Acabou chorare, João

Bruno Capelas
4 min readJul 6, 2019

Um amigo esses dias descreveu o João Gilberto como nosso “verdadeiro guitar hero”. Junto da descrição, a foto mais recente dele, de terno azul, de pé, ao lado do companheiro inseparável — o violão. Até comentei: “que bom vê-lo bem”. Nos últimos meses, as poucas fotos que apareciam nas redes dele o mostravam fraco, magro, debilitado — como seria natural para um senhor de 88 anos. Mas era demais para mim: João Gilberto sempre esteve lá, sempre foi gigante. Vê-lo em tais condições virou um paradigma para mim sobre como envelhecer é uma tarefa difícil. (Sei que eu não deveria pensar nessas coisas aos 27 anos de idade, mas faz parte de ser humano).

Nas próximas horas, vão surgir inúmeros textos e piadas relembrando os aspectos folclóricos de João. Do baseado à birra com o ar condicionado, da vaia de bêbado que não vale aos mágicos faróis vermelhos com Nelson Motta. Do acabou chorare no apartamento em Botafogo, o hábito de pular de apartamento em apartamento até chegar na fórmula mágica que o consagrou. Ou os aspectos trágicos: o fim da vida, a disputa entre os filhos, a herança e as brigas com gravadoras.

Fosse só pelo violão de uma gravação, a de Chega de Saudade com Elizeth Cardoso, João já seria lembrado para sempre por seu poder de catalisador cultural — não foram poucos os gigantes que quiseram fazer música depois dele. Mas era só o começo, claro. Fosse só pela gravação com Stan Getz, o Grammy, o show no Carnegie Hall, João já seria gigante por levar a música do Brasil para todos os cantos do mundo. Fosse só pela capa de Chega de Saudade, seu primeiro disco — a melhor expressão de “mãe, me tira daqui e me dá outro moletom” do mundo.

Mas há muito mais que isso: ele é o intérprete que melhor compôs sobre as músicas dos outros. Um amigo outro dia disse que estava cansado de ouvir Tom Jobim em arranjos de aberturas das novelas de Manoel Carlos. Respondi que meu jeito de redescobrir Tom era ir na fonte — em João Gilberto, claro. Assim como ouço Gershwin, Ary Barroso, Caetano Veloso e até Lobão, todos ficarem melhores pela voz e o violão, a essência do baiano de Juazeiro. É como Nelson Motta disse certa vez na resenha de Amoroso para a Bizz: “João canta as palavras em inglês, italiano, espanhol, como se brasileiras fossem”. Como se fossem suas. Difícil pensar numa canção que ele cantou e não teve, ali, sua versão definitiva — com todo o perdão aos outros intérpretes que se atrevem pela obra de Tom Jobim, só pra ficar num nome.

Mas o que mais me assombra quando penso em João Gilberto é como suas gravações soam modernas, frescas, quentes. Nunca se tornam velhas e parecem ter saído diretamente do estúdio para a agulha da minha vitrola ou o sinal do Bluetooth. Talvez seja essa uma definição do que seja um clássico: algo que para sempre soa moderno, instantâneo, mesmo que tenha sido feito há décadas. Ou séculos. Para mim, João Gilberto é o Brasil do futuro, é o País em que eu quero viver para sempre — entre o amor, o sorriso e a flor, depois que a tristeza acabou. E não quero admitir aqui nenhum simbolismo sobre o fato de perder outro gênio nesse momento tão difícil. Porque João é maior que isso.

Infelizmente, nunca o vi ao vivo. É um dos poucos da minha lista de gigantes que passou. Passei perto duas vezes: quando tocou no Auditório Ibirapuera, eu e meu pai acabamos passando a vez por ser caro demais. Na última turnê que marcou, no Via Funchal, em 2011, eu já podia gastar metade do meu salário de estagiário em um ingresso. Mas quando pensei em fazê-lo, ele ficou doente e cancelou o show.

Nesses dias, pensei comigo mesmo sobre o que faria na morte de João Gilberto. Como eu me sentiria — seria como perder um parente, um amigo próximo, alguém que me acompanha e me aquece desde que me entendo por gente. (Nunca vou esquecer a sensação de estar apaixonado e, do topo do Cristo Redentor, ouvir “Corcovado” nos meus fones de ouvido. É uma boa metáfora para se estar apaixonado, inclusive). Penso nisso desde que só fiquei sabendo da morte de Belchior cinco dias depois que ela aconteceu — outro grande, maior do que o folclore diga da primeira impressão.

Resolvi comigo mesmo que precisava de tempo para celebrá-lo, torci para que acontecesse num dia em que a vida pudesse parar. Não parou, claro. Tolo fui eu que em vão tentei raciocinar. Chorei e fiquei sem reação, deitei no sofá sem saber o que fazer — até conseguir perceber que devia colocar o Amoroso na vitrola e celebrá-lo. A agulha roda por Wave, a primeira faixa do lado B, enquanto escrevo. Acabou chorare, ficou tudo lindo. Obrigado, João, por tudo. Agora vai lá pedir licença no céu pra mostrar que a Bahia se escreve com H.

“Eu acredito em João Gilberto, porque ele é simples, sincero e extraordinariamente musical.
P.S. — Caymmi também acha”

(Antonio Carlos Jobim, na contracapa de Chega de Saudade, 1959)

--

--