeito, incluindo uma referência. (Link pros textos motivadores)

Agora nós já cuidamos do critério Argumentação e do Conhecimentos — você aprendeu a explicar o problema usando referências. Ótimo! A seguir, vamos tratar da Proposta de Intervenção, com a qual você elimina o problema.

Autorretrato com camisa xadrez. Schiele, 1917

5. COMO ELIMINAR O PROBLEMA?

Depois de todo esse esforço no desenvolvimento, é muito comum a aluna chegar na conclusão cansada e propondo qualquer coisa pra acabar o texto logo. Ah, o problema é intolerância? Conscientiza o intolerante. O problema é congestionamento? Conscientiza o motorista. O problema é o apocalipse? Conscientiza Deus aí. Pede mais uma chance pra nois.

É aí que a sua nota afunda. O último parágrafo da redação vale sozinho 200 pontos, considerando a conclusão e a proposta. Bota uma proposta genérica, sem capricho, e tu perde 80 pontos na hora. Essa é a diferença de uma redação 840 pra uma 920 —e pode ser a diferença entre a lista de espera e a aprovação.

Então como é que eu monto uma proposta de intervenção? Fácil. A proposta de intervenção ataca a causa e o efeito.

Todo o trabalho que você teve no desenvolvimento vai ser bem aproveitado aqui, porque você já definiu os objetivos da sua proposta. A causa é o machismo? A proposta ataca o machismo. O efeito é o trauma da mulher? Ataca o trauma da mulher. Você já sabe o que precisa resolver — agora é decidir QUEM e COMO.

Vamos voltar praquelas oito áreas (saúde, cultura, etc). Você escolheu uma causa da área de cultura? Então a proposta deve vir da cultura também. Por exemplo, digamos que a causa do bullying seja padrões estéticos; a criança chama a outra de gorda porque existe um padrão estético que diz que é ruim ser gorda, que ser gorda é feio. Olha a proposta:

Emissoras de televisão devem se afastar dos padrões estéticos inserindo atores de aparência diferente do padrão em suas novelas, especialmente naquelas voltadas ao público jovem, como Malhação.

Ótimo. E o efeito do bullying? A criança gorda acha que ser gorda é mesmo ruim, desenvolve vários complexos e chega até à anorexia, que é um puta efeito negativo sobre a saúde — pode até levar à morte. Efeito sobre a saúde pede proposta de saúde:

Escolas devem submeter seus alunos a exames médicos periódicos, de forma a detectar estresses e traumas derivados do bullying, assim como flutuações de peso indicativas de transtornos alimentares. Uma vez diagnosticado, o jovem receberá acompanhamento psicológico até que supere o problema.

Pronto. Eu defini o QUEM (emissoras de televisão e escolas) e o COMO (diversificando atores e examinando alunos) e tá pronta a proposta!

> Tá, mas como eu escolho o QUEM?

O QUEM, que é o agente da proposta, tem a ver com quem cria o problema e quem sofre com o problema. Vamo pegar esse último exemplo aí. A vítima do bullying é a criança, o adolescente. Quem é que tem influência sobre criança e adolescente? Eu disse que as escolas devem submeter os jovens a acompanhamento médico, mas eu poderia muito bem ter dito que esse papel é das famílias.

Da mesma forma, pra resolver a causa, eu posso pedir que emissoras de televisão exibam pessoas fora do padrão estético em suas novelas, ou que anunciantes usem essas pessoas em comerciais — porque jovem assiste TV.

Já naquela proposta dos canudos de plástico, várias pessoas pediram que o governo desenvolvesse canudos melhores; mas faz mais sentido pedir isso do fabricante, que é quem cria o problema (o canudo de plástico).

Por falar em governo, toma cuidado na hora de escolher agentes governamentais. Cada um dos três Poderes tem seu papel. O Poder Legislativo, que é o Congresso (Câmara dos Deputados e Senado Federal), cria as leis. Se você pede uma lei ou quer que algo vire crime ou deixe de ser crime, o negócio é usar o Congresso. Olha essa proposta de uma redação nota 1000:

Ademais, o Estado, através do corpo legislativo, deve propor incentivos fiscais às grandes empresas que instituírem um percentual proporcional na contratação de pessoas com alguma restrição física, incluindo a auditiva.

Agora, se o que você quer é uma política pública ou um plano de governo, seu caminho é o Poder Executivo, e aí você recorre aos governos municipais, estaduais e ao federal.

Destarte, para que as pessoas com deficiência na audição consigam o acesso pleno ao sistema educacional, é preciso que o Ministério da Educação, em parceria com as instituições de ensino, promova cursos de Libras para os professores, por meio de oficinas de especialização à noite — horário livre para a maioria dos profissionais — de maneira a garantir que as escolas e universidades possam ter turmas para surdos, facilitando o acesso desse grupo ao estudo.

Aproveita e aprende aqui o nome dos ministérios. Minhas alunas só conhecem o MEC e isso porque é o que cuida do ENEM.

Já os casos em julgamento ficam ao cargo do Poder Judiciário, composto pelos juízes e pelos ministros do STF. Só lembra que não é papel do Judiciário encontrar criminoso; isso aí é com a polícia. O Judiciário só julga.

> E o COMO?

O COMO precisa ser minimamente original. Não pode conscientizar e não pode dar palestra. Ninguém nunca aprendeu nada com palestra. Pra isso que serve puxar a proposta da mesma área que veio o argumento; se a causa é de saúde, dá pra resolver distribuindo vacina e preservativo, enviando agentes de saúde às casas mais afastadas, organizando mutirões pra limpar pneus. Não precisa ficar conscientizando.

E mesmo se você quiser muito conscientizar alguém dá pra fazer isso sem apelar pro clichê. Quer ver um bom exemplo de proposta de conscientização? Dá uma olhada nesse vídeo.

Além de original, o COMO também precisa ser viável. Já tive aluna querendo resolver vício em internet disponibilizando atendimento psicológico gratuito pra todos os brasileiros. Sem condições. Agora, disponibilizar atendimento pros jovens que já têm o vício é muito mais viável, porque é uma parcela pequena da população.

Aliás, um aviso importante: não adianta querer resolver qualquer coisa com revolução, viu? Redação do ENEM não é lugar de ideia radical, porque quanto mais radical for a proposta, mais explicação você precisa dar pra que o leitor entenda que a proposta é necessária. De quantas linhas você acha que precisa pra conectar o tema Excesso de carros nas ruas à revolução? Mais de 30? No ENEM cê só tem trinta. Melhor deixar tuas convicções de lado e focar em um plano prático, simples e bem explicado. A meta aqui não é ser 100% fiel ao que você acredita; é entrar na faculdade.

MAS EU POSSO FUGIR DA CAUSA E DO EFEITO E FALAR DE OUTRA COISA?

Não. Você tem que falar exatamente do que falou no desenvolvimento. Nada de inserir informações novas.

Muita gente tem dificuldade nisso, confundindo resolver o problema com falar de uma coisa nova. A diferença é a seguinte: se você menciona um assunto que não apareceu em momento algum no desenvolvimento, você abriu um argumento novo.

Vamos supor que você fale no seu texto que a causa do excesso de carros é a cultura do automóvel como símbolo de status. Beleza. Aí você chega na proposta e diz que vai resolver isso melhorando o transporte público. Ué, mas o que tem a ver o transporte público com isso? A causa não era a cultura? Melhorar o transporte público pode ajudar o problema, sim, mas não tem nada a ver com o que você disse!

improvisando na conclusão

Lembre-se: assim como o médico estuda os sintomas e as origens da doença pra saber curá-la, nós explicamos a causa e o efeito do problema pra saber resolvê-lo. Quando o médico descobrir que você tá com pneumonia, ele pode te passar remédio pra verme? Não. (a menos que você seja muito azarada e tenha pneumonia e verme. Nesse caso, a redação do ENEM é o menor dos seus problemas.) Da mesma forma, se a sua intervenção não encaixar direitinho nos argumentos, o texto fica todo desconexo! A solução tem que fazer sentido.

Pronta pra exercitar?

EXERCÍCIO DE ARGUMENTAÇÃO — VI— ELIMINANDO O PROBLEMA

O objetivo deste exercício é eliminar o problema montando uma proposta nos moldes acima, articulando um quem e um como. Pra isso, eu vou te dar um desenvolvimento pronto, com um parágrafo tratando da causa e outro dos efeitos. Seu trabalho é só enfiar a bota na cara do problema.

A cultura jovem é disseminada online. Adolescentes de todas as partes do país se unem para criar e compartilhar memes, imagens humorísticas que são reproduzidas e referenciadas à exaustão até compor parte do repertório cultural de milhões de jovens brasileiros. Assim, a sensação de se conectar à internet é a de pertencer a um grupo cultural — sensação essa que pode se revelar viciante.

De fato, o vício em se manter conectado afasta os jovens de atividades offline essenciais ao seu desenvolvimento. Como dizia Durkheim, o indivíduo tem um dever perante a sociedade. Ao preterir atividades comunitárias no mundo real — como o teatro ou o trabalho voluntário — para dedicar todo seu tempo à internet, o jovem descumpre o seu dever social e reprime o desenvolvimento da sua personalidade.

Terminou o exercício? Beleza. Agora você já sabe identificar o problema, analisá-lo pelos ângulos da causa e do efeito (com direito a referência!) e propor uma intervenção adequada. Hora de escrever outra redação.

PROPOSTA DE REDAÇÃO — II — SELF-SERVICE

Pra sua segunda redação, escolha qualquer um dos cinco temas que aparecem nos exercícios — formação educacional, intolerância religiosa, etc — e escreva uma redação completa. Eu quero que você inclua uma causa e um efeito, com pelo menos uma referência, e capriche na proposta.

Sentiu dificuldade na hora de começar o texto? Não se preocupa. Tá na hora da gente falar da introdução.

Jaqueline com flores. Picasso, 1954

Lá no início da apostila, eu te disse que a minha receita de redação passa por cinco questões: Qual é o problema?, Por que isso é um problema?, Por que esse problema existe?, O que apoia meu ponto de vista sobre o problema?
e Como é que eu resolvo o problema?. Juntas, elas formam um modelo de projeto de texto; ao encarar qualquer tema do ENEM, basta responder essas perguntinhas que você descobre exatamente pra onde seu texto tem que ir. As primeiras três perguntas compõem sua Argumentação, a quarta, seus Conhecimentos, e a quinta, sua Proposta de Intervenção.

Só que o critério Conhecimentos tá pela metade! O nome completo é Estrutura e Conhecimentos. Precisamos cuidar, agora, da estrutura.

E O QUE É A ESTRUTURA?

A estrutura da redação do ENEM é a seguinte:

PARÁGRAFO 1: INTRODUÇÃO

PARÁGRAFO 2: DESENVOLVIMENTO DO 1º ARGUMENTO

PARÁGRAFO 3: DESENVOLVIMENTO DO 2º ARGUMENTO

PARÁGRAFO 4: PROPOSTA DE INTERVENÇÃO

Ah, mas a minha amiga Ana Bárbara fez só três parágrafos na redação e tirou 920, posso fazer só três? Pode. Pode fazer três, quatro ou até cinco, se quiser, mas não é coincidência que todas as redações nota 1000 divulgadas pelo MEC tenham quatro parágrafos. Também não é porque quatro é um número mágico. Essa estrutura é recomendada porque facilita a argumentação.

Se uma aluna minha tá só começando a praticar a redação do ENEM, sem experiência nenhuma, ela provavelmente vai cometer algum dos dois erros mais comuns de argumentação: usar argumentos demais ou usar só um. Usar argumentos demais é sinal de nervosismo — você quer tanto impressionar o corretor que escreve TUDO que te vem à mente, vomitando conhecimento no papel. Ah, o tema é vestibular? Beleza, então eu vou falar do sistema educacional precário, e das cotas, e de Paulo Freire, e de projeto pedagógico, e de outros vestibulares em outros países, e de… Cê tá escrevendo um livro sobre o assunto? Não! Você não tem nem uma folha inteira — só 30 linhas. Não cabe tudo isso. Quanto mais argumentos você usar na sua redação, menos espaço você tem pra desenvolver cada um; ou seja, menos espaço pra explicação. Então quanto mais argumentos você usar, menor é a qualidade do texto.

Isso não quer dizer que o ideal seja usar um argumento só. É claro que você explicaria muito melhor seu argumento se usasse TODO o espaço da redação pra isso, mas também é importante demonstrar que você sabe outras coisas sobre o assunto.

Se eu não posso usar argumentos demais nem focar em um argumento só, qual é o número ideal de argumentos na redação? Dois — um em cada parágrafo.

seus dois argumentos

Argumentos são desenvolvidos em parágrafos diferentes pra evitar que as ideias se misturem. Pense nos argumentos como água e óleo — cada um no seu canto, bem definido. Aí a argumentação fica super clara, sem pular pra cá e pra lá tentando explicar tudo ao mesmo tempo.

Tá, e quais são os meus dois argumentos? Isso você já sabe.

PARÁGRAFO 1: INTRODUÇÃO

PARÁGRAFO 2: CAUSA

PARÁGRAFO 3: EFEITO

PARÁGRAFO 4: PROPOSTA DE INTERVENÇÃO

Ou seja: respondendo as cinco perguntas lá do início da apostila, você já tem quase toda a redação pronta. Só falta a introdução.

UÉ, MAS A INTRODUÇÃO NÃO É A PRIMEIRA COISA QUE EU FAÇO?

Não, uai. A introdução é uma apresentação do seu texto; é você falando pro leitor olha só, meu texto fala disso, disso e disso, beleza?. Como é que você vai apresentar um texto se você mesma ainda não sabe do que ele se trata? É como se você apresentasse uma pessoa sem saber o nome dela. Aliás, esse é um erro super comum de quem tá começando a praticar redação: escrever a introdução primeiro e decidir os argumentos depois, no improviso. Aí na hora de reler o texto cê percebe que a introdução não tem NADA A VER com o resto e sai da prova chorando.

relendo o rascunho

BELEZA. ENTÃO COMO EU INTRODUZO O TEXTO?

Imagina que alguém tá dando uma volta no bairro e tropeça na sua redação. Se essa pessoa pega o papel do chão e lê o primeiro parágrafo, ela vai entender do que o texto se trata? Ou a redação só faz sentido se o leitor já sabe o tema antes de começar a ler?

Dá uma olhada nessa intro (que NÃO é nota 1000):

Com o advento da era da informação, que popularizou smartphones e democratizou o acesso à internet, muitos jovens têm dedicado todo seu tempo livre às redes sociais, interagindo com amigos, conhecidos e estranhos. No entanto, as consequências podem ser muito prejudiciais, levando a crises de autoestima e até mesmo à morte.

Qual é o tema dessa redação? Eu entendi que tem alguma coisa a ver com jovem e internet, mas qual é o tema? Vício em redes sociais? Cyberbullying? Não dá pra saber. Essa introdução não cumpre seu papel principal: me dizer do que é que o texto se trata.

Olha a diferença desse outro exemplo, escrito pela Ana Luiza:

Na arte cristã, pietà é um tema que representa a Virgem Maria com Jesus morto em seus braços. Consternada pela dor, a mãe chora pela brutalidade sofrida pelo filho, exercida pelas forças do Estado que falharam em cumprir sua missão: prestar pelo bem e proteger. Essa imagem reflete a realidade brasileira da perda da credibilidade da polícia como instituição do Estado por conta da sua violência.

Do que é que a redação fala? Da perda da credibilidade da polícia como instituição por conta da sua violência, certo? Certo; o tema é violência policial. Então nós já sabemos tanto o assunto do texto quanto o ponto de vista da Ana Luiza, já que ela claramente não gosta dessa violência.

Esse ponto de vista, que é o que você pensa sobre o problema, não precisa ser muito detalhado. Aliás, outro erro super comum é argumentar na introdução: já chegar explicando o que pensa, por que pensa, etc. Calma! Não é pra dar spoiler da argumentação. Eu só quero ter uma ideia do que é que você vai abordar no texto.

ENTÃO EU TENHO QUE USAR UMA REFERÊNCIA NA INTRODUÇÃO?

Não! A introdução que traz uma referência é sempre a mais forte, porque mostra repertório, mas existem vários outros tipos mais fáceis. Tente experimentar todos, um em cada redação, e ver quais você prefere!

1. DEFINIÇÃO

O termo “autoestima” significa a estima que uma pessoa tem por si mesma; o quanto ela se valoriza, sua autoconfiança. Ironicamente, apesar da semelhança fonética, a autoestima dos jovens brasileiros não é alta. De fato, a inadequação é tanta que muitos desenvolvem problemas de saúde, podendo chegar até mesmo à morte.

Esse recurso é o mais simples de todos. Se você tem dificuldade em pensar em uma intro e acaba gastando tempo demais nisso, aposte na definição. É só começar definindo uma palavra-chave do tema, como se você fosse um dicionário — e aí conectar essa definição ao tema em si e à sua posição sobre ele.

2. DECLARAÇÃO

A baixa autoestima é epidêmica entre jovens brasileiros. Vítimas dos padrões estéticos, que ditam rostos e corpos ideais, esses adolescentes têm sua autoimagem distorcida e chegam a desenvolver transtornos alimentares, ferindo corpo e alma em nome da perfeição.

Outro recurso bem simples — a chave é começar com uma frase curta que inclua um adjetivo forte, estabelecendo a seriedade do problema. A baixa autoestima é epidêmica, a proibição das drogas é ineficaz, o vestibular é um fracasso. Essa declaração pode até ser mais ousada: A proibição do aborto é a sentença de morte da mãe.

3. EXEMPLIFICAÇÃO

Seios rijos, músculos definidos, pele de alabastro. Os padrões estéticos ditam rostos e corpos ideais e frequentemente inalcançáveis aos jovens brasileiros, cuja autoestima sofre. Tomados por um sentimento de inadequação, esses adolescentes chegam a desenvolver transtornos alimentares, ferindo corpo e alma em nome do que é considerado perfeito.

Mais um recurso fácil de usar, que consiste em dar vários exemplos concretos. A situação da saúde no Brasil é de salas de espera lotadas, leitos nos corredores, escassez de remédios. O vestibulando tem as mãos trêmulas, morde a tampa da caneta, sua frio. Esse recurso tem o efeito bem legal de estabelecer a seriedade do problema dando imagens bem claras ao leitor. Pode caprichar no drama.

4. INTERROGAÇÃO

Vítimas dos padrões estéticos, que ditam aparências ideais, jovens brasileiros têm sua autoimagem distorcida e chegam a desenvolver transtornos alimentares, ferindo-se para atingir a perfeição. Ao invés de buscar um corpo magro e cobiçado, não seria melhor um corpo saudável?

Esse recurso já é um pouquinho mais complexo. A interrogação vem ao final do parágrafo pra sacudir o senso comum, trazendo uma reflexão que será desenvolvida ao longo do texto. No exemplo, o corpo perfeito é tido como um corpo bonito, sensual, desejável, então eu questiono se não seria melhor do que tudo isso ter um corpo são — isto é, um corpo sem anorexia, sem neuras. O vestibular é tido como indispensável, o crack é tido como um problema a ser resolvido pela força — esses paradigmas também podem ser questionados. Além de instigar o leitor, a interrogação obriga o seu texto a sair do óbvio, o que já garante mais pontos. Olha a intro da Maria Clara, que combina a definição com uma interrogação:

O termo vestibular faz referência à palavra “vestíbulo”, sendo um pátio de entrada ao ensino superior. Instituída no Brasil no início do século XX, essa prova continua sendo a principal forma de ingresso nas faculdades. Entretanto, mais de cem anos depois, cabe perguntar: o vestibular ainda é necessário para determinar o conhecimento de um estudante?

5. REFERÊNCIA

A estatueta Vênus de Willendorf, esculpida há 28 mil anos, representa o padrão de beleza feminina vigente no período paleolítico: curvas generosas, associadas à fertilidade. Em contraste, o padrão estético atual exige magreza extrema, ao ponto de provocar risco à saúde. Vítimas da estética do seu tempo, jovens brasileiros têm sua autoimagem distorcida e chegam a desenvolver transtornos alimentares, ferindo corpo e alma em nome da perfeição.

aí sim

Introduções que incluem referências são mais impressionantes porque já abrem o texto demonstrando repertório. Pra explicar a violência contra a mulher, podemos citar Simone de Beauvoir, que diz que a mulher não nasce mulher; torna-se. Pra demonstrar o impacto do crack sobre a vida do usuário, recorremos a MC Carol: Larguei minha família, a escola, você sabe. Vou perder os meus amigos, se prostituir faz parte. Vale referenciar QUALQUER coisa — obras filosóficas, contextos históricos, filmes, músicas, notícias (anime não). O importante é traçar uma relação com o tema. Mas lembre-se: a prioridade é colocar referências no desenvolvimento! Se você só pensar em uma, deixa pra lá.

Olha esse uso brilhante de referência em uma introdução da Giovana:

“Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida”. O verso de Morte e Vida Severina ultrapassa a barreira do tempo e representa a realidade do Brasil de 2018. Isso porque, infelizmente, a luta pelo fim da desigualdade social ainda é muito estigmatizada, principalmente por contrariar a ordem vigente, o que pode ser observado na conotação negativa dada ao Movimento Sem Terra (MST), que luta pela reforma agrária e fim dos latifúndios improdutivos. Essa visão do MST como algo imoral prejudica a sua atuação e contribui para a perpetuação da narrativa de João Cabral de Melo Neto.

Em Morte e Vida Severina, o personagem que queria um pedacinho de terra pra si só o recebe em forma de cova. A referência — poderosíssima — tem tudo a ver com uma redação sobre o MST.

6. ALEGORIA

No conto Branca de Neve e os Sete Anões, a Rainha Má indaga: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?” Seu espelho mágico então responde que ela é a mais bela aqui, mas que a Branca de Neve, que está morando bem longe, é mil vezes mais bela. A obsessão da Rainha em alcançar a perfeição estética, personificada pela princesa, é refletida pelos jovens brasileiros; ao se compararem aos padrões vigentes e constatarem que não são os mais belos, adolescentes colocam sua saúde física e mental em risco em busca da perfeição distante.

O poder da alegoria é o de encontrar em uma história, seja um mito, fábula, parábola ou conto de fadas, um paralelo ao problema em questão. A introdução demonstra repertório, já que é uma referência, mas também comprova seu poder de interpretação e sua compreensão do tema. Esse é o recurso mais complexo, é claro, mas também é o de resultado mais impressionante. Segue outro exemplo, que puxa da mitologia grega:

Na mitologia grega, Narciso se inclina sobre um rio para matar a sede e outra sede o toma: a de olhar a si mesmo. Obcecado por seu reflexo, ele mergulha os braços na água e se frustra ao abraçar o nada, mas persiste às margens do rio até definhar. A morte de Narciso na busca pela perfeição estética espelha as mortes de milhares de jovens brasileiros nas mãos de transtornos alimentares, não por amarem a própria imagem — mas por odiarem-na.

autoestima é tudo!!

Um último exemplo, dessa vez do Phellipe, que arrasou na introdução:

De acordo com a mitologia grega, Hércules precisou cumprir doze tarefas para tornar-se um deus. Tais tarefas só poderiam ser realizadas por alguém com capacidade e habilidades divinas; logo, eram uma forma de avaliação coerente. O mesmo não pode ser dito do vestibular, método que seleciona a entrada de alunos no ensino superior brasileiro — a dificuldade do exame supera em muito o que poderia ser razoavelmente esperado de um estudante.

Agora você já conhece os seis principais tipos de introdução, do mais fácil ao mais complexo. Pronta pra exercitar?

EXERCÍCIO DE ESCRITA— VII — INTRODUÇÃO

Pro nosso sétimo exercício, nós vamos reaproveitar o exercício anterior, em que você escreveu uma proposta de intervenção baseada em dois argumentos já prontos. Releia os argumentos, responda às perguntas (de acordo com o que está escrito) e desenvolva várias introduções pro mesmo texto, uma de cada tipo.

Qual é o assunto do texto?

O que eu penso sobre isso?

1. DEFINIÇÃO

Construa uma introdução deste tipo.

2. DECLARAÇÃO

Construa uma introdução deste tipo.

3. EXEMPLIFICAÇÃO

Construa uma introdução deste tipo.

4. INTERROGAÇÃO

Construa uma introdução deste tipo.

5. REFERÊNCIA

Construa uma introdução deste tipo.

BÔNUS: ALEGORIA

Como este é o tipo mais difícil, fica como um exercício bônus, opcional. Não precisa fazer se não quiser. Na real, isso vale pra todos os exercícios da apostila, já que eu não sei onde você mora e não posso ir aí te obrigar a estudar redação. Eu iria, viu.

PROPOSTA DE REDAÇÃO — III—AGORA É PRA VALER

Escreva uma redação completa, com introdução, causa, efeito (incluindo referências!) e intervenção, sobre o tema Caminhos para combater o aborto clandestino no Brasil. (link pros textos motivadores)

Não se esqueça de começar pelas cinco perguntas! Elas é que guiam o rumo do texto.

Essam Marouf

Beleza, agora nós já falamos de todos os critérios do ENEM que envolvem argumentos — Estrutura e Conhecimentos, Argumentação e Proposta de intervenção. Ou seja, o mais difícil já foi! Os outros dois critérios, Domínio da Escrita Formal e Mecanismos Linguísticos, têm mais a ver com a sua escrita em si; quem tá acostumada a ler e escrever já se dá bem nisso aí sem problemas. Tendo dito isso, uns vinte ou quarenta pontinhos a mais não fazem mal a ninguém, então vamos revisar isso aí, começando pelos mecanismos linguísticos.

MAS O QUE SÃO MECANISMOS LINGUÍSTICOS?

Pra construir um texto, as frases e parágrafos precisam estar conectados entre si, como os elos de uma corrente. Assim, cada frase leva à frase seguinte, e o leitor entende direitinho a linha do seu raciocínio. Sem os conectivos ligando uma frase à outra e um parágrafo ao outro, o texto é não é um texto, é só uma sequência de ideias desconexas. E é pra fazer essa conexão que nós usamos os mecanismos linguísticos — isto é, os conectivos.

Veja que esta redação nota 1000 usa conectivos no início de quase todas as suas frases, especialmente no início do segundo argumento e no início da proposta de intervenção. Esses são os dois conectivos mais importantes! Não se esqueça de usá-los.

E QUAIS CONECTIVOS EU POSSO USAR?

Você pode usar conjunções — Além disso, No entanto, etc — ou conectivos mais sofisticados, que referenciam o próprio assunto da frase anterior. Por exemplo:

Helen Keller — primeira mulher surdo-cega a se formar e tornar-se escritora — definia a tolerância como o maior presente de uma boa educação. O pensamento de Helen não tem se aplicado à sociedade brasileira, haja vista que não se tem…

A autora poderia ter começado a frase seguinte com “No entanto”, o que estaria correto, mas o uso de “O pensamento de Helen” é mais criativo e mais relevante à frase anterior. De uma forma ou de outra, o importante é enxergar a relação entre as frases — se é uma relação de semelhança, de contraste… Vou te dar uma listinha de relações e exemplos de conectivos pra facilitar tua vida:

1) Prioridade (o que deve ser dito primeiro):

em primeiro lugar, antes de mais nada, antes de tudo, em princípio, primeiramente, acima de tudo.

2) Semelhança (coisas que se parecem):

igualmente, da mesma forma, assim também, do mesmo modo, de acordo com, segundo, conforme, sob o mesmo ponto de vista, tal qual, tanto quanto, como, assim como, bem como.

3) Contraste (uma coisa que não se parece com a outra. É diferente):

pelo contrário, em contraste com, contudo, todavia, entretanto, no entanto, conquanto.

4) Continuação (uma coisa após a outra. Bom pro início do 3º parágrafo):

além disso, ademais, outrossim, por outro lado.

5) Conclusão (resume o que foi dito. Bom pro início da conclusão):

em suma, em síntese, em conclusão, enfim, em resumo, portanto, assim, dessa forma, dessa maneira, desse modo, logo, dessarte, destarte, assim sendo, nesse sentido.

BELEZA. E O DOMÍNIO DA ESCRITA FORMAL?

Olha, dominar a escrita formal — isto é, seguir direitinho a norma culta e usar um vocabulário complexo — é questão de prática. Não tem atalho. Tem que ler muito e escrever muito, o ano todo, pra desacostumar da linguagem que a gente usa na internet (sem pontuação, sem maiúscula, etc). Tendo dito isso, se o seu tempo tá curto, presta atenção nas três áreas que mais dão problema: vírgula, crase e divisão de frases.

COMO USAR A VÍRGULA?

Existem muitas regras no uso das vírgulas. Não vou cobrir todas aqui, senão essa apostila dobra de tamanho; vamos ver só as mais importantes. Vírgulas são úteis:

1. PARA SEPARAR ELEMENTOS DE UM GRUPO

Marília Rafael e Andressa foram ao shopping. Onde faltou vírgula na frase? Entre “Marília” e “Rafael”: Marília, Rafael e Andressa foram ao shopping. Por quê? Porque separam-se com vírgula palavras que são elementos de um grupo! Como Marília, Rafael e Andressa formam um grupo, nós os separamos. Outros exemplos:

Vou à feira comprar tomates, cenoura e beterraba.
As cores primárias são vermelho, verde e azul.
Dois, quatro, seis, oito e dez são números pares.

Uma dica: antes de “e” não vai vírgula.

2. PARA DESTACAR EXPLICAÇÕES

Meu aluno preferido Luan faltou à aula. Onde ficaria a vírgula? Antes e depois de “Luan”: Meu aluno preferido, Luan, faltou à aula. Por quê? Porque o sentido da frase é “Meu aluno preferido faltou à aula”. Luan é uma explicação — eu estou te dando o nome do meu aluno. Explicações recebem vírgulas antes e depois, pra que o leitor entenda que o autor está desviando da frase e então voltando. Outros exemplos:

A mala azul, por ser de rodinhas, é mais fácil de carregar.
Eu, como professora de redação, sou obrigada a tirar boa nota no ENEM.
Refrigerante, uma bebida super calórica, atrapalha a perda de peso.

3. PARA SITUAR A FRASE

Na Revolução Industrial os trabalhadores não tinham direitos. Cadê a vírgula? Depois de “Industrial”: Na Revolução Industrial, os trabalhadores não tinham direitos. Por quê? Porque essa expressão situa a frase num período de tempo. Expressões que vem ao início da frase para situá-la em um tempo, local, modo, etc são separadas por vírgula. Por exemplo:

Antigamente, mulheres não podiam votar.
No Brasil, fala-se português.
Geralmente, o que firma o aprendizado do aluno é a resolução dos exercícios.
Quando a gente gosta, é claro que a gente cuida.

4. ANTES, E ÀS VEZES DEPOIS, DE CONJUNÇÕES

Eu gosto dela porém ela não gosta de mim. Onde fica a vírgula? Antes do “porém”: Eu gosto dela, porém ela não gosta de mim. Por quê? Porque o porém é uma conjunção. A fórmula é: primeira ideia + vírgula + conjunção + segunda ideia.

São só quatro regras, mas não é tão simples entender.
Ou se aprende a vírgula, ou não se passa no ENEM!

Se a conjunção estiver no início da frase, só vem vírgula depois, é claro. Por exemplo:

A vírgula nem sempre é necessária pro entendimento. Apesar disso, é importante conhecer seu uso correto.

Só se usam duas vírgulas se você rearranjar a segunda ideia pra que a conjunção fique no meio dela. Assim:

Queremos ver o mar, porém não será nesta viagem.
Queremos ver o mar. Não será, porém, nesta viagem.

Dá uma olhada também nesse vídeo do prof. Noslen:

perfeito

COMO USAR A CRASE?

A crase é a versão feminina de “ao”. “AO” é a preposição A + o artigo O; “À” é a preposição A + o artigo A. Quando você precisa repetir o A, você usa a crase, pra não precisar escrever “a a”. Assim:

“Eu vou a o teatro” vira:

“Eu vou ao teatro”

“Eu vou a a escola” vira:

“Eu vou à escola”

O erro de crase vem da confusão entre o A-artigo e o A-preposição. Só é preciso usar crase quando se pede tanto o artigo quanto a preposição. Dá uma olhada no exemplo:

Consumo de fast food somado a uma rotina atarefada leva à obesidade.

No primeiro caso, o A-preposição está presente, mas o artigo é Uma. Ou seja, a crase não é necessária. Já no segundo caso, tanto a preposição quanto o artigo são As. A + A = À!

Para descobrir se o A é preposição ou artigo, o truque é olhar a flexão de número e gênero e a definição. Já que o A é um artigo definido, feminino e singular, o termo precisa ser definido, feminino e singular também. Pode usar crase com palavra masculina? Não. Pode usar crase antes de artigo indefinido? Não. E plural? Pode, mas aí pluraliza a crase também.

O padre deu bênção ao menino.

O padre deu bênção a uma menina.

O padre deu bênção às idosas.

Uma dica é transformar a palavra feminina em uma masculina e ver se o À vira AO. Se não fizer sentido usar AO, não faz sentido o À.

Isso ocorre devido à omissão do governo.

Isso ocorre devido ao lapso do governo.

As exceções à regrinha acima são os usos de crase em expressões que indicam tempo, lugar e modo. Assim:

Às vezes eu envio lições sobre português.

Essas lições são feitas às pressas.

Preciso sair de casa às 17h!

O prof. Noslen também tem um vídeo legal sobre crase:

alguém por favor tem o zap do noslen só pra eu conferir um negócio aqui

COMO DIVIDIR FRASES?

O que eu mais vejo nas primeiras redações das minhas alunas, lá no início do semestre, são as frases gigantes. Frases gigantes são frases de mais de três linhas — aquela frase que, quando termina, cê já nem lembra mais como começou. Às vezes, acontece até do parágrafo inteiro vir em uma frase só, o que prejudica muito a compreensão do texto.

É a diferença entre comer um bife cortado em vários pedacinhos ou um bife inteiro, de uma vez só. Fracionar o seu texto em frases curtas torna ele mais fácil de digerir. Olha só:

Num país de 12 milhões de desempregados, a competitividade do mercado de trabalho relega ao pobre toda sorte de trabalho braçal, subalterno e indigno por apenas um salário mínimo ao mês — se tanto — , e a esses trabalhadores as facções estendem mão amiga, oferecendo não só dinheiro como uma função que inspira medo e respeito, autoridade, em vez de sujeição, assim, a pobreza dá forças ao tráfico de drogas.

Num país de 12 milhões de desempregados, a competitividade do mercado de trabalho relega ao pobre toda sorte de trabalho braçal, subalterno e indigno por apenas um salário mínimo ao mês — se tanto. A esses trabalhadores, as facções estendem mão amiga, oferecendo não só dinheiro como uma função que inspira medo e respeito; autoridade, em vez de sujeição. Assim, a pobreza dá forças ao tráfico de drogas.

Procure montar seus parágrafos com um mínimo de duas frases (idealmente, três ou quatro), usando o ponto final sem medo. Uma última dica: quase todo conectivo é uma oportunidade de divisão de frase!

Conforme afirmou Aristóteles, é preciso tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida exata de suas desigualdades, contudo, a instrução aristotélica não é vista na prática, uma vez que o mercado de trabalho oferece poucas oportunidades, ainda que o deficiente auditivo tenha concluído o ensino superior.

Conforme afirmou Aristóteles, é preciso tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida exata de suas desigualdades. Contudo, a instrução aristotélica não é vista na prática, uma vez que o mercado de trabalho oferece poucas oportunidades, ainda que o deficiente auditivo tenha concluído o ensino superior.

E é isso! Agora que você já sabe como construir uma redação no modelo ENEM, só o que falta é praticar bastante. Escreva uma redação por semana, sem consulta e de olho no relógio — o tempo ideal é de 1h30. E não fique desanimada se, a princípio, você demorar bastante a escrever ou tiver muita dificuldade em colocar suas ideias no papel. Pratique! A gente só aprende a andar andando.

Agradecimentos a Ana Luiza, Giovana, Maria Clara e Phellipe, pelas introduções maravilhosas, e a todas as outras alunas pelo seu esforço e por me encherem de orgulho. Paulo Freire dizia que a educação é um ato de amor — espero ter transmitido esse amor a vocês.

Alguns direitos reservados. Atribuição, não-comercial. Uso e reprodução liberados, desde que sem fins lucrativos.

--

--